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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

A VIDA DOS LIVROS


de 28 de Fevereiro a 6 de Março de 2011


O célebre Padre jesuíta João Rodrigues ficou conhecido no Japão como “Tçuzu”, que significa intérprete ou tradutor, uma vez que se dedicou ao estudo aprofundado das relações linguísticas entre o português e a língua japonesa. Escreveu o célebre “Vocabulário da Língua de Japam”, publicado em Nagasáqui em 1603, documento que ainda hoje causa admiração pela profusão de elementos e pelo excepcional rigor como foi feito, contendo 32 mil entradas (veja-se a edição dirigida por Shigenobu Otsuka, da Companhia de Jesus, Nagasáqui, 1998). Tçuzu foi ainda autor de uma gramática, intitulada “Arte da Língua de Japam” publicada também em Nagasáqui em 1604 (de que existe uma edição de 1976, com comentários de Tadao Doi e Ken Mihaishi, editada em Tóquio, Benseisha). Deve ler-se ainda sobre o tema: “As Variedades do Japonês nas Artes de João Rodrigues Tçuzu” por Eliza Atsuko Tashiro www.fflch.usp.br/dl/cedoch/downloads/boletim7_199-224.pdf. Sob esta invocação, terminaremos hoje o breve relato da nossa viagem ao Japão, lembrando ainda o filme de Sofia Coppola “Lost in Translation”.


A MAIOR METRÓPOLE DO MUNDO

Tóquio é uma grande metrópole cosmopolita. É a maior do mundo, com mais de 36 milhões de habitantes. Aqui se nota que o Japão é uma convergência entre as tradições antigas e a vontade de viver o tempo actual. O Embaixador Armando Martins Janeira chamou sempre a nossa atenção para essa rica simbiose entre o Japão antigo e moderno. Só olhando esses dois lados, o peso da ancestralidade, dos antepassados, e a força da modernidade podemos entender a pujança e abertura da cultura nipónica. A simplicidade e o requinte, a hospitalidade e a respeitosa distância, a tradição e o sentido de futuro. O Hotel em que ficamos, o Imperial em Ginza, à beira do Palácio do Imperador, junto das avenidas e do grande comércio, recorda a memória de um mítico edifício desenhado por Frank Lloyd Wright, no entanto o moderníssimo arranha-céus de agora já nada tem a ver com o monumentos de outros tempos. Dizem-me que a entrada do velho Hotel dos anos vinte foi transplantada para os arredores de Nagoia. Mas Tóquio continua a ser uma referência na arquitectura mundial. Aqui encontramos a qualidade, o requinte, o equilíbrio, entre a audácia inovadora e o sentido da medida. Entramos na cidade ao pôr-do-sol – acolá a célebre torre, aqui e ali os edifícios emblemáticos. Sentimo-nos bem.   Olhando a arquitectura rica e multifacetada desta extraordinária cidade, rememoramos o que foram os nossos últimos dias. Por mar, num ferry igual a tantos outros, fomos de Nagasáqui a Amakusa, onde existiu o célebre colégio jesuíta. O céu azul, o sol intenso e uma ligeira brisa fresca, fizeram-nos gozar uma manhã gloriosa de navegação. José de Guimarães fixa essa realidade em fotografia. Quando avistámos o forte de Tomioki, Camilo Martins de Oliveira lembrou-nos os 37 mil cristãos aqui mortos aquando da perseguição de Tokugawa. Já no autocarro, gozamos a terra acolhedora, campos cultivados, lâmpadas amarelas para afastar os insectos e preservarem as alfaces. Seguimos pela costa, estamos numa zona vulcânica, alcantilada, mar calmo, azul claro, céu límpido. Almoçamos num inesperado Hotel, onde tudo recorda Portugal, cartazes do turismo, símbolos e palavras portuguesas. No entanto, os empregados só falam japonês, apesar de o restaurante se chamar “Pôr-do-Sol” e de todos ostentarem orgulhosamente galos de Barcelos nas lapelas. Após esta imersão total nas referências portuguesas, com as acolhedoras hospitalidade e simpatia, visitámos a Igreja de Ooe, fundada pelo Padre Garnier, no século passado, onde encontrámos a azáfama dos preparativos do Natal, e o Museu do Rosário, interessante repositório da memória dos cristãos escondidos e da sua herança espiritual. Mas do que usufruímos sobretudo, naquele serpentear junto ao mar, foi da familiaridade entre dois povos tão distantes, que têm em comum, como diria Wenceslau, a saudade e o mar.

