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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

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DE LISBOA A BRAGA, DE BRAGA AO CÉU…

 

Minha Princesa de mim:
 

Acontecem-me dias assim: acordo e entro em oração e por lá vou ficando. Começa por escuta da Palavra, que uma leitura desperta, e me leva à contemplação, esse silêncio que nos agarra e conduz para além do que entendemos, até ao inefável mistério, perante o qual somos forçosamente humildes. E é assim pequenino que  -  como nos bandos de miúdos em que um vai à frente e os outros se escondem, aguardando  -  eu chamo os outros, vivos e mortos, parentes e estranhos, aqueles com que embirro e os mais próximos a quem quero tanto!, para uma reunião com esse Deus escondido que não nos ignora e sempre nos interroga sobre o amor que, uns aos outros, nos devemos... Como "no antigamente", nas festas que eram os recreios da escola, a oração torna-se num convívio. Estás lá sempre, encostada à faia que se erguia, inexplicavelmente, no meio do cimento do pátio do colégio, como que a dizer que há impulsos que vêm de baixo, mas vão sempre para cima, procurando o sol. Habitarás até ao fim dos meus dias a paisagem interior em que me encontro. Hoje, abraçam-me saudades, rezar é também um modo de estar saudoso: conforta-nos, mas diz-nos que ainda não chegámos lá. A condição humana é uma vocação ao reencontro. No olhar dos infelizes que sofrem uma vida que os reduz e definha, há certamente perplexidade e espanto. Mas lá no fundo, muito para lá do inexplicável, haverá essa luz íntima de uma promessa que Deus saberá cumprir "in tempore oportuno"... Afinal, que sabemos nós explicar da nossa própria vida? O que ela tem de certo é a morte, o fim da ilusão. O que ela tem de grande, o essencial, é invisível aos nossos olhos. Está no mistério infinito de Deus. Qualquer apego sensível é nada, e de tudo, condenados, nos despedimos: "quando eu morrer, / meu amor, / não te zangues / comigo: / não foi por desamor / de ti / que eu morri, / mas pelo desgosto / de mim / que é tão antigo..." Lembro-me muito do Alberto, tenho estado a ler passos da "Vida de Dom Frei Bartolomeu dos Mártires" do frei Luís de Sousa. Na sua aposta em pôr-me a aprender português, o Alberto ofereceu-me, entre outros, este livro, insistindo em que Manuel de Sousa Coutinho (que, quando professou na Ordem de S. Domingos, tomou o nome de frei Luís) foi o primeiro "clássico" a emancipar o discurso da língua portuguesa, totalmente, de regras e tiques latinos, para o tornar fluido, correndo com a elegância simples da ternura lusitana... Encontro, nas páginas da "Vida...", trechos que parecem testemunhá-lo. Assim, esta cena da meninice de Bartolomeu: "Criava-o a mãe a seus peitos com cuidado de mãe, e mãe de grande virtude. Estava fugida da peste, que ardia em Lisboa, em um casal, que tinham no lugar de Torrugem, limite de Oeiras, quase três léguas da cidade. Era sobre tarde, tinha-o nos braços à porta do casal; chegou um homem no trajo pobre mendicante, no sembrante estrangeiro, e pediu-lhe esmola. Enquanto lha mandava dar foi cousa de espanto, e que deu muito que cuidar à mãe e aos de casa, o que viram no menino. Encarou no pobre todo risonho, todo alegre, debatendo-se para ele, e festejando-o com as mãozinhas, boca e olhos, como se fora um dos mais conhecidos de casa; e enquanto o pobre não se despediu, não desviou os olhos dele, nem deixou de o estar agasalhando com aquelas inocentes mostras..." Este menino cresceu, fez-se frade dominicano e teólogo, foi, arcebispo, para Braga. Sempre penitente e disciplinando-se, andou pelas serranias de Trancoso e outras paragens inóspitas, era frugal e procurava a companhia dos pobres. Distinguiu-se no Concílio de Trento, foi  -  como, três séculos antes dele, o franciscano Santo António  --  um dos lisboetas com enorme prestígio na Europa e na Igreja, pela sabedoria e por esse odor de santidade por que se reconhecem os pobres. O papa acolheu-o em Roma e buscava amiúde o seu conselho, que apontava para a necessária reforma de uma Igreja mergulhada nas vaidades do mundo. Conta frei Luís de Sousa: "Daí em diante, quase todos os dias, era chamado de Sua Santidade, e umas vezes o mandava ficar a jantar, outras convidava-o para o dia seguinte, mostrando particular gosto de tratar com ele. E foi crescendo esta facilidade e favor, de sorte que deu em mui estreita familiaridade e tal que chegou o arcebispo a adverti-lo de coisas importantes ao bem comum da Igreja e a seu ofício pastoral, das quais contaremos algumas. Apontava-lhe o arcebispo erros e abusos que havia em partes da Cristandade no governo eclesiástico; e, com o peito de varão apostólico, amoestava-o que convinha não tardar com o remédio; que, para isso, o tinha Deus posto naquele lugar supremo, para vigiar e acudir a tudo; que, se se descuidasse, quanto era maior a honra, tanto seria a conta mais estreita..." Se nos lembrarmos de que, entre os fatores dos movimentos de reforma protestante, estava o escândalo do comércio de indulgências para custear as obras "faraónicas" do Vaticano, saborearemos melhor este relato de uma conversa de Paulo III com o "Bracarense" (assim, parece, o tratava por vezes o Papa), reformador também, católico e tridentino: "Levou-o um dia consigo passeando até o jardim famoso dos papas, que chamam Belveder; e, mostrando-lhe as obras que se iam fazendo, disse-lhe, sorrindo-se, como quem lhe sabia já o humor, porque não fazia lá na sua Braga uns paços como aqueles?  -  Santíssimo padre  - respondeu o arcebispo  -  não é de minha condição ocupar-me em edifícios que o tempo gasta... Não ignorava o papa que havia de ser esta a resposta, e, contudo, tornou a instar e disse:  -  Pois que vos parece destas minhas obras?...  Então, com maior energia, respondeu:  -  O que me parece, Santíssimo Padre, é que não devia curar Vossa Santidade de fábricas que, cedo ou tarde, hão de acabar e cair. E o que digo delas é que, de tudo isto, pouco e muito pouco e nada, e do edifício temporal das igrejas seja mais do que se faz; mas no espiritual, aí sim, que é razão ponha Vossa Santidade toda a força e meta todo o cabedal de seus poderes..." Penso, nesta minha misteriosa saudade de Deus, que Deus é verdadeiramente pobre. E só aos pobres e pequenos se revela. Assim, minha Princesa de mim, brilhe também, no fundo fundíssimo de nós, a luz dessa esperança com que nascemos. E não esqueçamos que defraudar os pobres é esquecer Deus". Na carta seguinte,Camilo Maria escreve sobre o anseio de ser, recorrendo a uma ópera de Dvorak: "Rusalka".

 

Camilo Martins de Oliveira