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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

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Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

 

de 27 de Setembro a 3 de Outubro de 2010

Eduardo Lourenço escreveu «A Morte de Colombo – Metamorfose e Fim do Ocidente como Mito» (Gradiva, 2005) a pensar das comemorações de 1992 relativas à chegada dos europeus à América, no entanto este conjunto de ensaios funciona hoje com maior pertinência do que há vinte anos, porque questiona o Ocidente como mito, num momento em que os Estados Unidos e a Europa estão confrontados com a necessidade de encontrar respostas diferentes perante a emergência de novas potências, dotadas de novas características e de preocupações antes não suspeitadas. A recente crise económica e financeira obrigou já o Ocidente a repensar-se, diante da impossibilidade de tornar a ilusão realidade. Os dois lados do Atlântico deixaram de poder pensar-se em termos de aliança e de confronto tradicionais. A ordem saída da Segunda Grande Guerra acabou. Resta-nos repensar o mito…

POLARIDADES DIFUSAS
No tempo em que as polaridades difusas, que caracterizam o mundo contemporâneo, põem em causa o eixo Europa – América, como decisivo para a evolução das próximas décadas, deparamo-nos com a afirmação das potências emergentes – Brasil, Rússia, Índia e China – e com muitas dúvidas sobre o futuro dos Estados islâmicos e os riscos do “choque de civilizações”. Sem cair na tentação de olhar o “nosso caso”, é bom que olhemos a evolução futura a partir de Portugal, na nossa qualidade de varanda da Europa, na acepção da metáfora pessoana. Eduardo Lourenço (EL) pensou bem este tema, por antecipação, nas comemorações da chegada de Colombo à América e intitulou uma notável série de ensaios sobre as novas relações com o Novo Mundo usando a fórmula da morte de Colombo, como símbolo europeu sob os efeitos da usura do tempo. «A Morte de Colombo» merece ser relido nesta década, uma vez que a reflexão que contém ultrapassa em muito o diferendo conjuntural sobre as comemorações. Vem à baila Oswald Spengler e o «Declínio do Ocidente» (1918-1923) sob os efeitos devastadores da Primeira Guerra, quando tudo estava apenas interrompido, à espera do desfecho e da tragédia final. Muita água passou sob as pontes da História, mas o tema não deve ficar no esquecimento. É certo que é difícil aceitar as ideias de Spengler. Falava sob a óptica organicista e reportava-se (a partir de uma análise de oito culturas – babilónica, egípcia, chinesa, indiana, maia-azteca, clássica greco-romana, arábica e ocidental euro-americana) a lentas evoluções das fases apolíneas para os momentos fausticos. O Ocidente conheceria, assim, um longo crepúsculo, caracterizado ou por um inexorável fim ou por um dourado e dramático declínio. Gibbon, no século XVIII, usou o mesmo método para analisar a decadência do império romano, mas a distância e a consolidação dos acontecimentos talvez tenham corrigido as fragilidades metodológicas usadas pelo estudioso. O século XX trouxe a barbárie, e se num primeiro momento a profecia parecia realizar-se rapidamente em vez do longo crepúsculo preconizado, a verdade é que o “milagre” do fim da Guerra (1945) pareceu apontar para um novo recomeço, em que os EUA se tornariam o epicentro do Ocidente, seguindo a herança imperial romana.

EUROPA FORA DA EUROPA
A América começou por se construir como Europa («Europa fora da Europa»), mesmo adquirindo um difuso complexo de superioridade nos Estados Unidos, por contraponto a um sentimento emancipador nas Américas Central e do Sul. Em 1992, o que apareceu foi a rejeição da Europa como «mãe ou madrasta do Novo Mundo», em nome da resistência ancestral do Eldorado colonizado e corrompido. E, para Eduardo Lourenço, trata-se de uma «história de pais e filhos que se não reconhecem ou se disputam um tesouro comum – e antes de mais o da sua própria imagem – viveu, e ainda não deixou de viver, embora há menos tempo, a história real e literária de dois Ocidentes – o Descobridor, ou que assim se cria – e o do Novo Mundo descoberto, prometido num dos seus ramos ao Império do Mundo. Ou à sua ficção». No entanto, mais importante do que Colombo e 1492, que foram (apesar de tudo) circunstanciais, trata-se de uma nova gramática das civilizações, em que o planeta se torna resultado de várias influências e do apagamento dos impérios tradicionais. Afinal, as comemorações de 92 anteciparam o que se tornou moeda corrente: às potências tradicionais, ou à sombra delas, contrapõe-se hoje o surgimento de novas realidades e de novos poderes, com características diversificadas, que vão do populismo étnico até à reemergência confessional, quando não teocrática.

TENSÕES CIVILIZACIONAIS
A crise do Médio Oriente, as tensões civilizacionais, a consciência de que a Europa e a América não poderão, só por si, ditar as regras para o equilíbrio do mundo, a compreensão de que podemos estar a reviver um “Apocalipse Alegre” (H. Broch) ou um “laboratório do fim do mundo” (K.Kraus) – tudo isso nos obriga a pensar a cultura como criação e como hierarquia de valores. Para EL, o «filhos de Colombo» parecem precisar dessa morte para poderem «crer que o Paraíso é mesmo nessa América onde (Colombo) aportou para fugir do Velho Mundo». É um sistema de mitos que se transforma, e a ideia de Ocidente sofre abalo. «É na realidade que o mito se alimenta, é no mito que a realidade se torna significante. Isto é sabido, está emblematicamente nos Lusíadas, mas mais instrutiva é a metamorfose a que o tempo submete os mitos quando a realidade que os exigir deixa o seu lugar à nostalgia dela. Foi e é o nosso caso». O mundo de polaridades difusas obrigar a atender às diferenças e à incerteza. Por isso, longe de se pensar que deixou de haver espaço para o Ocidente, o que importa é compreender que o proteccionismo e a tentação das respostas fragmentárias e isoladas constituem erros irreparáveis. O mundo deixou de poder ser centrado no Ocidente, e a resposta à decadência está na compreensão das fragilidades e das ameaças. Não acabou Roma «corroída do interior pela incapacidade de harmonizar as diversas forças do seu Império e de resistir às pressões que os chamados ‘bárbaros’ exerciam ao longo das fronteiras que se confundiam com as do mundo politicamente organizado»?

DE LAS CASAS A VIEIRA
Pensando em Colombo e na colonização europeia, só o tempo tornou evidente que a Europa não iria «prolongar-se no mundo que acabava de ser descoberto, mas transfigurar-se e, de certo modo, negar-se». Eis o paradoxo que o tempo revelou. Afinal, era necessário voltar atrás para que fosse recuperada a legitimidade no tocante ao conceito não realizado de dignidade universal das pessoas. O exemplo do colonizador tirou-lhe autoridade moral e se pensamos na invocação da «paz perpétua» de Kant ou do humanismo de Las Casas e de António Vieira, temos de perceber as contradições e os seus efeitos. As explicações providencialistas e o primado das explicações redutoras não ajudam. Herculano e Antero apelaram à vontade. Leia-se EL sobre o Quinto Império: «Ligar o Quinto Império de Vieira a outros sonhos messiânicos ou utópicos, de que a cultura do Ocidente está cheia, não esclarece grande coisa. Ele é, sobretudo, o devaneio imperial português no momento exacto em que Portugal escapa do seu cativeiro da Babilónia, e em que o imperialismo bem vivo da nova Europa não católica se expande pelo mundo». E se se fala em devaneio é para fazer perceber que se trata de ligar o místico e o político, a profecia e a decisão. Vieira deseja um «suplemento de alma», um sentido de acção, que se demarque dos «fumos da Índia» do século anterior. É o império da língua e do espírito que propõe. E «ele oferece-nos a essência de uma palavra que só se pode apoderar do sentido da realidade através do espelho de Deus. Como sua sombra». 