 

Igreja de Ooe em Amakusa

 

UM BONITO DIA EM KAGOSHIMA
Em Kagoshima, em mais um dos bonitos dias que encontrámos, sentimos a presença forte do carisma de Francisco Xavier. É quase estranho como uma personalidade como a deste homem se projecta com tanta intensidade para além dos séculos. Sentimo-lo, há anos, em Goa, quando vimos centenas de milhar de pessoas, com presença maciça de hindus, além dos cristãos e muçulmanos, e voltamos a perceber que continua a ser venerado também nestas paragens. O Padre Mestre Francisco, como lhe chamam Fernão Mendes Pinto e Luís Fróis, chegou a 15 de Agosto de 1549, com Angiró (ou Ângelo, que fora baptizado em Malaca com o nome cristão de Paulo de Santa Fé), jovem samurai convertido que o acompanhava e que foi precioso auxiliar para comunicar com os japoneses. A Igreja que visitamos data de 1999, representa uma nau, com vitrais nas várias cores do arco-íris, significando o vermelho, sobre que incidia o sol da manhã, o coração do bem-aventurado e o azul a imensidão do mar. O Padre Nakano é inexcedível no entusiasmo e nas explicações – insistindo nas condições adversas que levaram à proibição do cristianismo pelo xógum Toyotomi Hideyoshi (1587), epílogo trágico da história do Padre Fróis.

 

NO COMBÓIO-BALA ATÉ NIKKO
De Tóquio, partimos no combóio-bala, sem grandes sobressaltos, para Nikko. É imprescindível visitar o mausoléu construído por Iemitsu Tokugawa, exemplo da ostentação pessoal e do culto dos antepassados. A cada passo, encontramos a síntese entre o xintoísmo e o budismo, ilustrada por profusa e luxuriante decoração. Tudo começa com a homenagem ao grande e já nosso conhecido Ieyasu Tokugawa (1543-1616), avô de Iemitsu, na qual estiveram envolvidos quinze mil artesãos, escultores, pintores, artífices do ouro e da laca. A avenida dos cedros é a mais imponente que se conhece. A sóbria porta de granito (torii) anuncia a entrada de Yomeimon, profusamente decorada com animais e flores. Uma das doze colunas está invertida, porque a imperfeição é a única maneira de afugentar os espíritos maus e invejosos. O estábulo sagrado, o pagode de cinco andares, a fonte sagrada, tudo é impressionante. O ritual xintoísta, a que assistimos em Nikko, associa o afastar dos maus agoiros, com a utilização de um espanta-espíritos, e a chamada dos Kami, os protectores ancestrais, ou, etimologicamente, os que estão acima de nós, com o bater das palmas (de que Wenceslau falava, para depois da alvorada).


DE FRANCISCO XAVIER A BASHÔ
Por um momento, nesta profusão de símbolos e referências, percebemos a dificuldade de Francisco Xavier em fazer-se entender – primeiro ao falar de “Dainichi”, como sinónimo de Deus (fazendo a comparação com a primeira das divindades do budismo), e depois ao usar a palavra “Deusu”, o que suscitou as desconfianças severas dos religiosos e das autoridades, perante uma realidade que era estranha e concorrente… E ao falar das fronteiras da língua e da cultura, temos de recordar alguém que fomos encontrando ao longo desta nossa Peregrinação. Falamos de João Rodrigues (c. 1560 – c. 1633), padre jesuíta conhecido no Japão como “tçuzu”, que significa intérprete, autor do célebre “Vocabulário da Língua de Japam” (Nippojisho), publicado em Nagasáqui em 1603, documento que ainda hoje causa admiração pela profusão de elementos e pelo excepcional rigor como foi feito, contendo 32 mil entradas.E se, de facto, não nos sentimos, como no filme de Sofia Coppola, perdidos na tradução (“Lost in Translation” ou “O Amor é um lugar estranho”), facilmente sentimos como a história pode depender de encontros e desencontros ligados à comunicação entre culturas e povos. Mas, ao despedirmo-nos de Tóquio (numa aventura que terminaria em Paris sob o nevão impiedoso), lembrámo-nos sobretudo da simpatia e hospitalidade – e lembrámo-nos de Bashô (1644 – 1694), o grande poeta e da sua sabedoria, a dizer-nos, no modo hai-kai: “Num atalho da montanha / sorrindo / uma violeta” ou “Mesmo um velho cavalo / é belo de manhã / sobre a neve”. E Paul Claudel, influenciado por Bashô, na sua estada diplomática no Japão, considerou o país um jardim, pleno de surpresas e encantamento.    



