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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

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Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

A VIDA DOS LIVROS

 

 

   de 29 de Março a 4 de Abril de 2010

  

Duzentos anos depois do seu nascimento, devemos afirmar que Alexandre Herculano (1810-1877) continua a ser uma referência fundamental da cultura portuguesa. Poeta, romancista, fundador da moderna historiografia portuguesa, cidadão empenhado, liberal assumido, autor de obras marcantes como a "História de Portugal" (Bertrand Editores, 4 volumes, com prefácio de José Mattoso) ou o romance "Eurico, o Presbítero", foi alguém que desde muito novo, e não tendo podido cursar Leis em Coimbra, se afirmou como um talentosíssimo escritor, sempre preocupado com a fundamentação rigorosa dos escritos que subscreveu, mas também empenhado em conseguir a governação do País pelo País, para que a emancipação dos povos e a participação dos cidadãos não fossem letras mortas. Amante da liberdade individual e defensor do fim dos constrangimentos à liberdade económica, Herculano foi quem da sua geração, e sem cedência de princípios, melhor compreendeu os jovens de 1870, que lhe devotou admiração incondicional.

 

 

 

UM PENSADOR DE PORTUGAL
Não podemos reflectir sobre Portugal sem nos lembrarmos do contributo ímpar de Alexandre Herculano. É uma das figuras inesquecíveis da história da cultura portuguesa. E tornou-se um símbolo de honradez e de rigor. Nasceu há duzentos anos, na cidade de Lisboa, no velho Pátio do Gil (hoje já destruído), à Rua de S. Bento, a 28 de Março de 1810. Para ele a cidadania e o estudo das fontes e das raízes das instituições e do povo eram inseparáveis. Por isso, no Porto, em 1832, depois de ter desembarcado entre os bravos do Mindelo na praia de Pampelido, foi dispensado do serviço das armas, para ser nomeado bibliotecário na Biblioteca Pública da cidade, com o encargo ainda de reorganizar os fundos das bibliotecas monásticas, a começar na de Santa Cruz de Coimbra. Que preocupava o jovem estudioso? Conhecer o caminho que tornara possível a persistência de uma nação antiga, com as instituições e o povo empenhados em prosseguir objectivos e valores comuns. No entanto, nada de verdadeiro poderia apurar-se a não ser com recurso a documentos coevos e a uma ponderação inexorável dos factos. Não resisto a recordar a muito pouco conhecida “Oração Fúnebre” proferida pelo jovem António Cândido no dia 13 de Novembro de 1877 na Igreja da Lapa, na cidade do Porto: «Devemos a Alexandre Herculano a revelação da nossa consciência nacional. Um povo não pode dever a um homem mais largo benefício. Antes dele a nossa história era um conjunto de lendas monásticas, muito piedosas ou muito refalsadas, sem a compreensão profunda das leis sociais a que obedecemos como povo, sem a clara intuição da lógica a que se subordinaram as ideias e as obras dos que nos precederam; era um montão confuso, uma sobreposição informe de factos, tendo por fonte ou as crónicas primitivas, muito deficientes (embora apreciáveis como manifestação do nativo espírito português) ou os livros posteriores ao século XV, em que havia a discriminar, com enorme trabalho, dos laivos da erudição clássica os traços puros da tradição nacional. (…) Diante dos seus livros erga-se a posteridade, e julgue-os com desassombro: têm, não podiam deixar de ter, a par de grandes verdades e de muitíssimas belezas, erros e imperfeições; mas diante do seu porte austero, da sua honra imaculada, da sua vida honesta e sóbria, da intemerata moralidade dos seus costumes, da genial franqueza da sua alma, da rude, mas simpática têmpera da sua palavra, quer a dirigisse aos reis a quem servia, quer a entregasse ao povo de quem mais era, - curvem-se respeitosos os homens de boa vontade».

CULTOR DA TRADIÇÃO E DA LIBERDADE
Herculano foi um homem dividido entre o respeito da tradição e a rejeição das superstições. Para ele, por exemplo, o soldado liberal deveria, num esforço de síntese, hastear a cruz sobre o pendão da liberdade e tornar-se apóstolo da “fraternidade espiritual”. No entanto, na “História de Portugal” recusa as interpretações providencialistas simplificadoras e encontra “a verdadeira origem da independência de Portugal” na ideia de nacionalidade portuguesa, “ideia que amadurecera e radicara nos ânimos de modo indestrutível e que sucessivamente se apoderara dos espíritos do Conde D. Henrique, de D. Teresa e do filho deles”. Relendo-o, verificamos que também fez simplificações e cometeu erros, no entanto, abriu caminhos novos, ao apontar quais deveriam ser os instrumentos e os métodos. Através deles seria possível superar dificuldades e tentar encontrar a verdade dos factos. Considerou a vontade dos governantes como crucial para a criação da nacionalidade. A moderna historiografia considera a explicação como insuficiente, já que há outros factores adjuvantes, que não devem ser olvidados. Contra a ideia da prevalência circunstancial da vontade dos senhores do século XII, não poderia esquecer-se (na expressão de Oliveira Martins) o carácter vago e fugitivo do português, contrastando com a terminante afirmativa do castelhano, ou a nobreza do heroísmo lusitano, diferente da fúria dos nossos vizinhos, ou nosso sentimento e a nossa ironia, ao contrário da violência do outro lado da fronteira. No entanto, é indubitável que o Estado precedeu a nação, e o certo é que com mais ou menos dose de vontade, a verdade é que a perenidade da autonomia do ocidente peninsular e a sua projecção além-mundo devem ser lidas à luz de uma dialéctica em que a “vontade de ser” tem um papel indiscutível. Ainda Oliveira Martins, profundo admirador de Alexandre Herculano, disse que ele “pecava, com toda a escola romântica, Guizot à frente, porque a opinião e a política de mãos dadas o levavam a fazer da História da Idade Média uma apologia do sistema representativo (…). Levava, pois, para o estudo do passado as preocupações do presente, porque essas preocupações eram a essência da sua vida moral”. Essa poderá ser uma limitação do seu método, no entanto, passado século e meio sobre o contributo do historiador fica a pertinência e a actualidade da sua obra, com todas as limitações que possam ser referidas. É difícil ser-se tão duravelmente influente como Herculano o é. Foi indiscutivelmente moderno, apesar de ser um romântico, muito ancorado na tradição clássica. Contudo “falta-lhe ar na contextura sobrecarregada de discussões eruditas” – disse o escritor de “Portugal Contemporâneo”.