Guilherme d'Oliveira Martins

ECOS DO CENTENÁRIO DA REPÚBLICA

por Guilherme d’Oliveira Martins

Quando o Sumo Pontífice, o Papa Bento XVI, pouco depois de chegar a Lisboa, em Maio último, fez questão de saudar as instituições e referir o facto de decorrer em 2010 o ano das comemorações do primeiro centenário da implantação da República em Portugal quis dar um sinal claro de que a Igreja Católica defende e respeita a concepção segundo a qual as esferas política e religiosa estão separadas e não se confundem, como o Concílio Vaticano II afirmou com muita clareza, na sequência da tradição e do ensino multisseculares da Boa Nova.

De facto, a Igreja Católica não se identifica com regimes políticos e a história revela terem tido tantas vezes os excessos clericais resultados perniciosos, tendo o anticlericalismo de há cem anos sido superado, graças a uma evolução complexa e longa na qual muitos católicos assumiram genuinamente os ideais republicanos.
Nesse sentido, o sinal do Papa foi fundamental, em consonância com a atitude da Igreja portuguesa, de acordo com a mais moderna historiografia e segundo uma preocupação fundamentalmente prospectiva, não centrada no reabrir de feridas antigas e de difíceis debates passados, muito marcados pelo drama histórico de uma sociedade que ao longo de todo o século XIX viveu dividida entre o tradicionalismo rural e o cosmopolitismo urbano – desde as guerras civis até às questões religiosas e sociais com que a monarquia constitucional e o republicanismo tiveram de lidar. Aliás, um estudo atento dos acontecimentos que levaram à implantação da República permite compreender que há influentes factores de continuidade e de ruptura, não podendo esquecer-se que há em Portugal um republicanismo intelectual latente desde a Revolução de 1820 e da Constituição de 1822, que se manifesta na Regeneração de 1851 e no compromisso do Acto Adicional à Carta Constitucional (1852).
Com efeito, há um republicanismo no novo partido regenerador, do mesmo modo que no final do século haverá regeneradores a aderirem à causa da República, de que o exemplo mais marcante é o de Bernardino Machado.
O Portugal profundo e o Portugal moderno sempre se digladiaram e as feridas de 1820 (depois da saída da corte para o Brasil e da ausência do Rei, dos efeitos das invasões francesas, do peso da influência britânica, da subalternização da Metrópole…) prolongaram-se nas guerras civis, só terminadas no meio do século. A República de 1910 reafirmou, pois, a tendência liberal oitocentista. A divisão do País, desde Pombal, passando por D. Pedro IV, arrastou a sociedade toda e por isso a questão religiosa evidenciou-se, naturalmente – desde as diatribes de José Agostinho de Macedo até à influência política de sinal contrário do Bispo de Viseu, D. António Alves Martins, um liberal dos quatro costados.

 

 D. Manuel Clemente
(GNU Free Documentation License, Version 1.2)

O Portugal moderno resulta de uma síntese muito complexa e difícil de elementos contraditórios. Como tem salientado D. Manuel Clemente, em 1910, “no campo católico havia adeptos do regime republicano em abstracto, como o (…) Padre Sena de Freitas e antigos monárquicos que aceitavam bem o novo regime como Abúndio da Silva, julgando-o até preferível ao anterior no tocante à Igreja: e também havia monárquicos que o continuavam a ser, negando a possibilidade de resolver o problema religioso sem voltar ao regime anterior”. Já Luís Salgado de Matos tem chamado a atenção para a evolução sentida depois de 1910 nas relações entre o Estado e a Igreja, no sentido da normalização, em virtude da entrada de Portugal na Grande Guerra, da política colonial da República, especialmente cautelosa quanto ao Padroado e às missões católicas (merecendo atenção a figura do Padre Joaquim Alves Correia e os missionários do Espírito Santo).
Refira-se, ainda, o envolvimento da República na beatificação de Nuno Álvares Pereira, num tempo de valorização patriótica em que a assistência religiosa ao Corpo Expedicionário Português foi importante, e o facto de, na homenagem prestada aos heróis desconhecidos da guerra, no Congresso da República (em 7 de Abril de 1921), o Presidente António José de Almeida ter qualificado o Condestável como "companheiro" de Portugal, personificando os ideais cívicos e republicanos, para além dos valores místicos e proféticos.
Cem anos passados, tem sido possível com serenidade e sentido crítico, olhar a história contemporânea a uma outra luz, fora do dramatismo da questão religiosa e dos seus efeitos, que a Democracia e a República Moderna saídas do movimento de 25 de Abril de 1974 e o regime da Constituição de 1976 souberam prevenir e superar positivamente.
As iniciativas tomadas no âmbito do centenário, a participação de uma jovem plêiade de investigadores, a preocupação de encarar os valores da República para além das circunstâncias históricas como fundamentos de uma sociedade aberta, pluralista, cosmopolita e democrática constituem factores positivos que nos permitem tirar boas lições da experiência comemorativa.

de 20 a 26 de Setembro de 2010

“O Bazar Alemão” de Helena Marques (D. Quixote, 2010) é um romance com todos os ingredientes para prender os leitores do princípio ao fim e por boas razões – a narrativa, o enredo, a escrita, as personagens, o tema, o tratamento das atitudes e dos sentimentos. E é preciso que se diga que a autora, tem provas dadas, como escritora segura, com excelente domínio da língua portuguesa e da arte de contar. E que devemos pedir, antes de tudo, de um romance? Que nos motive, que nos interesse e que nos deixe com a sensação de que nos foi contada uma história com princípio, meio e fim.

UM CAMINHO SEGURO
Helena Marques é uma escritora de raiz. Os seus livros merecem referência e atenção especiais – “O Último Cais” (1992), “A Deusa Sentada” (1994), “Terceiras Pessoas” (1998) e “Íbis Vermelhos da Guiana” (2002), bem como o volume de contos “Ilhas Contadas” (2007). Apesar de nascida em Carcavelos, cedo foi para a Madeira, de onde era originária uma parte da sua família. Iniciou a carreira jornalística em 1968 no “Diário de Notícias” do Funchal, passando, de regresso a Lisboa, pelos jornais “República”, “A Luta” e “Diário de Notícias” de Lisboa, onde foi directora-adjunta até 1992. Sendo uma romancista com provas dadas, não se pode dizer que é uma jornalista no território do romance. O caso de Helena Marques é especial, uma vez que se nota nela uma clara distinção entre o modo de usar a escrita jornalística e o domínio do romance. Como escritora, revela uma grande facilidade na escrita e um excelente domínio da narrativa. Se é verdade que eu próprio tenho incentivado as incursões no romance de vários jornalistas, uma vez que é fundamental que a escrita seja cultivada, independentemente de o ser por escritores profissionais ou de vocação, a verdade é que devemos tratar este caso como singular. De facto, a renovação da narrativa pode e deve ser conseguida e enriquecida, através de múltiplos contributos, de origens diversas, porém, o caso de Helena Marques é diferente, com ela não se notam os tiques do jornalista, uma vez que sabe distinguir a técnica noticiosa de um relato romanesco. Assim, a escritora duplica-se, com assinalável qualidade, tendo sido simultaneamente uma das grandes jornalistas da sua geração, afirmando-se também como uma romancista de provas dadas. O mundo do jornalismo também perpassa no livro, apesar de tudo: Mike começa a trabalhar para P.G. Brennan, o proprietário do “Notícias”, onde aprende o que é o “editing” e o que é a “ded line”… É um testemunho afectuoso da autora…