Guilherme d'Oliveira Martins   

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O livro de Pedro Tamen: Prémio Correntes d’ Escritas

  

Só por si um prémio não é forma de sossego à escrita. Pedro Tamen tem desta realidade uma noção clara.

As vezes, a justiça é em si um local conflituoso pois procura uma linguagem para dizer o indizível.

Mas a justiça deste prémio é um desafio merecido à constância da escrita de Pedro Tamen.

Este prémio também surge como um território que se inclui na vizinhança da palavra, como etapa acrescida ao sapateiro que molda o jeito de nos dizer da realidade de cada um.

Já tive oportunidade de escrever sobre este livro do sapateiro e repito que, de propósito, ele surge numa perfeita confusão esclarecida: em nome de uma cura.

Em sintonia o prémio.



Teresa Vieira
24.02.11
Sec. XXI

A VIDA DOS LIVROS


de 21 a 27  de Fevereiro de 2011


No momento em que assinalamos o primeiro centenário do nascimento de Orlando Ribeiro (16.2.1911 – 17.11.97) referimos Portugal, o Mediterrâneo e o Atlântico (Sá da Costa, 4ª ed., 1986), um livro científico que é uma obra-prima da literatura portuguesa, do qual Ruben A. disse tratar-se do livro mais notável escrito em Portugal nos meados do século passado… Em lugar de considerações apressadas, trata-se de indagar, através dos diversos factores e manifestações relevantes, como é que "Portugal é mediterrânico por natureza e atlântico por posição" - na fórmula tornada clássica de Pequito Rebelo.

 

 


QUE PORTUGAL?
"Disposto de través na zona mediterrânica, bem engastado numa península que é como a miniatura de um continente, o território português abre-se para o mundo por uma vasta fachada oceânica" (p.131). O traçado de viés é acompanhado de alternâncias climáticas e da coexistência do clima oceânico e da secura quente. E é a "vigorosa oposição das terras altas e montanhosas, cortadas de vales profundamente incisos ", as repercussões no revestimento vegetal define uma terra de contrastes. Norte e Sul - o primeiro é atlântico, verdejante, húmido, com "gente densa"; o segundo mediterrâneo, com longos estios e escassamente povoado. Litoral e Interior - o país vai desde a verdura espessa, "banhada na luz doce e húmida" do noroeste até à aridez das terras de além Marão; desde a variegada aptidão rural do Vouga ao Sado ou do sul algarvio até aos monótonos descampados alentejanos… Terras altas e baixas, Serra e Ribeira, Campo e Monte, Montanha e Vale, Terra Alta e Terra Chã - assim define o povo a complexidade e as oposições, bem evidentes na economia e no povoamento. Desde a montanha húmida do norte e da economia agro-pastoril tradicional até aos relevos menos acentuados, secos e descarnados do sul, "onde o gado miúdo e as queimadas degradaram a floresta primitiva", temos os traços de uma complementaridade e de uma coerência meridional. Assim, a unidade de Portugal é em grande parte obra humana - que há mais de sete séculos define uma entidade política antiga e estável.