PROBLEMATIZADOR E INCONFORMISTA
A verdade é que é o Herculano problematizador que encontramos sempre. Alguém que não nos deixa indiferentes: cristão e anti-clerical, liberal e exigindo uma consciência nacional, português e homem de horizontes abertos, estudioso e sempre cidadão, erudito e próximo dos povos (apesar de tantas vezes os idealizar). Alguém que acreditava sinceramente em que o país fosse governado pelo país: “como realização deste princípio, temos pugnado pela verdade do sistema parlamentar, apesar do descrédito a que a reacção europeia o tem levado no continente; temo-nos esforçado por incutir aos nossos concidadãos a ideia de que só nele sinceramente respeitado pode estar a nossa marcha segura no caminho do progresso”. Em suma, Alexandre Herculano projecta-se na história da cultura portuguesa como um interrogador das origens da consciência nacional e do antigo carácter português. A independência é fruto da vontade e de uma convergência de factores entre os quais avulta a liberdade dos povos e das pessoas e a descentralização municipalista. É um exemplo para os dias de hoje – pela sobriedade, rigor, trabalho, disciplina, de recusa da mediocridade e da irrelevância. Tudo visto e ponderado, o melhor elogio que podemos fazer ao historiador nascido há dois séculos está feito por José Mattoso no Prefácio à “História de Portugal”: “Há (…) poucos autores com tão grande sentido da ‘época’ como Herculano. (…) No conjunto, pode dizer-se hoje, quase século e meio depois de ter procedido a este imenso trabalho, que conheceu e aproveitou a grande maioria das fontes disponíveis e que a sua interpretação foi geralmente correcta”. Que mais dizer em seu abono? 

 

Guilherme d'Oliveira Martins

 
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A VIDA DOS LIVROS

de 22 a 28 de Março de 2010

“Cardeal Cerejeira – O Príncipe da Igreja” de Irene Flunser Pimentel (Esfera dos Livros, 2010) é uma biografia essencialmente política que analisa o percurso de uma das figuras referenciais do século XX português, sem cuja compreensão não é possível perceber o próprio Estado Novo, em especial por se tratar de uma personalidade muito próxima de Oliveira Salazar, apesar das diferenças e das distâncias, cultivadas de parte a parte, e por ser um dos indiscutíveis artífices da “frente nacional”, que funcionou até ao final dos anos cinquenta, e que foi fundamental para a permanência no poder do sistema consolidado em 1933.
 


 

RECUSAR SIMPLIFICAÇÕES
A obra tem a grande virtude de recusar simplificações e de procurar seguir os acontecimentos históricos com objectividade. Nesse sentido, a autora acompanha os factos com relevância política ou pública da vida de Manuel Gonçalves Cerejeira, o que permite que possamos ver os contornos pessoais do intelectual, do universitário, do activista católico e do prelado influentíssimo, desde os tempos da Primeira República, passando pela chegada ao poder de um amigo muito próximo, com quem terá uma relação propositadamente ambígua, apesar das inequívocas convergências. No período inicial, em que o futuro Cardeal Patriarca de Lisboa se afirma pelas suas excepcionais qualidades académicas e intelectuais, começam a desenhar-se os traços fundamentais da sua personalidade. Trata-se de um carácter multifacetado e complexo, que critica abertamente os “tempos em que as púrpuras prelatícias punham notas vivas nos degraus do Trono dos reis e os regimentos nas paradas apresentavam armas aos senhores bispos”. Aliás, nas páginas do “Imparcial”, semanário dos estudantes católicos de Coimbra, no ano de 1914, Cerejeira demarca-se da posição dos monárquicos dizendo que “a união da Igreja e do Estado como entre nós existia” não poderá nem haverá de “voltar a existir em Portugal”. O jovem académico é elogiado pela comunidade coimbrã pelo trabalho realizado na Universidade. Vitorino Nemésio fala das “clareza e elegância expositiva” e Sílvio Lima refere a “prudente atitude crítica que o leva a verificar antes de afirmar”. Pina Martins assinala que a escolha de Clenardo (que esteve em Portugal de 1533 a 1538) como tema do seu doutoramento corresponde à recusa tanto do clericalismo como do cesarismo. Cerejeira seria, assim, um «defensor da separação entre o mundo espiritual e o mundo temporal, enquanto ‘trave mestra da civilização cristã’». E Luís Salgado de Matos assinala o risco corrido pelo académico, enquanto membro do clero, ao escolher como objecto de estudo um homem que foi vítima da Inquisição. Mas o que o autor quereria era talvez ajustar contas com a visão anticlerical da História, filiando a nossa decadência na ausência de uma classe dirigente e não na acção da Igreja…
 