UM ENREDO APAIXONANTE
Elisabeth e Eugen Beckmann são as referências fundamentais desta obra. Anne Martina Emonts fez uma investigação histórica de grande valia sobre as perseguições sofridas pela comunidade de judeus residentes na Madeira – que a escritora aproveitou com grande eficácia. E os Beckmann (personagens reais, que a autora conheceu) foram alvo dessas perseguições, persistentes e atrozes. O romance é o cumprimento de uma obrigação moral devida a essas figuras reais, que a Helena Marques conheceu, aparentemente belas, afáveis e felizes, mas que escondiam o grande drama da suspeita e da culpa – uma suposta culpa ancestral, justificativa de uma perseguição intolerável, que levou ao extermínio da “solução final”. “O Bazar Alemão” cruza uma história real com personagens fictícias, e esta é a forma pela qual melhor se pode compreender um tempo em que o heroísmo se confundiu (como quase sempre acontece) com a normalidade, com o medo e com a dúvida… “O Funchal está cheio de boatos de guerra… Tu que vens de Londres, tens informação mais segura para nos dar?”… De facto, há um pano de fundo, muito bem descrito e analisado, que é o da banalização do mal (de que fala Hannah Arendt). Miriam e Izaak são dois exemplos significativos. Apesar de vindos da Polónia vão ser alvo das investidas do casal Bromberger. É trágica e cómica a cena de Maria Bromberger, “abrindo o saco”, para tirar três pequenas bandeiras alemãs, bandeiras da cruz suástica: “e com um grande sorriso declarou-lhes que deveriam colocá-las nas duas montras do estabelecimento e a terceira sobre o balcão, logo à entrada”… Helena Marques é competente e rigorosa, juntando razão e emoção. Sem teorizar, sem fazer considerações teóricas sobre o tema, diz tudo o que é preciso dizer, através dos diálogos, das ameaças, das suspeições, das pressões… Sentem-se o ódio e a cegueira destrutivos, mas também o amor da vida e a capacidade de ultrapassar a tentação do decaimento inexorável. O final é uma boa ilustração disso mesmo (com Elisabeth e Eugen a encontrarem uma saída para um nó górdio que parecia não ter solução) – mas abster-me-ei de qualquer revelação sobre o enredo e a história.

UM HORIZONTE NEGRO
A guerra é uma sombra terrível. Ela está sempre no horizonte, mesmo num cenário de placidez madeirense. Sente-se claramente o que mais inquietante revela a história europeia da barbárie, nesse Portugal dos anos trinta, em que a neutralidade era subtilmente comprometida. Tudo isto, no último lugar em que tal poderia ser concebível, num lugar em que se julgaria que o medo não podia instalar-se, perturbador e omnipresente. E o mais estranho e paradoxal é que em “O Bazar Alemão” é a sombra da guerra que ainda não aconteceu que se sente. De facto, não se assiste nem a um só minuto de guerra autêntica, nem a um só momento determinado pela guerra declarada em 1939. No entanto, é já a guerra que dita as suas leis, como através dos ecos do bombardeamento de Guernica. Helena Marques apenas retrata o acastelar das nuvens negras no horizonte. A tempestade anuncia-se, e a história suspende-se no momento em que a conflagração em territórios distantes vai ter lugar. Mas isso já não é importante para o casal Beckmann, uma vez que, temos a sensação de que, a partir da última página do romance tudo vai correr a favor deles, por muito que o sofrimento e a tragédia atinjam níveis inconcebíveis de violência. Com muita inteligência e o conhecido domínio da palavra, Helena Marques não precisa de dizer tudo, basta-lhe aludir, referenciar e assinalar subtilmente. E sente-se ainda a memória familiar, bem expressa na sentida dedicatória do livro à memória do avô Vasco Gonçalves Marques, senador da República, cidadão exemplar que incutiu na família o culto da liberdade e da honra.

A PRESENÇA DAS MULHERES
Mas há ainda o papel especial reservado às mulheres e ao seu heroísmo sereno. Helena Marques não esconde a sua costela cidadã nessa valorização do feminino, factor marcante de igualdade e de diferença. E muitas vezes ao ler estas páginas, lembramo-nos de Margarida Dulmo, outra grande heroína insular, imortalizada por Vitorino Nemésio. De facto, contra a ameaça do medo, temos a força da determinação do sentimento e do amor. Com grande subtileza, mas com fronteiras claras, em nome da dignidade e da emancipação, o que se nota nesta obra de Helena Marques? O mundo exterior coexiste com a alma das casas, e o mundo interior confronta-se com a ambivalência do amor. E a força de ânimo (antes de mais das mulheres) permite que se assista ao combate silencioso e pacífico de construção de correntes de generosidade e de abnegação, contra a imposição do ódio. E se falo de ambivalência do amor é porque a violência e a injustiça reclamam a entrega e a compreensão. Daí o sublime final, que não pode deixar de ser citado como símbolo emblemático de toda a obra: “A minha casa és tu. Onde estiveres será sempre a minha casa” – diz Eugen a Lisbeth. Sente-se a marca da autora, não como uma cedência subjectivista, mas como um sinal de reconhecimento pela importância da memória, que as casas trazem consigo e que as sagas romanescas conseguem recuperar com a sua força original.

Guilherme d'Oliveira Martins

 

 

de 13 a 19 de Setembro de 2010

 

 


Guy Coq escreveu recentemente uma interessante obra centrada na reflexão sobre o compromisso político e a democracia no pensamento de Emmanuel Mounier (1905-1950) – «Mounier - L’engagement politique» (Michalon, 2008, coll. Le bien commun). Trata-se de um livro fundamental para a compreensão do papel desempenhado pelo autor de “Le Personnalisme” na evolução do pensamento do século XX. Junta-se, assim, a outras obras importantes sobre o filósofo francês, como as da autoria de Jean-Marie Domenach e de Etienne Borne, para além da história política da revista “Esprit” da autoria de Michel Winock. No entanto, temos de lembrar que uma das principais obras sobre o pensamento de Mounier continua a ser “Emmanuel Mounier” de João Bénard da Costa (Morais, 1960), que é muito mais do que uma antologia, como o autor a apresentou no momento em que foi lançada. Na Europa, o livro de João Bénard é uma referência indiscutível, que agora ressurge, perante a obra de Guy Coq e o reconhecimento da actualidade do pensamento de Mounier.


Jean Lacroix, Emmanuel Mounier e Jean-Marie Domenach

 

A ACTUALIDADE DO TEMA DA DEMOCRACIA
O tema da democracia não deve sair da ordem do dia. Sobretudo as relações entre democracia e comunicação obrigam a repensar a participação e a representação. Muitas vezes sentimos que para alguns a democracia é um mero procedimento, que se mantém por razões de inércia e por força da competição e da concorrência das sociedades modernas. Nesse sentido, o Estado de direito limitar-se-ia a respeitar alguns princípios formais, que por motivos de utilidade se perpetuariam, mesmo sem uma cidadania activa partilhada. Acontece, porém, que a democracia e o Estado de direito são mais do que métodos. O primado da lei tem de ser completado pelas legitimidades da origem e do exercício, a justiça tem de ser um valor enraizado civicamente, ligada à liberdade e à igualdade, enquanto o pluralismo deve concretizar-se através do equilíbrio entre poderes, de que falava Montesquieu. A cada passo, sentimos, porém, que a mera liberdade económica e o fundamentalismo do mercado adulteram a liberdade cívica e política e que a sociedade de comunicação de massas leva à invasão dos espaços pessoais de autonomia e liberdade – enquanto a legitimidade formal tende a querer prevalecer sobre a legitimidade de exercício. Hannah Arendt sobre o totalitarismo, Ortega y Gasset e Elias Canetti sobre o poder e as massas, Karl Popper, Isaiah Berlin e Ralf Dahrendorf sobre a sociedade conflitual e a preservação da liberdade cívica contribuíram decididamente no século XX para que o tema da democracia não fosse tratado como o de um mero instrumento formal.