 

DAS RAÍZES À ACTUALIDADE
Orlando Ribeiro não se limita a interrogar a terra. Olha sempre as gentes e a sua vontade, procurando as "raízes antigas" da identidade. No fim do neolítico fala de três áreas de civilização - a do levante, a dos planaltos centrais e a da faixa oeste. E no Oeste peninsular recorda a "civilização megalítica ocidental", ligada igualmente à Bretanha, ao País de Gales e à Irlanda. Aí estão os redutos célticos da Galiza e de Portugal. E a sul temos as influências dos povos mediterrânicos - fenícios, gregos, cartagineses e a "brilhante civilização indígena" dos Tartessos no Guadalquivir. Os tempos vão revelando as diferenças e as ligações, as continuidades e as descontinuidades. Os conventi romanos, a organização administrativa dos suevos e dos visigodos, as desinteligências da monarquia goda, a invasão moura, a influência árabe, a reconquista, a coexistência das zonas estabilizadas dos reinos cristãos a norte e dos reinos taifas no meio dia com uma zona intermédia de incerteza e de alternância de influências - tudo nos vai revelando uma multiplicidade de elementos, num curioso melting pot, que vai gerando a autonomia ocidental peninsular. O formigueiro humano e a intensa actividade rural de Entre Douro e Minho no tempo da reconquista denuncia o código genético do que será depois a unidade política que origina Portugal. E Portucale, junto à foz do Douro, vai ser matriz do corpo político donde sairá o Estado português - Estado que precede a Nação. Portucale serve, desde cedo, após a reconquista do século IX, como designação dos domínios cristãos a sul do Lima. No fim do século X, há já um condado (e até há um fugaz rei Ramiro - entre 926 e 930) e, pouco mais de cem anos depois, D. Henrique de Borgonha verá ser-lhe atribuída a tarefa arriscada, incerta e difícil de consolidar e dilatar a influência cristã na região moçárabe de Coimbra para sul, além da linha Mondego/Serra da Estrela, tendo o Tejo como horizonte. No sul, almorávidas e almoádas dominavam o Magrebe e o Al-Andaluz, até ao nosso Al-Gharb (o Ocidente) com pouca actividade agrícola e largos descampados, apesar das inovações de influência árabe nos vinhedos, olivais, pomares e hortas regadas. Atlântico frente ao Mediterrâneo. São os contrastes naturais que determinam ainda a deslocação de populações. As vindimas do Douro, as ceifas da Terra Quente, a apanha da azeitona na Beira Baixa, as ceifas no Alentejo, a tirada da cortiça obrigavam a que houvesse movimentos internos, sazonais, de gentes. Nos arrozais são exímios os caramelos do Mondego e do Vouga, bem como os gaibéus do norte do Ribatejo ou os avieiros da foz do Liz… Ao Ribatejo e ao Alentejo chegam os minhotos e pica-milhos, os beirões e os ratinhos. E em Lisboa e na Caparica encontramos as varinas e varinos de Ovar, como é bem de ver, ao lado dos pescadores de Ílhavo. E em Azeitão, Orlando Ribeiro descobre a curiosíssima distinção entre os caramelos de estar e os caramelos de ir e vir, ou seja, os colonos permanentes e os migrantes periódicos. É este o entrecuzar de influências que reforça, aliás, o melting pot e a identidade portuguesa complexa e diversa.

 