A SOMBRA DA QUESTÃO RELIGIOSA
Não podemos esquecer como a questão religiosa da Primeira República marcou a geração de Manuel Gonçalves Cerejeira. E essa memória será um pressuposto para a cumplicidade evidente entre Estado e Igreja depois de 1926. De qualquer modo, é fundamental ver (com os elementos disponíveis, já que os arquivos eclesiásticos ainda não estão disponíveis) que não há uma identidade de pontos de vista entre Cerejeira e Salazar, aparecendo o primeiro como alguém que se rodeou de todos cuidados no sentido de preservar a independência da Igreja, tentando gerir os complicados equilíbrios numa sociedade profundamente marcada por ressentimentos antigos. O jovem Patriarca sente-se “dolorosamente surpreendido” com o convite feito pela Mocidade Portuguesa à Juventude Hitleriana, uma vez que concordava inteiramente com Pio XI na condenação do totalitarismo nazi. Durante as negociações da Concordata e do Acordo Missionário, Salazar e Cerejeira discordam sobre pontos importantes, por exemplo o da autonomia da Acção Católica, desconfiando o Presidente do Conselho que aí poderia estar um embrião político de uma democracia cristã desalinhada (lembre-se que António Lino Neto, o líder do Centro Católico, negara-se a entrar na União Nacional). Por outro lado, Gonçalves Cerejeira contrasta com Salazar ao ostentar uma imagem de “cardeal moderno”, viajado, defensor de uma estética moderna na Igreja de N.S. de Fátima em Lisboa, fundador de uma poderosa rádio católica (a Renascença). Sobre a sensível questão colonial, o prelado afirma numa célebre entrevista a Dutra Faria que vislumbrava em Angola e Moçambique os Brasis do século XXI. É verdade que não se pode tirar daí mais do que lá está. A entrevista deu brado. E há, da parte de Cerejeira, em meados dos anos quarenta, a consciência clara de que, como homem de Igreja, tinha de aceitar que haveria novos caminhos a trilhar para a evangelização de África. Se falámos da resistência de Salazar à autonomia da Acção Católica, temos de referir na mesma linha a oposição longa à criação da Universidade Católica. E estes exemplos são significativos de uma distância que Salazar quis manter relativamente aos riscos que via numa Igreja mais actuante e com maior espaço de manobra.
 

TEMPO DE VIRAGEM
Os anos cinquenta e sessenta irão representar um momento de viragem, a que correspondem dificuldades crescentes – e Cerejeira deixa, de facto, de saber como havia de pegar na questão. Tudo começa logo no fim da guerra, com a participação de um católico, velho amigo de Coimbra, Francisco Veloso, nas listas do MUD, ao lado de Francisco Lino Neto, filho de António Lino Neto, o já referido chefe de fila do Centro Católico. A partir de então o silêncio do Cardeal Patriarca perante os ataques de que são alvo os cristãos oposicionistas torna-se muito pesado. E o número de casos vai-se alargando: Vieira da Luz, Padre Joaquim Alves Correia, Padre Abel Varzim. Neste último caso, é a Acção Católica que está em xeque e o método do futuro Cardeal Cardijn. Cerejeira aceita a proibição de “O Trabalhador” e os sucessivos afastamentos do Padre Varzim, até ser enviado para Cristelo (Barcelos), mas diz preferir encobri-lo, como reserva da Igreja, a cobri-lo… Ainda há a questão do documento pró-memória do Bispo do Porto e a oposição do governo a que ele regresse ao País. Na mensagem de Natal de 1958, o Cardeal faz uma distinção entre o bom e o mau regime de separação entre a Igreja e o Estado, lembrando em particular que a Constituição portuguesa aceitava a soberania dos dois poderes, mas era a ordem espiritual que deveria julgar a temporal, e não vice-versa. Salazar não se faz rogado e responde sibilinamente que caberia ao Estado julgar os homens que serviam a Deus. E a esta troca de remoques suceder-se-iam diversas tomadas de posição de cristãos no ano de 1959, que marcariam profundamente o fim da “frente nacional” do regime. A incomodidade sentida pelo Cardeal é evidente. A crise do Seminário dos Olivais e as sérias dificuldades com colaboradores que admirava e em quem depositava confiança, como o Padre José da Felicidade Alves são profundamente dolorosas. Sente-se nitidamente que as circunstâncias políticas ultrapassam largamente a capacidade de resposta do Cardeal Cerejeira, que se vê rodeado de incompreensões. Perante o balanço que este faz em Janeiro de 1967 (“Na Hora do Diálogo”), Salazar comenta desdenhosamente que se trata de um documento defensivo relativamente a várias acusações da oposição, faltando “coragem de contra-atacar”, seria a reacção de um “fraco que pune a seu modo, como ele diz, para significar que não pune ninguém”. Marcelo Caetano dirá que Cerejeira “detestava as palavras ásperas, os castigos severos e as decisões definitivas, e preferia persuadir pela razão e comover pelo coração”. A verdade é que se trata de uma figura histórica que deve ser compreendida no seu tempo – como salientou António de Sousa Franco. E Abílio Tavares Cardoso realça que mesmo a esmagadora maioria dos que viriam a ser conhecidos como católicos progressistas admiravam a inteligência superior de Cerejeira e confiavam nele”. Lembre-se o testemunho de António Alçada Baptista ou a opinião contraditória de Raul Rego… O livro de Irene Flunser Pimentel é, afinal, importante, equilibrado e elucidativo e dele ressalta, com rigor, uma figura complexa e marcante. 

Guilherme d'Oliveira Martins

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ATÉ À VISTA, PEPIN!



JOSÉ VIDAL-BENEYTO (1929-2010)
por Guilherme d’Oliveira Martins

Pepin Vidal-Beneyto era um grande amigo. Bastava telefonar-lhe a pedir que viesse fazer um debate ou que lhe pedisse um contributo sobre os temas que cultivava (política de cultura, Europa, Mediterrâneo, pluralidade de pertenças, direitos humanos) para que ele, generosamente, se dispusesse a vir. Era uma das pessoas mais vivas e lúcidas que conheci. Gostava de conversar, de debater, de lançar ideias provocatórias. Tive o raro privilégio de o contar entre as pessoas que faziam da amizade oportunidade de pensar o futuro.
 