 

O EXEMPLO DE MOUNIER
Emmanuel Mounier, cujos sessenta anos da morte (22.3.1950) se assinalaram este ano, foi um dos autores que mais profundamente pensou o tema da democracia. E o livro de Guy Coq conduz-nos sabiamente à reflexão sobre a essência da democracia. Nos «Cahiers de l’UNESCO», em Abril de 1949, o filósofo escreveu «Réflexions sur la démocratie», onde abordava o problema da tendência totalitária das democracias ditas populares, nas quais «o ideal é a anulação de toda a distância, da distância entre governos e governados, ente o Estado e a nação, todos se tornando governantes (inquisidor, polícia, disciplinador do seu próximo), da distância entre governados pela generalização do conformismo e da solidariedade no terror político». A partir desse texto, pensador político Jacques Le Goff salientou, em Janeiro de 1983, na revista «Esprit», sob o título “Totalidade e distância”, a importância dessa questão. «É aí que reside a falha, o ponto de fractura, o lugar da falta que põe a tónica nas referências muito sólidas duma crítica radical do totalitarismo, hoje marcado pelos trabalhos de Claude Lefort e Marcel Gauchet, que aprofundaram esta reflexão sobre a anulação da distância como matriz do totalitarismo».

 

O PERIGO DA ANULAÇÃO DA DISTÂNCIA
A sociedade onde a distância aparece anulada é a que podemos designar como a de «nós outros», que se esgota e se confunde na ausência de fronteiras entre o próprio e o alheio, entre nós e os outros, levando à promiscuidade pública – que nos recorda a anti-utopia de Yevegeny Zamyatin (1884-1937) intitulada, exactamente, «Nós» (e que deve ser lida com «Mil Novecentos e Oitenta e Quatro» de George Orwell). Em segundo lugar, depois dessa sociedade sem distância, encontramos a «sociedade vital», cujo elo é constituído pela vida em comum e por haver um fluxo vital, biológico e humano, orientado para o viver melhor. Aí ainda não há a relação de pessoa a pessoa – «cada um fica no plano de uma vaga representação do todo», faltando a ligação entre os valores e cada «vocação pessoal». Já não temos a sociedade de nós outros, mas estamos ainda perante uma sociedade fechada, caracterizada pelos seus interesses e o seu utilitarismo imediato. «Se ela não for animada do interior por uma verdadeira comunidade espiritual, tende a fechar-se sobre uma vida cada vez mais mesquinha e sobre uma afirmação cada vez mais agressiva». Em terceiro lugar, para além da sociedade da anulação da distância e das sociedades vitais, Mounier fala da «sociedade razoável». Esta procura compreender que a ciência, a razão objectiva e o direito são mediadores fundamentais, ainda que insuficientes para assegurar a existência de uma comunidade pessoal criativa e de responsabilidades partilhadas. A sociedade de «nós outros» supera a insociabilidade do indivíduo isolado, as sociedades vitais preocupam-se com a sobrevivência colectiva, enquanto a sociedade razoável procura ir mais além, aceitando a imperfeição e propondo a articulação entre as diferenças, considerando a comunidade como uma «pessoa de pessoas». «Quantas famílias mais não são do que falsas Pessoas colectivas fundadas no desprezo ou na segurança, no hábito ou no dá-me dá-me»? E, segundo Emmanuel Mounier, a maneira de chegar ao compromisso leva-nos à «distância unitiva». E assim a verdadeira comunidade deve ser a «pessoa de pessoas», na qual o lugar de cada um é insubstituível e essencialmente desejado pela ordem do todo. Deve haver distância, mas também capacidade de agir em prol do bem comum.

 

DEMOCRACIA INCOMPLETA
A democracia é imperfeita e incompleta, obrigando ao compromisso pessoal, à cidadania activa. As pessoas e os cidadãos não se submetem a qualquer abstracto impessoal. Os valores não são realidades absolutas. «O seu verdadeiro lugar é o coração vivo das pessoas». Como afirma Guy Coq, os valores «mediatizam as relações inter-subjectivas, permitindo às pessoas sair da sua solidão, fundando a comunicação e abrindo a via do universal». A dignidade humana está enraizada na sociedade concreta e nas pessoas de carne e osso. E a sociedade razoável reclama o respeito mútuo e o amor entre as pessoas, mas também o compromisso («engagement»), como capacidade de correr riscos, de sujar as mãos, de recusar a tentação da pureza (como conciliação com a injustiça e a «desordem estabelecida») e de compreender as diferenças e os conflitos, respondendo com diálogo e acção. Daí Mounier sublinhar «a importância da fidelidade e da presença no mundo do compromisso, querendo centrar a acção no testemunho e não no sucesso». Por outro lado, a sociedade política democrática tem de dar espaço à autonomia e à dignidade pessoais – daí a «luta contra os poderes», para usar a expressão de Gurvitch, e a necessidade de garantir a soberania do direito sobre o poder. Não é «o direito que nasce do poder, é o poder, elemento estranho ao direito, que deve incorporar-se no direito, para se transformar em direito». Assim, a democracia (sempre incompleta) vai-se aperfeiçoando, através da consciência (profética e política) de que «o poder atrai os corrompidos e corrompe quem atrai». Daí que a prevenção e a consolidação da democracia devam basear-se na cidadania activa. E o direito é o mediador entre as liberdades e a organização, pondo no centro os acontecimentos, o compromisso das pessoas e a dignidade humana… Essa mediação é muito mais do que jurídica ou filosófica, trata-se da ligação entre os valores éticos e os acontecimentos de que somos protagonistas e espectadores, o que nos permite reconhecer o valor universal da dignidade humana, como pedra angular da construção do mundo da vida, que funda a comunicação e abre a via do universal.

 

Guilherme d'Oliveira Martins

 

AS COMEMORAÇÕES PROMOVIDAS PELA APE
PROSSEGUEM NO AUDITÓRIO DO MONTEPIO
COM DEBATE SOBRE MUTUALISMO

No ano do Bicentenário do nascimento de Alexandre Herculano, que nasceu a 28 de Março de 1810, a Associação Portuguesa de Escritores, preservando o direito à memória, está evocar esta grande e destacada figura da Cultura Portuguesa.

No auditório do Montepio, Rua do Ouro, em Lisboa, no próximo dia 4 de Outubro, pelas 18H00, vai ter lugar o debate “Herculano – Dois Séculos de Mutualismo”, que assinala o reinicio do ciclo Alexandre Herculano 200 Anos Depois, e contará com as intervenções de António Valdemar, Guilherme de Oliveira Martins e Vítor Melícias.

A temática do Mutualismo é um pretexto para uma viagem ao século XIX, tão marcado pelo triunfo das ideias liberais onde a solidariedade teve em Prodhom um dos seus paladinos. Em Portugal, Alexandre Herculano é também um dos defensores do Mutualismo tendo contribuído para a fundação da primeira caixa mutualista.

Coordenada pelo escritor Luís Machado, esta manifestação cultural, promovida pela Associação Portuguesa de Escritores, integra um ciclo de palestras, com debates e uma mesa-redonda, visando destacar o pensamento e a grandeza de um Homem que foi um combatente da Liberdade. Liberal e justo, a intervenção política e social de Alexandre Herculano revela-nos, para além de um singular exemplo de fidelidade a ideais e valores, uma dimensão ética rara na nossa vida pública do século XIX.

Este ciclo conta ainda com a participação de João Alves Dias e José Manuel Mendes, que nos irão revelar também outras facetas do homem e do escritor, abordando temáticas como:  a maçonaria, a literatura e a cidadania. As sessões seguinte estão calendarizadas para 12 de Outubro, 18H30 (Grémio Lusitano, Bairro Alto), 19 de Outubro, 18H30 (Centro Nacional de Cultura). A encerrar o programa (26 de Outubro, 19H30, no café Martinho da Arcada) uma mesa-redonda com Diogo Freitas do Amaral, Eduardo Lourenço e Guilherme de Oliveira Martins, moderada por António Valdemar, José Manuel Mendes e Luís Machado.