O NÓ GORDIO DAS REGIÕES
"O que caracteriza as regiões geográficas de Portugal é o padrão miúdo e a rica variedade de aspecto e contrastes" (p. 141). As transições são graduais e, de novo, o Mediterrâneo e o Atlântico marcam os dilemas de definição. O Norte Atlântico é o "tronco antigo e robusto" da nação, dominado pela abundância de chuvas, pela riqueza da terra e pela vitalidade das populações. É uma região de intensa diversidade e de policultura. O Porto velho é o pólo histórico indiscutível da região, mas Braga pontua como sede do velho arcebispado. A diversidade urbana coexiste com a intensidade rural. As montanhas do Minho, as serras do Douro e do Vouga assemelham-se, mas o povoamento dá-lhes múltiplas facetas na actividade e nas tradições. O Noroeste é, desta forma, uma "unidade natural definida pelo predomínio dos caracteres atlânticos, unidade histórica mantida através de uma população antiga e densa que, pelo seu número e homogeneidade, veio a constituir o elemento aglutinante do Estado português" (p.148). Numa síntese feliz, O. Ribeiro dá-nos o sinal das diferenças, que se unem e se completam, e dos elementos comuns. Sentimos a História a fazer sentido - e os reinos cristãos a espraiarem-se naturalmente para a Beira Alta, em direcção ao Mondego e à Cordilheira Central, passando pelo Dão vinícola e por Viseu e indo até à Estrela, "enorme reservatório de águas límpidas e de grandes desníveis" (p.149). No Norte Transmontano "a paisagem carrega-se de tons severos, cinzentos, acastanhados. A luz torna-se mais crua, a terra mais dura e a gente mais retraída". Para cá do Marão, mandam os que cá estão! O arvoredo rareia. Desapareceram os castanheiros, a batata cultiva-se no planalto. A Terra Fria e a Terra Quente marcam uma paisagem de extremos. Nas vertentes do Douro, os matagais deram lugar no séc. XVII aos formosos vinhedos do "vinho fino", nos terrenos de xisto. A Régua é o epicentro e dali sai o vinho, Douro abaixo, para se tornar do Porto, sob os auspícios da colónia britânica. A praga da filoxera do séc. XX dizimou as vinhas. Algumas foram substituídas por amendoeiras e oliveiras. Mas o vinho continuou a ser o grande símbolo da região… No Sul, o Alentejo singulariza-se pela monotonia da planície. Mas as terras meridionais são heterogéneas, começando na zona de transição do sopé da Cordilheira Central, a sul do Fundão, na Portela de Alpedrinha, onde a cova da Beira anuncia as planuras de além Tejo, indo, para oeste, através da planície aluvial do Mondego e da cidade de Coimbra até ao grande maciço florestal de Leiria. Depois, há o polimorfismo da Estremadura, os maciços calcários, os barros basálticos dos arredores de Lisboa, o microclima da romântica Sintra, a área de influência de grande metrópole mediterrânea e a península de Setúbal, o santuário natural da Arrábida e a sua floresta mediterrânea. Para leste, estão o Ribatejo, a lezíria, Santarém e o vale celebrado por Garrett em "As Viagens na Minha Terra", que abre para sul na "imensidão de terra lisa ou apenas quebrada em frouxas ondulações…" Aí está Évora, "a cidade mais bela de Portugal", no dizer do mestre, repositório vivo da história portuguesa. E vêm depois o Baixo Alentejo, com Beja como centro, e os dois Algarves - a serra e a orla marítima, lugar de encanto e amenidades - "nenhuma outra região portuguesa possui uma rede urbana tão antiga, tão densa e tão importante", com uma profunda organização romana e muçulmana, tendo esta passado quase intacta ao domínio português… O Portugal de Orlando Ribeiro é uma encruzilhada de influências, entre o Mediterrâneo e o Atlântico, atenta à complexidade e à reversibilidade dos movimentos de uma geografia fundamentalmente humana. Por isso, a "severa disciplina da Ciência", a que sempre foi fiel, não deveria fazer perder "a amorosa compreensão da terra e da gente, que constitui a essência da geografia".

 

 

Guilherme d'Oliveira Martins

A VIDA DOS LIVROS


de 14 a 20  de Fevereiro de 2011



Luís Fróis, S.J. (1532-1597) escreveu a “História de Japam” (1597; edição portuguesa, em cinco volumes: 1976-1984, com anotações de Josef Wicki), obra fundamental para a compreensão da sociedade japonesa do século XVI e do diálogo estabelecido entre os portugueses, primeiros europeus a chegar por mar ao Império do Sol Nascente, e o povo nipónico. Não é possível compreender o Japão histórico (de 1549, data da chegada de S. Francisco Xavier, e 1597, data em que o escritor jesuíta faleceu) sem nos reportarmos a esse testemunho pormenorizado e atento de Luís Fróis, eivado do espírito do tempo e da mentalidade da época, mas extremamente rico em pormenores e em apreciações – que hoje nos permitem compreender o que era um diálogo entre culturas há mais de quatro séculos. A propósito da obra de Fróis continuamos o relato da viagem ao Japão no ciclo “Os Portugueses ao Encontro da Sua História”.