Natural de Valência (Carcaixent), foi filósofo, jurista, sociólogo e politólogo. Catedrático de Sociologia da Universidade Complutense de Madrid, foi director do Colégio de Altos Estudos Europeus Miguel Servet de Paris e doutor honoris causa da Universidade de Valência (2006). Participou em muitos projectos internacionais, em especial no campo da cultura, da integração e da mundialização. Foi Secretário-Geral da Agência Europeia da Cultura e do Conselho Mediterrânico da Cultura, no âmbito da UNESCO. Foi um colaborador activo do Conselho da Europa, da Comissão Europeia e dos Ministérios espanhóis da Educação e da Cultura. Era um militante europeu de longa data e por isso mesmo era um crítico severo do curso dos acontecimentos nas instituições europeias. Debati longamente com ele sobre o presente e o futuro da União Europeia, sobretudo depois de 1989. Vidal Beneyto foi um dos grandes animadores dos Encontros Internacionais de Sintra, organizados pela Sedes nos anos noventa, ao lado de Helena Vaz da Silva, Lucas Pires, Sousa Franco, António Alçada Baptista, Francisco Lino Neto, Rui Vilar, João Salgueiro, Vítor Constâncio, Adam Michnik, Jacek Wosniakowski, Michael Walzer, Timothy Garton Ash, Paolo Flores d’Arcais… Conheci-o sempre como um combatente de ideias e de ideais. A criação de uma sociedade civil transnacional era uma das suas obsessões. Durante o franquismo foi um opositor tenaz. Ao lado dos seus amigos Tierno Galván e Raul Morodo participou na Junta Democrática e foi talvez o mais activo dos criadores do chamado Contubérnio de Munique (Congresso do Movimento Europeu de Junho de 1962, presidido por Salvador Madariaga, com a presença de José Maria Gil-Robles e Dionísio Ridruejo).
 

Foi sócio fundador do diário El Pais e membro da Academia Europeia das Artes, Ciência e Letras e autor de numerosa obra entre a qual se destaca:

• Las Ciencias de la Comunicación en las universidades españolas, (1973)
• Alternativas populares a la comunicación de masas, (1981)
• Las industrias de la lengua, (1991).
• Diario de una ocasión perdida, (1991).
• La Méditerranée: modernité plurielle, (2000).
• Hacia una sociedad civil global, (2003).
• Poder global y ciudadanía mundial, (2004).
• Derechos humanos y diversidad cultural, (2006).
• Memoria democrática, (2007).

A VIDA DOS LIVROS

de 15 a 21 de Março de 2010

Quando, no início do ano, me pediram para escolher os livros de 2009, não tive dúvidas em eleger entre eles “O Caminho dos Pisões” (Assírio e Alvim, 2009), uma obra surpreendente, sobretudo para quem conheça menos bem o percurso de M. S. Lourenço, poeta, filósofo e cultor singularíssimo da língua portuguesa. Aí reencontrei, além das duas edições de “O Doge” (1962 e 1998), as obras literárias fundamentais do autor: “O Desequilibrista” (1960), “Ode a Upsala, Ária detta la Frescobalda” (1964), Arte Combinatória” (1971), “Wytham Abbey” (1974), “Pássaro Patadípsico” (1979), “Nada Brahma” (1991) e “Os Degraus do Parnaso” (1991 e 1998). Trata-se de uma oportunidade única para ter contacto com a atitude intelectual muito estimulante de um escritor culto, cuja obra multifacetada permite-nos usufruir o domínio da língua e das ideias, ao serviço de uma ironia extraordinária.
 


 

A SOMBRA DO DOGE
«Era afinal um homem muito breve, com uma história muito calma. Alguns diziam que a história era antiga, mas não passavam afinal daqueles, de entre os seus amigos, que menos conheciam coisas deste género. Hoje afigura-se possível que um dia Alguém tenha descoberto e revelado o segredo de algumas circunstâncias, o inacreditável mistério dum pequeno grupo de pormenores. É possível, apenas. Por tradição oral nada chegou até nós. E se fosse possível falarmos com uma testemunho ocular, ele diria com um acento desusado e inequívoco: ‘Mas isso é pura fábula! Nunca esteve aqui Alguém que dissesse alguma coisa sobre tais circunstâncias. Eu próprio nunca estive lá’». Assim começa “O Doge”, livro misterioso, publicado em 1962 pela Morais, da autoria de um escritor do centro da Europa, com reminiscências no Sacro Império e referências ao “nosso” Carlos o Temerário, o “Meio-Português”, com era conhecido, tudo no cenário deslumbrante da República Sereníssima de Veneza. O referido escritor aparecia com o nome rebarbativo e ostentatório de Arquiduque Alexis Christian von Rätselhaft und Gribskov, e era traduzido pelo jovem M.S. Lourenço. Consta que a Lisboa literata do tempo discutiu intensamente a origem dessa figura literária, e houve mesmo o mais famoso dos críticos da época que aceitou tratar-se de uma vera tradução (por sinal muito elogiada). De facto, porém, tudo não passou de uma ardilosa combinação com a casa editora, com Pedro Tamen, mais precisamente, no sentido de esconder a verdadeira identidade de uma personagem totalmente mergulhada na ficção, desde a autoria ao enredo. Estávamos perante um texto automático que pretendia descrever a biografia literária de um autor fictício, escritor de títulos surrealistas. O Arquiduque Gribskov tinha uma biografia parcialmente oculta, apenas revelada subtilmente na sua prosa. O tradutor limitava-se, assim, a apresentar uma figura literária que, mais do que enigmas, punha a necessidade de encontrar a sua identidade. Não passaria muito tempo até que António Ramos Rosa descobrisse o artifício da concepção, nas páginas de “O Tempo e o Modo”, então a dar os primeiros passos, graças à determinação (e nunca essa palavra foi empregue com tanta propriedade) de António Alçada Baptista. Gribskov nasceu em Nikolsburg, no Castelo dos Príncipes de Dietreichstein, tendo um lema subtilmente estranho: “Spiritus ubi vult spirat”.
 