O autor da História de Portugal destacou-se como impulsionador de ideários ao serviço da Liberdade, Fraternidade e Igualdade. Combatendo a injustiça e lutando pelos direitos do cidadão, Alexandre Herculano denunciou as fraquezas e as misérias de um Portugal oitocentista.

Recorde-se que a vasta obra literária de Herculano, que foi considerado, juntamente com Garrett, o introdutor do Romantismo em Portugal, vai muito para além da narrativa histórica, abraçando vários géneros que passam pelo romance, teatro, poesia e ensaio.

Alexandre Herculano 200 Anos Depois, que tem o patrocínio do Montepio Geral, mereceu também o apoio do Ministério da Cultura, Direcção Regional de Cultura de Lisboa e do Vale do Tejo, Academia Nacional de Belas-Artes, Centro Nacional de Cultura, Diário de Notícias e Antena 1.

Todas as sessões têm entrada livre, à excepção da última, no café Martinho da Arcada, que é sujeita a marcação prévia, devido à limitada lotação da sala.



PROGRAMA - OUTUBRO 2010

ALEXANDRE HERCULANO, 200 ANOS DEPOIS
BICENTENÁRIO DO NASCIMENTO

COORDENAÇÃO DE LUÍS MACHADO

Dia 4 de Outubro
HERCULANO – DOIS SÉCULOS DE MUTUALISMO
(Auditório do Montepio – Rua do Ouro) – 18H
António Valdemar, Guilherme de Oliveira Martins, Vítor Melícias

Dia 12 de Outubro
HERCULANO MAÇON
(Grémio Lusitano – Bairro Alto) - 18H30
 João Alves Dias

Dia 19 de Outubro
HERCULANO NA LITERATURA PORTUGUESA E A DIMENSÃO ÉTICA DO ESCRITOR
(Centro Nacional de Cultura – Chiado) – 18H30
José Manuel Mendes

Dia 26 de Outubro
A CONSCIÊNCIA POLÍTICA DE ALEXANDRE HERCULANO E O SEU CONTRIBUTO PARA A CIDADANIA
(Café Martinho da Arcada – Praça do Comércio) – 19H30
Diogo Freitas do Amaral, Eduardo Lourenço e Guilherme de Oliveira Martins

Moderadores: António Valdemar, José Manuel Mendes, Luís Machado

ORGANIZAÇÃO: ASSOCIAÇÃO PORTUGUESA DE ESCRITORES

 

PEREGRINAÇÃO AO JAPÃO

Contagem decrescente - Japão (11)

Hoje recordamos um conto tradicional japonês segundo Wenceslau de Moraes, que no-lo compara com a fábula mdediterrânica da Cigarra e da Formiga!...

O TIRA-OLHOS E A CASTANHA
por Wenceslau de Moraes

 

 

"Chegara o Inverno, frígido. Um tira-olhos, que fora resistindo até então, mas a custo, abrigando o corpo esguio e nu no quimérico agasalho das suas asas de gaze transparente, veio por acaso pousar num castanheiro. Então, fixando uma castanha, dirigiu-lhe, suplicante este discurso:
- "Ó senhora castanha, vossemecê, para se preservar das intempéries, usa de uma camisa junto ás carnes, por cima da camisa veste um kimono de duas consistências; e, ainda por cima traz uma capa forrada de espinhos e de pêlos. Pois tenha dó de mim, que nada possuo para abrigo senão estas asas de gaze transparente, ceda-me um dos seus vestidos..."
Responde-lhe a castanha prontamente:
-"Ora essa! Você durante todo o Verão, passou o tempo em pândegas, em voos descuidados, em amores boémios, de regato para regato, de flor para flor, sem cidar de precaver-se e de fazer alguma roupa. Eu, modestamente, sem sair do pouso onde nasci, fui tecendo e cosendo os meus vestidos, preparando-me para o frio. Pois governe-se agora como possa, meu amigo e, se tem frio...tenha paciência".
Leitor amigo: não vos parece estar ouvindo, com ligeiras modificações de pouca monta, a fábula da cigarra e da formiga? É que a moral dos povos é uma e única (...). As nossas classificações antropológicas que chamam a este individuo um Japonês, àquele um Grego, àquele outro um Português, têm apenas a importância éfemera que satisfaz num momento dado o grau das nossas concepçôes. Cada ser humano, havendo já vivido no passado imerso e sem distinção de latitudes, milhões e milhões de vidas, retém em si a impressão das múltiplas recordações das suas existências anteriores, reduzidas a qualidades de alma; o que arrebanha todos os homens num só grupo - a Humanidade (...)."
 
Fonte: Fala a Lenda Japonesa, Wenceslau de Moraes

Por Guilherme d'Oliveira Martins

 

 

 

1. Os acontecimentos recentes no mundo da economia e das finanças obrigam a que tiremos lições no campo da organização da sociedade. Depois dos "trinta gloriosos anos" (1945-75) e da transição dos anos oitenta e noventa dominada pela massificação e popularização da revolução tecnológica e pela ocorrência da chamada "bolha imobiliária", estamos chegados a um momento em que é indispensável repensar os fundamentos das economias, sem a tentação de recorrer a receitas uniformizadas nem ao erro de persistir nas soluções que conduziram à grave situação a que chegámos. O fundamentalismo do mercado revela-se incapaz de responder às exigências do desenvolvimento humano. O estatismo centralizado e burocrático não permite a eficiência económica e social e a equidade. Os modelos mistos, que se multiplicam, apresentam tal variedade de soluções, que, só por si, não constituem respostas aos problemas actuais – pelo que se torna necessário aproveitar a sua plasticidade para que correspondam à complexidade das novas situações. Ao contrário do que possa parecer à primeira vista, as mudanças a introduzir no contrato social obrigam a uma tomada de consciência sobre a importância da coesão económica, social e territorial, da confiança e do capital social, que terão de ser salvaguardados, através da consideração das circunstâncias que mudam e dos novos factores que a cada passo se manifestam. No Ano Europeu de Luta contra a Pobreza e Exclusão Social (2010) estas questões têm de ser pensadas, não isolando o tema da pobreza e da exclusão, mas integrando-o na concepção e concretização das políticas públicas e das respostas sociais.

2. Nas sociedades europeias desenvolvidas, o Estado Social é afectado pela evolução demográfica, pela descida das taxas de natalidade, pelo aumento da esperança de vida, pelo envelhecimento da população e pela alteração da relação entre os contribuintes e os beneficiários dos sistemas de cobertura de riscos sociais. Nas sociedades menos desenvolvidas as necessidades fundamentais não se encontram satisfeitas e a pobreza, a fome, a doença e a ignorância pesam tragicamente. Como afirma o Papa Bento XVI: «Cresce a riqueza mundial em termos absolutos, mas aumentam as desigualdades. Nos países ricos, novas categorias sociais empobrecem e nascem novas pobrezas. Em áreas mais pobres, alguns grupos gozam duma espécie de superdesenvolvimento dissipador e consumista que contrasta, de modo inadmissível, com perduráveis situações de miséria desumanizadora. Continua «o escândalo de desproporções revoltantes ». Infelizmente a corrupção e a ilegalidade estão presentes tanto no comportamento de sujeitos económicos e políticos dos países ricos, antigos e novos, como nos próprios países pobres. No número de quantos não respeitam os direitos humanos dos trabalhadores, contam-se às vezes grandes empresas transnacionais e também grupos de produção local. As ajudas internacionais foram muitas vezes desviadas das suas finalidades, por irresponsabilidades que se escondem tanto na cadeia dos sujeitos doadores como na dos beneficiários.» (Caritas in Veritate, 22).