AS ENCICLOPÉDIAS… 
Dizem as enciclopédias, de um modo muito parco (porque o pensador sempre se protegeu de todas as exposições mediáticas), que Manuel dos Santos Lourenço (1936-2009) licenciou-se em 1963 na Universidade de Lisboa com a tese “A filosofia da matemática de Ludwig Wittgenstein”, fez estudos pós-graduados em Oxford e doutorou-se na Universidade de Lisboa (1980) com a dissertação “Espontaneidade da razão: A analítica conceptual da refutação do empirismo na filosofia de Wittgenstein” (INCM, 1986). Foi leitor de português nas Universidades de Oxford (1968-1971) e de Santa Bárbara, Califórnia, onde trabalhou com Jorge de Sena (1972-1975), tendo exercido ainda funções na Universidade do Estado de Indiana (1976-1980) e na Universidade de Innsbruck (1983-1984). Presidiu à Sociedade Portuguesa de Filosofia (1999-2004) e colaborou em “O Independente”, com uma coluna de culto, sintomaticamente designada “Os Degraus do Parnaso”. Por ocasião da sua morte, quase só assinalada pelos leitores fiéis, José Cutileiro, colega oxoniano, lembrou-nos, no obituário que escreveu, que M.S. Lourenço era uma “cabeça luminosa”, que dizia ter “aprendido a ler em Oxford (e explicava como) para onde fora já licenciado por Lisboa e considerava que o défice mais gritante dos seus alunos portugueses de literatura era a incapacidade de pensarem dedutivamente” (Expresso, 19.8.09). Foi, antes de tudo, um extraordinário filósofo da Matemática e da Lógica, da linhagem de Leibniz, mas também um dotadíssimo tradutor de Wittgenstein, de Beckett e de Joyce, e confirmam todos os que o conheceram pessoalmente que o fino humor que nos deixou sentia-se especialmente no seu convívio quotidiano. O lema pedagógico que tinha, no seu ensino académico, e pode dizer-se na vida, recebeu-o naturalmente de Leibniz (um dos maiores génios de todos os tempos, jurista, matemático, ensaísta, cultor de saberes vários), e era: «sans les mathématiques on ne pénètre point au fond de la philosophie. Sans la philosophie on ne pénètre point au fond des mathématiques. Sans les deux on ne pénètre au fond de rien ». « O Desequilibrista » é um conjunto poético onde o paradoxo aparece como revelador de sentidos contraditórios da vida, à semelhança dos “disparates do mundo” de G.K. Chesterton. Estamos perante uma “ironia transcendente, que encanta assembleias de acrobatas”. Ou seja, o humor serve para revelar as coisas mais sérias do mundo. O sagrado e o profano encontram-se: “Reis destroçados, impérios abatidos a tiro e divididos, rainhas que dançam para riso do público! Tudo isto é dEle e é aí que está o segredo desta história estranha”. O desequilibrismo tem, afinal, a ver com a procura da saúde através das diversas formas de enfermidade, ou da lógica através do contra-senso, como em Alice no País das Maravilhas, onde um professor de Lógica no ensina a entendê-la ao compreender a sua insustentável ausência…
 

OS DEGRAUS DO PARNASO
A dado passo, perante os degraus do Parnaso, encontramos o próprio Carlos Fradique Mendes (símbolo da modernidade insatisfeita) e deparamos com o que M.S. Lourenço considera ser um lapso intolerável. Trata-se da referência à viúva do célebre Pacheco, que manifesta a sua perplexidade pelo facto de Fradique devotar admiração ao imenso talento do defunto marido. Fernando Pessoa não perdoa a Eça esta fraqueza. Fradique é incapaz de sustentar o ponto de vista irónico e, por isso, no fim, deixa-se cair na sátira. Faltaria, deste modo, a distância de Fradique relativamente a si próprio: «não tem capacidade de ser ao mesmo tempo sujeito e objecto da sua própria percepção e, assim, aperceber-se da sua inconsciente transição da Ironia para a Sátira. Fradique é irreflectido, sofre afinal da espontaneidade do provinciano, cuja incapacidade de auto-análise coincide com a incapacidade de decifrar o sentido dos objectos internos analisados». E M.S. Lourenço refere-se às “Páginas de Doutrina Estética” de Fernando Pessoa e lembra os ensaios sobre o provincianismo português e sobre “o caso mental português”. Ambos estão na linha do que Antero disse nas Conferências do Casino sobre “As Causas da Decadência dos Povos Peninsulares” e do que, num registo irónico, Eça escreveu na “Correspondência de Fradique Mendes”. “São dois ensaios (recorda M.S.L.) mas na verdade só há uma tese, a qual liga os dois ensaios entre si e lhes confere uma direcção única: o português sofre de uma atrofia da consciência, no sentido em que esta só está insuficientemente constituída”. O português mover-se-ia, deste modo, mais à vontade na sátira, com recurso à deformação e ao grotesco, não sendo capaz de chegar ao “raffinement da ironia”, que exigiria a percepção de si próprio (e que impelia Alexandre O’Neill a não levar-se muito a sério). Jonathan Swift foi, aliás, o exemplo maior de cultor com sucesso do estilo irónico, segundo Pessoa. “O homem português tem assim menos sensações, menos percepções, menos emoções, menos estados cognitivos, menos estados volitivos do que em princípio poderia vir a ter”. Haveria, pois, para Pessoa, uma atrofia da alma portuguesa, referindo ainda a “paralisia da alma” ou a “melancolia da impotência”. Falta, no fundo, introspecção – e o lapso de Fradique serve para demonstrar que mesmo no pano mais raro cai a nódoa. Falta sermos sujeitos e objectos da introspecção crítica – a fim de que à força do destino possamos contrapor a força da vontade. Por isso mesmo, M.S. Lourenço, ao falar de projecto europeu, diz que “apesar do instável carácter centrífugo da construção política da Europa, a experiência tem demonstrado a existência irrefutável de um espírito europeu cosmopolita, o qual brilha permanentemente na vivência de uma cultura comum, cuja essência supranacional é o humanismo clássico. Fradique não pode estar em melhor companhia”. E estaremos aptos a entender o que são os Estados de Cultura e os génios dos lugares? “O Caminho dos Pisões” permite, nesta caminhada pela serra de Sintra, entender tudo para além da sombra das acácias em flor…

Guilherme d'Oliveira Martins

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A VIDA DOS LIVROS

de 8 a 14 de Março de 2010


Alexandre Herculano nasceu há duzentos anos, a 28 de Março de 1810. Assinalamos a efeméride, recordando a obra de António José Saraiva, “Herculano e o Liberalismo em Portugal – Os problemas morais e culturais da instauração do regime (1834-1850)” (Studium, Lisboa, 1949). Estamos perante uma notável interpretação sobre a obra de Herculano, autor que tem sido vítima de uma estranha conspiração de silêncio e a quem tem faltado um estudo biográfico de fôlego, capaz de pôr no seu devido lugar uma das personalidades mais ricas e fascinantes da história portuguesa.
 


 

HOMEM DE UM SÓ PARECER
“No seu lugar têm-se pretendido colocar um recitador de frases acacianas, emoldurado no ‘isolamento’ da Ajuda ou de Vale de Lobos, tão inofensivo como as cinzas que os turistas visitam no mausoléu dos Jerónimos”. Assim referiu António José Saraiva o incompreensível biombo de indiferença que tem escondido a personalidade rica e multifacetada de Alexandre Herculano, que é indubitavelmente uma das grandes e perenes referências da história cultural portuguesa. O historiador foi tudo o contrário dessa ideia vaga. Foi alguém que se singularizou como um português de horizontes largos, um historiador probo e moderno, fiel às provas e à ciência, fundador da historiografia contemporânea, um cidadão comprometido e exemplar. Escritor de perfil clássico, foi dos mais dotados no manejo da língua e uma enorme figura moral – “homem de um só parecer. Dum só rosto, uma só fé, de antes quebrar que torcer…”, da têmpera de Francisco Sá de Miranda. Ouvimos ainda os ecos da sua prosa militante: “Que o país seja governado pelo país é a nossa divisa. Como realização deste princípio, temos pugnado pela verdade do sistema parlamentar, apesar do descrédito a que a reacção europeia o tem levado no continente; temo-nos esforçado por incutir aos nossos concidadãos a ideia de que só nele sinceramente respeitado pode estar a nossa marcha segura no caminho do progresso. Por isso temos pelejado contra os que, a troco de promessas de melhoramentos materiais, fecharam os olhos aos atentados dirigidos contra o dogma essencial das nossas crenças políticas. Por isso temos fulminado os escândalos, as malversações eleitorais, os diplomas de representante da nação passados por portaria, e o desprezo calculado dos princípios parlamentares erigidos em sistema pelo Governo actual” (1853). Filho de um recebedor da Junta dos Juros e sobrinho por parte mãe de António Gil, o construtor que deu nome ao célebre Pátio onde nasceu, Alexandre Herculano é um símbolo forte do seu tempo. Estudou na Congregação do Oratório de S. Filipe Neri, nas Necessidades, e depois seguiu estudos na Aula do Comércio, não tendo tido possibilidades, como era seu desejo, de cursar na Universidade de Coimbra. No regresso de D. Miguel parece ter-se deixado influenciar pela nova situação, no entanto muito fugazmente, já que o vemos a partir de 1829 a defender a causa liberal, participando na sublevação de 21 de Agosto de 1831, que o levou para o exílio, primeiro em Inglaterra e depois em França, juntando-se em 1832 na ilha Terceira, nos Açores, à causa da regência de D. Pedro. Nesse mesmo ano, desembarca na praia do Pampelido, entre os bravos do Mindelo. No Porto, é dispensado do serviço militar activo, para ser nomeado bibliotecário na Biblioteca Pública e para reorganizar os fundos das bibliotecas monásticas, a começar na de Santa Cruz de Coimbra. A vitória da causa liberal encontra-o entregue ao estudo e à renovação da historiografia. Na Revolução de Setembro de 1836, mantém-se fiel à Carta, que jurara, e escreve “A Voz do Profeta”, onde critica a nova situação, afirmando o seu cristianismo, contraditório não com a liberdade, mas com o despotismo, não com o novo, mas com o antigo regime, e procurando uma plataforma onde se encontrem o livre exame e a autoridade. Na redacção da revista “O Panorama” (1837) e na direcção do “Diário do Governo” demonstra as suas qualidades de escritor e pensador. É um homem dividido entre o respeito da tradição e a rejeição das superstições. Para ele, o soldado liberal deveria hastear a cruz sobre o pendão da liberdade e tornar-se apóstolo da “fraternidade espiritual”. Em “O Pároco da Aldeia” (1844) procura conciliar as antigas formas rituais com a liberdade, o tradicionalismo e o reformismo, sob as influências do ecletismo de Collard, Cousin e Maine de Biran. Concorda com a Constituição de 1838 por entender ser positivo o compromisso alcançado. É o tempo da “Harpa do Crente”, obra poética que conhece significativo êxito. D. Fernando II, seu amigo e admirador, nomeia-o director das bibliotecas reais da Ajuda e das Necessidades. Sob influência de Rodrigo da Fonseca, consegue ser eleito deputado pelo Porto, nas eleições de 1840. O Parlamento não vai ser, porém, um lugar onde Herculano se sinta à vontade. Propõe, no entanto, uma importante iniciativa no campo do ensino popular com Vicente Ferrer do Neto Paiva. Com a restauração cartista de 1842, assume uma posição critica. Depois de uma primeira atitude de neutralidade, conclui que o consulado de Costa Cabral é negativo para o país. A sua residência da Ajuda torna-se centro de conspirações da oposição. Os anos quarenta são, no entanto, um período fecundo da sua criação literária e das suas reflexões históricas. “Eurico, o Presbítero” é de 1844 e o primeiro volume da “História de Portugal” sai em 1846. Aí, recusa as interpretações providencialistas (o que gera grandes incompreensões nos meios conservadores), e encontra “a verdadeira origem da independência de Portugal” na ideia de nacionalidade portuguesa, “ideia que amadurecera e radicara nos ânimos de modo indestrutível e que sucessivamente se apoderara dos espíritos do Conde D. Henrique, de D. Teresa e do filho deles”. Sente-se a influência eclética de Collard, que leva, por exemplo, a explicar o desaparecimento da servidão da gleba pela semente de liberdade contida no Evangelho ou a afirmar que é o impulso moral que aviventa instituições fundamentais como os municípios.