3. O fenómeno da fragmentação social, que é transversal, determina a diferenciação e a complexidade dos problemas da sociedade com raízes diversificadas – o desemprego estrutural nas faixas etárias mais elevadas a que se soma o desemprego dos mais jovens, com especial incidência para os que têm menores qualificações. A quebra das taxas de poupança (muito significativa em Portugal) e o aumento do endividamento geram fragilidades no desenvolvimento das economias e nas perspectivas de crescimento potencial. O mercado, só por si, e a lógica produtivista não têm respostas para estes novos problemas. As economias dos serviços não geram os recursos indispensáveis para a sustentabilidade do desenvolvimento. O aumento das desigualdades e o agravamento das disparidades sociais exigem a adopção de medidas que reforcem a justiça distributiva – ligando a livre iniciativa e a responsabilidade social. As economias mistas têm de recusar, a um tempo, o excesso do centralismo do Estado e a ilusão da concorrência mercantil – a propriedade privada, a livre iniciativa económica, o respeito pelo mercado têm de ser completados pela iniciativa social e pela economia solidária, que terão de encontrar instrumentos que favoreçam a criação, a inovação e a criatividade.

4. A crise do Estado-providência, a um tempo financeira, social e política, obriga a encontrar, através da diferenciação positiva, mecanismos de repartição que garantam a igualdade de oportunidades e a correcção das desigualdades. A lógica universalista indiferenciada não permite corresponder às situações reais de carência. A pobreza e a exclusão social obrigam à procura das novas situações de injustiça, uma vez que a sociedade não descobre o fenómeno espontaneamente. Daí a exigência de repensar o Estado Social, a Economia Social e a Responsabilidade Partilhada. Mais iniciativa social é condição necessária para responder às dificuldades, à pobreza e à exclusão hoje sentidas. Como poderemos ficar indiferentes à persistência da grande pobreza mundial, aos mecanismos injustos de apropriação da riqueza produzida, à perda ou ao enfraquecimento dos valores humanos básicos de verdade, lealdade nos negócios, solidariedade, cooperação, serviço à colectividade ou defesa dos mais fracos?

5. Os mecanismos públicos são importantes, mas não podem ser exclusivamente estatais – Estado e sociedade civil precisam de se completar, através de uma ideia renovada de "serviço público" não confundível com "serviço estatal" nem redutível à opção Estado / mercado. Refiram-se, assim, cinco pontos sobre a responsabilidade social perante a pobreza e a exclusão social nos dias de hoje:

(a) A noção de "serviço público" não é confundível com serviço do Estado – pelo que o Estado democrático e de direito deve fortalecer-se e consolidar-se através das iniciativas sociais autónomas e voluntárias.

(b) A justiça distributiva tem de se ligar à ideia de diferenciação positiva – uma vez que quem é mais carenciado deve ser mais apoiado, devendo a ideia de partilha de recursos prevalecer sobre o consumo egoísta e o desperdício.

(c) As desigualdades sociais, a pobreza e a exclusão devem ser combatidas através de instrumentos públicos e de iniciativas solidárias, do sistema fiscal, da subsidiariedade, da participação activa dos cidadãos – quer para defesa dos recursos disponíveis quer para salvaguarda da justiça, da coesão e da confiança.

(d) O valor da poupança e do trabalho têm de ser enaltecidos e incentivados – por contraponto ao endividamento e em defesa da equidade entre gerações.

(e) A luta contra a pobreza e a exclusão social obriga ao primado do cuidado dos outros, o "care" da caridade, que nos leva do mundo dos sócios ao nosso próximo, factor fundamental na economia social moderna.

PEREGRINAÇÃO AO JAPÃO

 

Contagem decrescente - Japão (10)

 

Voltamos ao Embaixador Armando Martins Janeira, no seu livro “A Construção de um País Moderno”: - «Os grandes construtores do Japão moderno não são os políticos, mas os grandes industriais: os inventores da Sony, da National, da Honda, da Seiko, da Toyota e da Nissan, do jornal maior do mundo, o Yomiuri. Estes construtores de um novo país têm incessantemente proclamado acima de tudo a sua fé na inteligência. O progresso industrial baseia-se na circulação da informação. O Japão é o país mais bem informado do mundo. Para dar um exemplo: a Mitsui dispõe de uma rede de telecomunicações de 400 000 km, tendo vinte e quatro linhas directas para Nova Iorque; recebe diariamente quatro mil mensagens – mais que todos os ministérios portugueses juntos. Existe uma estreita ligação entre o marketing e a actividade produtiva; a Toyota, por exemplo, só produz o número de automóveis que pode vender. Os sistemas económico e industrial são rapidamente permeáveis às inovações técnicas. São mesmo sensíveis à estética: as operárias de uma fábrica em Tóquio usam uniformes desenhados por Pierre Cardin.

Pode dizer-se que o progresso japonês é apenas devido à inteligência, condicionada a três factores: o sistema de educação, a constante procura de inovação e a disciplina da organização, incessantemente aperfeiçoada.

Os elementos essenciais do sistema nipónico têm sido a produção industrial e o comércio externo. Uma das principais tarefas da diplomacia japonesa tem sido realizar a coordenação e expansão económica ao nível internacional.

A organização política e económica, embora com muitas limitações, não sofre dos defeitos e absurdos, nem da rotina, do capitalismo ocidental. O Japão adoptou do Ocidente princípios capitalistas e princípios socialistas, e sobre estas duas filosofias políticas instalou um pragmatismo são e eficaz – simbiose esta que só poderia ser realizada por quem está de fora tanto da filosofia capitalista como da comunista e pode recorrer ainda a uma forma de pensamento diferente de ambas, de raiz asiática.

Mas antes desta adopção de ideias e métodos estrangeiros está o propósito fundamental de criar um país novo, assente em novas estruturas, embora guardando ciosamente o fundo da sua ética, língua, cultura e carácter social.

Os Japoneses responderam ao desafio do Ocidente modificando a sua sociedade e elaborando um sistema de valores que visa o progresso nacional e o convívio internacional, num mundo novo orientado para a divisão internacional do trabalho e a harmonização do comércio mundial.

(…) Uma sociedade é um complexo de estruturas humanas, cuja evolução se vai
acelerando. Enquanto o Ocidente se preocupa cada vez mais com a sua segurança (…), o Japão concentra-se nos problemas da intensificação do progresso, da automatização, da humanização das grandes cidades, na regeneração do ambiente, na redução do tempo de trabalho, no preenchimento dos tempos livres, no aumento da cultura, em abrir largas perspectivas sobre o século XXI.

Cobrindo uma vasta extensão de terra e mar, rica de recursos, contando quase metade da população mundial, a Ásia começa a tomar consciência da força da sua identidade.

Aqui estão situados países de economias muito dinâmicas, como, além do Japão, a Coreia do Sul, a Formosa, Singapura; mais tarde será a China, cujo desenvolvimento, como previu Napoleão, vai provavelmente decidir o futuro do mundo.

O Japão, procurando guardar a sua identidade e pertença à Ásia, quer alargar ao mesmo tempo os seus laços com o Ocidente, dupla posição que poderá favorecer o esclarecimento de uma política comum nos problemas Norte-Sul e trazer benefícios ao progresso mundial.

Escritores há que prevêem que o próximo milénio será de predomínio da Ásia.

O Japão seleccionou do Ocidente as ideias e os estímulos que pudessem revitalizar a sua antiga civilização, e é o único país não ocidental a atingir uma industrialização plena. Combinando as novas ideias e fontes ocidentais com as herdadas do seu passado, o Japão está a criar uma nova cultura e a abrir novos caminhos às gerações do futuro.

O Japão criou uma nova forma de capitalismo, bastante diferente do original
ocidental. A originalidade e a criatividade com que o Japão formou as suas novas estruturas políticas e económicas oferecem matéria para séria reflexão. A vida política e a actividade económica nipónicas estão impregnadas de uma sabedoria oriental e de valores estéticos orientais que não têm equivalente nos países capitalistas do Ocidente.

Mas só a ciência e a tecnologia ocidentais podiam permitir o espectacular sucesso do Japão moderno.