ALMA DA REGENERAÇÃO

A clara desafeição em relação à política de Costa Cabral por parte do próprio rei D. Fernando II leva Herculano a romper em 1850 com a neutralidade que cultivara, assinando à cabeça o protesto dos intelectuais portugueses contra a lei das rolhas. O exemplo e a casa de Herculano tinham sido bases fundamentais para a preparação e concretização do golpe de Estado regenerador de 1851, chefiado por Saldanha. Pode dizer-se que a alma da Regeneração começa por ser Alexandre Herculano. O movimento impor-se-á, por isso, graças, em parte significativa, ao penhor moral que Herculano lhe emprestou, mas o historiador depressa compreendeu que não eram as suas ideias ou o seu grupo (de antigos setembristas) os que prevaleciam. Rodrigo da Fonseca domina o novo partido Regenerador, e Herculano considera ser isso negativo, sendo fundamental criar um pólo político de alternância, que será o partido histórico, em cuja criação e concretização se empenha. Nasce primeiro “O País”, e depois “O Português”, jornais críticos da lógica situacionista de Rodrigo. O escritor torna-se um militante activo da reforma nacional no sentido da concretização da legislação de Mouzinho da Silveira, da liberdade económica, do fim dos constrangimentos políticos e sociais do antigo regime, da concretização do programa municipalista contra o centralismo, das mudanças agrícolas e do proteccionismo. Numa palavra, deveriam criar-se condições para que o país governasse o país. Os últimos anos da sua vida são marcados pela polémica e pela crítica severa do clericalismo. No entanto, Alexandre Herculano manter-se-ia fiel ao seu espírito de sempre: o da procura de uma síntese fecunda entre a tradição e a modernidade, com um empenhamento intenso pela reforma do país, de modo a combater o atraso e todas as formas de intolerância. A partir de 1867 tornar-se-á agricultor em Vale de Lobos, num gesto moral de recusa do conformismo e da indiferença. No entanto, nesse período final da vida Herculano seria procurado pela juventude intelectual como referência e exemplo. Que magnífico sinal de vitalidade intelectual e cívica!

Guilherme d'Oliveira Martins

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A VIDA DOS LIVROS

de 1 a 7 de Março de 2010

A mais recente biografia de Eça de Queiroz da autoria de A. Campos Matos (“Eça de Queiroz - Uma Biografia”, Afrontamento, Dezembro de 2009), suscitada por um desafio ao autor para escrever sobre a vida do célebre romancista para leitores de cultura francesa, é um novo instrumento fundamental para quem queira conhecer bem o romancista genial de “Os Maias”.
 


 

O DEVER DO ARTISTA
“Constitucionais, socialistas, miguelistas e jacobinos, de resto, para nós romancista, são todos produtos sociais bons para a arte, quando são típicos, todos igualmente explicáveis, todos igualmente interessantes. O dever do artista é estudá-los, como o botânico estuda as plantas, sem se importar que seja a beladona ou a batata, que envenene ou nutre”. Assim se exprimia Eça de Queiroz em 1878, dirigindo-se a Joaquim Araújo (in “Notas Contemporâneas”). A citação serve para ilustrar a preocupação de objectividade do romancista, fiel aos cânones naturalistas que procurava seguir. No entanto, apesar desta posição de princípio, há uma atitude de não neutralidade, em face da sociedade contemporânea. O percurso ideológico queiroziano apresenta continuidades evidentes, mas também uma evolução gradual com rupturas, que não esconde a coerência intrínseca que a “geração” sempre teve, nos vários momentos da sua intervenção, sob a influência marcante do patriarca Antero de Quental. E Carlos Fradique Mendes pôde dar a sua achega sobre esta questão, deste modo: “Em resumo adoro a Vida – de que são igualmente expressões uma rosa e uma chaga, uma constelação e (com horror o confesso) o conselheiro Acácio”.
 

TEMPERAMENTO CONSPIRADOR
José Maria Eça de Queiroz começa por confessar o seu “temperamento conspirador”, a sua costela socialista, a sua admiração pela Comuna, mas em “As Farpas” afirma: “Detestamos o facho tradicional, o sentimental rebate a sinos; e parece-nos que um tiro é um argumento que penetra o adversário – um tanto de mais!”… No fundo, defendia uma revolução pacífica, “preparada na região das ideias e da ciência”, influenciada por uma “opinião esclarecida”, numa palavra, uma “revolução pelo governo”. Contudo, ao longo das páginas das referidas “Farpas”, encontramos o assumir do que designa como um “panfleto revolucionário”, que punha “a ironia e o espírito ao serviço da justiça”, enquanto causas semelhantes às dos Gracos, de Spartacus, de Moisés ou de Cristo… E, dez anos passados sobre o movimento revolucionário de Paris, dirá: “os vencidos de então são hoje cidadãos formidáveis, armados não de uma espingarda revolucionária, mas de um legal boletim de voto, e que, em lugar de erguer barricadas nas ruas, fazem deputados socialistas nas eleições”. Proudhon, o autor lido e venerado no Cenáculo de S. Pedro de Alcântara, entre a fumarada dos cigarros dos jovens amigos de Antero, continuará bem presente no pensamento inconformista do autor de “A Relíquia”. E não se preocupava ainda o Fradique tardio com a “miséria das classes – por sentir que nestas democracias industriais e materialistas, furiosamente empenhadas na luta pelo pão egoísta, as almas cada dia se tornam mais secas e menos capazes de piedade”? E não disse o próprio Eça, com apenas 22 anos de idade, no “Distrito de Évora” que “as revoluções não são factos que se aplaudam ou que se condenem. Havia nisso o mesmo absurdo que em aplaudir ou condenar as evoluções do Sol. São factos fatais. Têm de vir. De cada vez que vêm é sinal que o homem vai alcançar mais uma liberdade, mais um direito, mais uma felicidade”? O certo é que esta mesma preocupação (pela justiça e pela igualdade) vemo-la projectada, mais tarde, desde o conto “S. Cristóvão” à crónica “Um Inverno em Paris” dos últimos anos, para não falar nos ecos do poderoso ensaio de Antero de Quental sobre as “Tendências gerais da Filosofia na Segunda metade do século XIX” que Eça glosa, aludindo ao “Bem Supremo, fim verdadeiro de toda a vida, fim divino a que tende o Universo. Em resumo, a lei moral do homem é o constante aperfeiçoamento e progressiva santidade”.
 