 



O “Dicionário Histórico das Ordens e Instituições Afins em Portugal”, dirigido por José Eduardo Franco, José Augusto Mourão e Ana Cristina Costa Gomes (Gradiva, 2010) é um repositório exaustivo sobre o tema proposto, que abrange, ao longo de mais de mil páginas, instituições cristãs (católicas, protestantes e evangélicas), hindus e budistas, esotéricas, maçónicas, templárias, neotemplárias e míticas, honoríficas e civis e profissionais. Trata-se de um trabalho de vários anos, elaborado com rigor e sentido pluralista, que merece elogio, por se afirmar como uma obra de referência da maior utilidade.


Convento de Cristo, janela Manuelina

 

UM DICIONÁRIO OPORTUNO
Perguntar-se-á qual a utilidade de um dicionário com estas características. E a resposta é fácil. Trata-se de preencher uma lacuna existente, que era tanto mais evidente quanto é certo que a identidade histórica portuguesa tem muito a ver, desde as suas origens, com diversas ordens religiosas, e, depois, ao longo dos tempos, com instituições religiosas e profanas, que são analisadas nesta obra, percebendo-se os nexos de continuidade, as transformações e as linhas de inovação social. “Tão só queremos explorar (dizem os autores) e abrir decisivamente as portas de um caminho novo e apaixonante de conhecimento, facultando, de forma clara, distinta e sistemática, a informação já existente sobre as ordens e acrescentar-lhe um pouco mais através do processo de pesquisa que todas as equipas envolvidas, que aceitaram o nosso convite à colaboração realizaram com grande dedicação, apesar da escassez de meios disponíveis”. De facto, os objectivos pretendidos são alcançados, pela cópia de informação disponível e pela forma como a exposição é feita nas diversas entradas. Quanto à oportunidade, não podemos esquecer que a reflexão sobre o republicanismo no início do século XXI obriga-nos à compreensão histórica do papel das Ordens e Congregações na História a uma nova luz. E essa é a luz da sociedade aberta e pluralista moderna, onde todos os contributos são necessários e devem ser tidos em consideração. E se falamos de republicanismo, reportamo-nos à antiga ideia de Res Publica, vinda da Antiguidade clássica e desenvolvida na Europa, designadamente em Itália, desde tempos muito recuados, que não podem fazer esquecer a influência das cidades gregas e a evolução muito rica dos diferentes instrumentos de legitimação política, de que a Respublica Christiana foi um exemplo de natureza muito fecunda e complexa. Antes do mais, e perante uma obra em que o pluralismo é a marca e em que se torna evidente a característica original não teocrática do cristianismo, importa compreender que clericalismo e anti-clericalismo são irmãos gémeos que, ao longo da vida portuguesa, se alimentaram mutuamente. A moderna historiografia tem, no entanto, procurado distinguir os fenómenos, por se tornar indispensável, como tem insistido o Professor Doutor José Mattoso, reconhecer autonomamente o papel do fenómeno religioso, da Igreja Católica e das suas Ordens e Congregações na afirmação e desenvolvimento da identidade portuguesa, ao lado das outras influências. O esquecimento de alguns aspectos põe em causa o rigor histórico. Não se trata de seguir as explicações providencialistas, mas de nos demarcarmos delas, à luz da moderna ciência histórica e da crítica das fontes, bem como do conhecimento do papel das instituições religiosas na construção de Portugal e na “identificação do País”. E se as instituições religiosas têm grande importância, tal deve-se ao facto delas terem um peso histórico secular indiscutível, sobretudo no período anterior à implantação do constitucionalismo liberal e às decisões posteriores à Convenção de Évora Monte, em 1834.

UMA CLARIFICAÇÃO NECESSÁRIA
Como tem salientado o Professor Manuel Clemente, Bispo do Porto, no estudo do período final da monarquia constitucional e do início da República, não deve alimentar-se uma confusão abusiva entre o papel da Igreja e a questão do regime. Os excessos clericais alimentaram os simétricos excessos de sentido contrário. No entanto, monarquia e catolicismo são diferentes. Estamos longe, felizmente, das polémicas clericais oitocentistas desenvolvidas a partir da historiografia crítica de Alexandre Herculano – mas temos de as conhecer. No longo prazo, a Monarquia Portuguesa e o Poder Real afirmaram-se em matéria de cultos através de um equilíbrio complexo que passou pelas concepções regalistas, pela limitação dos poderes e influência do Alto Clero e da Alta Nobreza, mas também por uma aliança estável e de grande importância com as Ordens Religiosas e com os Concelhos. Não pode falar-se do Municipalismo, de raiz moçarabe, isoladamente, mas deve ter-se em consideração, logo na estratégia do primeiro Rei de Portugal, Afonso Henriques, uma ligação às Ordens religiosas. Poderá o papel estratégico de Coimbra ser entendido sem o reconhecimento da importância dos Cruzios, os Cónegos Regrantes de Santa Cruz, seguidores da Regra de Santo Agostinho e sem a influência de S. Teotónio e do futuro Arcebispo de Braga, D. João Peculiar? E refira-se com especial destaque a personalidade cultural impar de dimensão europeia que foi Fernando Martins, Santo António de Lisboa, resultado de uma riquíssima síntese portuguesa e peninsular, de discípulo dos Cónegos Regrantes de Coimbra e peça indispensável para a renovação teológica e cultural do franciscanismo. E não decorreu a legitimidade da dinastia de Borgonha de uma ligação estável e umbilical com a força beneditina de Cluny? Será possível entender o povoamento e o desenvolvimento económico de Portugal sem o reconhecimento da intervenção dos beneditinos de Cister? Poderá a consolidação do Reino a partir da linha do Tejo entender-se sem a implantação das novas Ordens Militares (Templários, Calatrava, Santiago), na sequência do sucesso das Cruzadas do Ocidente? E como não perceber o fundamental papel desempenhado por D. Dinis na preservação da nova Ordem de Cristo (criada sobre a base dos Templários extintos) e na consideração do novíssimo espírito das Ordens mendicantes, em especial dos Frades Menores de S. Francisco de Assis (que Jaime Cortesão considera cruciais na génese do humanismo universalista dos portugueses)? O mesmo tem de se dizer relativamente à Rainha Santa Isabel de Aragão e ao seu papel na renovação do panorama religioso e cultural de Portugal, na preparação do que virá a ser o Encontro de Culturas dos Descobrimentos?

ENTENDER OS CORPOS INTERMÉDIOS
O humanismo universalista (encontrado no “Leal Conselheiro” e na “Virtuosa Benfeitoria”) não pode ser entendido sem uma leitura política e intelectual, não providencialista, da riquíssima síntese entre a independência de Portugal e a legitimidade espiritual, ligada ao papel complexo das Ordens e Congregações. E poderemos continuar, referindo o desenvolvimento do Padroado, a afirmação da missionação do Oriente, cabendo especial referência à Companhia de Jesus e à figura de S. Francisco Xavier, que em Portugal teve um papel fundamental nas suas deambulações nos confins da Ásia. Mas, em contraponto, é muito curiosa e interessante a influência da Congregação dos Oratorianos de S. Filipe Nery, a partir do século XVII nos meios sociais influentes, em concorrência com os jesuítas. O papel fundamental desempenhado pelo Padre Bartolomeu de Quental merece uma atenção especial, estabelecendo-se uma convergência de preocupações e uma divergência de métodos entre jesuítas e oratorianos, que culminará no tempo de Sebastião José de Carvalho e Melo - que começou por atacar os discípulos de S. Filipe Nery – com a prevalência destes na educação do final do setecentismo. Os elogios formulados por Alexandre Herculano relativamente ao ensino oratoriano servem para deixar clara essa evolução histórica. E o liberalismo oitocentista será tributário dessa renovada mentalidade.