O CASO DE GONÇALO
Misteriosamente encontramos em “A Ilustre Casa de Ramires” algo que o brasileiro Álvaro Lins descobre com perspicácia: “mais do que em João da Ega, é em Gonçalo Ramires que Eça pode ser encontrado. João da Ega será uma imagem da sua mocidade, dos seus projectos, das suas ‘blagues’, do seu tipo exterior e convencional – de tudo o que ele seria se tivesse falhado. Mas em Gonçalo, a mais analisada e a mais conhecida das suas personagens, é onde Eça está. Onde estão, pelo menos, alguns dos seus sentimentos mais fortes, da sua maneira de ser, da sua posição em face da vida. E é curioso que Gonçalo, ao contrário de Fradique, sendo Portugal, sendo Eça, sendo o homem-português, permaneça ainda Gonçalo Ramires. Nem o sectarismo, nem o sentimento, nem o patriotismo, em Eça de Queiroz – nada, nem ele mesmo – perturba a criação artística”. Beatriz Berrini falará, por isso, de um “intelectual discrepante”. E nesta discrepância está o curioso paradoxo que leva Eça (e os seus amigos) a serem considerados como “Vencidos”, quando de facto são vencedores (“Victus sed Victor”), quer pela influência decisiva que se estende aos nossos dias, quer pela mensagem, a um tempo crítica e mobilizadora, de recusa terminante de derrotismo ou desistência, já que eles, de facto, não baixaram os braços. E a contradição de Gonçalo é claríssima, sabendo que a História, mais do que um motivo de orgulho retrospectivo torna-se demonstração de que a responsabilidade fica do lado da acção… Basta, aliás, ler Antero em “A Província” no texto “Expiação”, na sequência do Ultimatum inglês: “o nosso maior inimigo não é o inglês, somos nós mesmos. Só um falso patriotismo, falso e criminosamente vaidoso, pode afirmar o contrário. Declamar contra a Inglaterra é fácil: emendarmos os defeitos gravíssimos da nossa vida nacional será mais difícil, mas só essa desforra será honrosa, só ela salvadora. Portugal ou se reformará política, intelectual e moralmente ou deixará de existir”. Se dúvidas houver, aqui está uma atitude positiva, não fatalista, motivadora, virada para diante.
 

SOMBRA OMNIPRESENTE
Há muito que conhecemos todo o trabalho do Arquitecto A. Campos Matos de muitas décadas a fazer o inventário exaustivo de tudo o que diz respeito a Eça. Quando publicou as “Sete Biografias de E.Q.” fez uma apreciação a propósito desses diferentes registos e leituras da vida do romancista. Afinal, nos dias de hoje, a sombra de Eça de Queiroz sobre o nosso tempo define-se, em bom rigor, a partir de diferentes perspectivas, que podemos encontrar, em parte, nestas biografias. Miguel Melo (1911), António Cabral (1945), Viana Moog (1945), João Gaspar Simões (1945 / 1980), Luís Viana Filho (1983), José Calvet de Magalhães (2000) e Maria Filomena Mónica (2001) representam as diversas leituras possíveis. E, afinal, temos de recordar (com o exaustivo autor da obra hoje referenciada) a afirmação de Virgínia Woolf: “um clássico é uma obra que provoca incessantemente uma vaga de discursos críticos sobre si, mas que continuamente se livra deles”. É a vida própria das obras clássicas que tem de ser lembrada, e, no caso de E Q., a relação indissociável entre a obra e o autor é particularmente importante, uma vez que há uma intenção transformadora da sociedade (como foi defendido na conferência do Casino Lisbonense) no acto de escrever. A biografia de A. Campos Matos é um repositório rigoroso e exaustivo, constitui um trabalho de minúcia e beneditino, de longa data. Como o próprio tem afirmado, não se trata, porém, de substituir obras anteriores da mesma temática, mas sim de arrumar ideias e elementos, tantas vezes perdidos ou esquecidos entre considerações subjectivas ou momentâneas. Nesse sentido é um bom serviço prestado à cultura portuguesa, que completa ou sistematiza elementos já constantes noutras obras do autor (fotobiografia, epistolografia, dicionário). Permito-me salientar a inclusão da cronologia geral da vida e obra (da maior utilidade), a referência especial à amizade fraterna com Oliveira Martins e à influência exercida pelo “Portugal Contemporâneo”, a análise das controversas relações com Ramalho Ortigão e Jaime Batalha Reis, das polémicas com o inefável opositor Manuel Pinheiro Chagas, do confronto com Camilo Castelo Branco, da presença de Eduardo Prado (com o delicioso episódio dos empenho do brasileiro para que Eça vá para o Rio, contra a sua vontade – “Safa, que Prado! E ainda por cima tive de te mandar um telegrama que me custou mais de dois francos. Foi por quanto me ficou essa legação”, com dirá a Bernardo Pindela), isto além do encontro com António Nobre, excelente oportunidade para termos um curioso retrato do escritor fora do círculo dos mais próximos… A biografia agora disponível merece ser uma segura obra de referência, para ter sempre à mão quando se tratar de Eça de Queiroz e da sua geração – o que é já muitíssimo.

Guilherme d'Oliveira Martins

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