Guilherme d'Oliveira Martins

 

 

 

De 30 de Agosto a 5 de Setembro de 2010


George Steiner numa obra fascinante - «Os Livros que Não Escrevi» (Gradiva, 2008) – trata a questão das Humanidades, a propósito das reformas do ensino (secundário e superior), e percebemos que a única maneira de defender, coerente e eficazmente, essa causa nos dias de hoje obriga a ir muito para além dos lugares comuns tão repetidos, que nos levam amiúde a saudosismos inúteis que nada têm a ver com um pensamento sério sobre o combate à ignorância e à mediocridade.


DE NOVO O TEMA DAS HUMANIDADES. - Volto ao tema das Humanidades. Tratei-o a propósito do último livro de Vítor Aguiar e Silva, mas não resisto a continuar a partilhar algumas preocupações que me foram suscitadas por João Filipe Queiró, um matemático moderno e experimentado, preocupado com a necessidade de adoptar uma visão aberta e multipolar das Humanidades, desde a literatura à geometria e à música, passando pelas ciências da vida. Se a literatura tem um papel importante, a verdade é que a valorização das Humanidades ultrapassa em muito o campo literário. Daí que a numeracia e a matemática tenham um papel fundamental. Não disse um dia Leibniz, com uma circunspecção muito especial: «quando canta para Si próprio Deus canta álgebra…»? Naturalmente que na perspectiva das Humanidades, encaradas como uma procura, incessante, universalista e abrangente, de tudo aquilo que tem a ver com o que é humano, temos de deixar a tentação de ver a realidade com olhos de ontem. Vejam-se as novas formas de expressão artística, considere-se a importância incontestável do diálogo entre as letras, as artes e o pensamento, entre o património histórico e a criação contemporânea, pondere-se a necessidade de estabelecermos um intercâmbio efectivo entre a cultura e a ciência. Temos de entender o que se passa à nossa volta, bem como saber olhar para diante. E essa preocupação tanto nos leva a reencontrar Homero, Platão e Aristóteles, como nos proporciona o retorno da tragédia ou o reencontro com poetas e filósofos, com artistas e pensadores. Os clássicos tornam-se, afinal, cúmplices dos nossos anseios e desígnios.


HUMANIDADES E APRENDIZAGEM. - Oiçamos George Steiner no ensaio «Condições Escolares», que é o que agora mais nos importa: «à medida que a nossa civilização passa a evoluir à deriva, a literacia torna-se incerta. Como o chamado ‘pós-modernismo’ proclama, vale tudo. O que não significa que deixaremos de produzir e ler livros, alguns dos quais estimáveis, de visitar museus ou de construir salas de concertos. Continuaremos a fazer tudo isso. As audiências talvez cresçam. É muito o que se pode ler na Internet, ou admirar em reprodução holográfica…». No entanto, segundo o que nos é dado ver, a concorrência faz-se, em condições absurdas e viciadas, entre a qualidade e a fancaria. “Mandarins e artistas cada vez mais esporádicos multiplicarão esforços visando conquistar o estrelato no âmbito dos meios de comunicação de massa». Por isso, o professor de Literatura Comparada fala sobre a necessidade de reintroduzir critérios de exigência que permitam a consagração de uma ordem de mérito que distinga «a excelência autêntica das formas de parasitismo que hoje proliferam como cogumelos». Para tanto, importa entender que o conhecimento e a compreensão têm de se adequar às modernas exigências do mundo. Se a aprendizagem é a base fundamental do desenvolvimento, importa inserir as Humanidades no que Dante designava como os «movimentos do espírito», a começar na música, na poesia e na metafísica, mas a prosseguir em toda a parte em que o espírito sopra. Daí a recordação do teorema de Gödel, segundo o qual o espírito terá sempre a última palavra, uma vez que “qualquer sistema formal coerente comporta proposições indecidíveis». Temos de perceber que num mundo em que a ciência e a técnica ganharam importância crescente, a verdade é que só elas são insusceptíveis de dar respostas aos momentosos problemas da actualidade e de arrumar ideias. Por isso, Steiner – respondendo à pergunta sacramental «O que Fazer?» - advoga um programa que inclua as matemáticas, a música, a arquitectura e as ciências da vida. Urge, deste modo, superar o eclipse do cálculo com que nos confrontamos, entender que as línguas da música (também) não requerem tradutores, e afirmar que as ciências da vida são um tema demasiado sério para ser deixado apenas aos cientistas. Perante os problemas novos da demografia, da genética, da biologia e da medicina, impõe-se, afinal, uma maior e melhor literacia biológica e genética… Por que razão invocamos esta preocupação de Steiner? Exactamente para insistir na tónica de que as Humanidades não se defendem isoladamente, mas sim em ligação com o mundo da vida e com os «movimentos do espírito». Assim, as matemáticas, a música, a arquitectura e as ciências da vida «abrem a sensibilidade tanto aos desafios mais imediatos como aos horizontes mais amplos do pensamento», além de comportarem uma carga potencial de divertimento, jogo e prazer estético. Estamos perante uma pedagogia da esperança, centrada na cultura humanista e na procura do equilíbrio vital entre as “duas culturas”, de que nos falava C.P. Snow. Etimologicamente a palavra escola provém do grego «scholé», que significa lugar do ócio, o tempo necessário para o desenvolvimento da reflexão e da capacidade de pensar. E assim encontramos o «homo cogens» e o «homo ludens», capazes de discernir o espírito nas matemáticas, o humor na música, o jogo na arquitectura e a beleza das estruturas moleculares, sabendo aliar o prazer e a exigência, já que só o prazer pode fortalecer a exigência e só a exigência pode tornar o prazer efectivo.


CONTRA A TENTAÇÃO DA FACILIDADE. - Mas o autor de «Os Livros que Não Escrevi» não cede à tentação da facilidade e do optimismo: «a esperança de salvaguardar ou ressuscitar a literacia humanística nestes ou naqueles moldes tradicionais parece-me ilusória. Essa literacia, esse reino do clássico, pertence a uma elite». A democratização do ensino e da sociedade política é incompatível com a lógica dos círculos estritos baseados no privilégio, que no «Ancien Regime» pareciam naturais. De facto, a receptividade da alta cultura está longe de ser «natural ou universal»… Por isso, a valorização das Humanidades é uma questão de sobrevivência social e cultural, uma vez que sem memória a sociedade mata-se. A preocupação fundamental de George Steiner tem a ver com a ausência de coragem política capaz de combater e contrariar o desprezo generalizado pela vida intelectual e a desconfiança perante o reconhecimento do valor, «suscitados pelo regime do consumo da massa do capitalismo tardio». A vida intelectual e o reconhecimento do valor apontam para que haja certas coisas que são melhores do que outras, devendo diferenciar-se o mérito e as várias aptidões de cada um. E é neste ponto que a importância das Humanidades tem de ser valorizada.


UMA CITAÇÃO. - «A necessidade de transmitir conhecimento e competências, o desejo de os adquirir são constantes da natureza humana. Mestres e discípulos, ensino e aprendizagem deverão continuar a existir enquanto existirem sociedades. A vida tal como a conhecemos não poderia passar sem eles. Contudo, há mudanças importantes em curso. A computação, a teoria da informação e o acesso à mesma, a ubiquidade da Internet e da rede global envolvem muito mais do que uma revolução tecnológica. Implicam transformações de consciência, de hábitos de percepção e de expressão. O impacto sobre o processo de aprendizagem é já capital. [Contudo] a aura carismática do professor inspirado, o romance da persona no acto pedagógico perdurarão certamente a sede de conhecimento, a necessidade profunda de compreender, estão inscritas no melhor dos homens e das mulheres. Tal como a vocação do professor. Não há ofício mais privilegiado. Despertar noutro ser humano poderes e sonhos além dos seus; induzir nos outros um amor por aquilo que amamos; fazer do seu presente interior o seu futuro: eis uma tripla aventura como nenhuma outra» (in «As Lições dos Mestres»).

Guilherme d'Oliveira Martins

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