 

 

EM NAGASÁQUI, VINDOS DE KOBE…
Quando chegámos a Nagasáqui, vindos de Kobe, ainda tínhamos na retina as cores do momiji, os vermelhos e amarelos indefiníveis deste Outono de sol. Mas lembrávamos ainda a moderna arquitectura de Osaka, o castelo construído por Toyotomi Hideyoshi em 1586, o Museu de História com a última palavra da pedagogia electrónica. Sentimos bem a pujança económica e comercial da cidade. Usufruímos de um ensaio de teatro Noh. Mas de Osaka ficou-nos sobretudo a recordação da visita inesquecível ao Museu de Cultura e Arte Namban, obra de generosidade e de entrega, que agradecemos à Senhora Takako Yano, que continua a obra magnífica de seu Pai. Dois extraordinários biombos Namban representam a partida da Nau do Trato de Macau e a chegada ao Japão. São, pela qualidade, dos melhores que se conhecem, considerando a diversidade de elementos e a qualidade excepcional das representações de portugueses, com inconfundíveis narizes desproporcionados, de japoneses, de clérigos jesuítas (um dos quais ostentando curiosas lunetas), cavalos ajaezados, vestimentas bizarras, demonstrações de funambulismo no navio, pequenos cães e mil outros pormenores, que nos deixam horas esquecidas a ver e a rever aquelas relíquias. O pequeno Museu merece todo o apoio, uma vez que o acervo é extraordinário, exigindo cuidados e atenções especiais, conservação, estudo e investigação. Em Kobe, sentíramos o exemplo de coragem de um povo a propósito do grande terramoto de 17 de Janeiro de 1995, que reergueu heroicamente a urbe, honrando os mais de seis mil mortos e reconstituindo, com nova energia, a vida económica, social e cultural. Na cidade, que nos acolheu principescamente, recordámos com muita emoção a memória de Wenceslau de Moraes, de novo ele, o português que amou o Japão, o escritor simbolista que fez da sua presença aqui a força da sua palavra e, por isso, entregámos ao Museu Municipal uma placa de gratidão a recordar esse homem que, como ele próprio afirmou, em Kobe e Tokushima, escreveu “como mero passatempo, alguns livros sobre costumes japoneses que foram benevolentemente recebidos pelo público em Portugal”. A homenagem prolongou-se no Parque da Cidade, junto à estátua do escritor e diplomata, depois de usufruirmos de mais dois magníficos biombos Namban. Foi o único momento em que receamos por uma chuvada, tão ameaçadores se tornaram os céus, mas não fomos perturbados por qualquer chuva inoportuna…

 

DIAS INTENSOS À VOLTA DE QUIOTO
Se falo de memórias que trazíamos dos dias intensos à volta de Quioto, tenho de dizer que Nara nos deixara um impressão magnífica. Quando deparámos com a estátua do grande Buda, em Todai-ji, tivemos consciência de que estávamos diante do mais poderoso e imponente símbolo do poder imperial. Tudo é magnífico na cidade imperial, que só em 710 se tornou capital, já que antes as cidades do Imperador eram, em regra, destruídas após o seu desaparecimento. O Príncipe regente Shotoku Taishi (574-622), sobrinho de Suiko, a mítica imperadora, criou condições para que Nara se tornasse cabeça estável do Império, introduziu a escrita chinesa, implantou o confucionismo e o budismo, fazendo aprovar o “Esplêndido Decreto” (604), cujos 17 artigos definem com uma clareza sagrada as bases da legitimidade do novo poder. A partir de então poderia ser imperador quem fosse designado pelos deuses, sendo descendente de Amaterasu, deusa do Sol, dominante do panteão xintoísta. Não importaria que fosse forte ou fraco. Mas, para que a ligação entre o mundo divino e o mundo concreto se fizesse, deveria o Imperador plantar e ceifar arroz (como ainda hoje faz), rito iniciático a que está vinculado, para cumprir a legitimidade que o assinala. E foi a partir de então que o Imperador do Sol Nascente se tornou independente do Imperador do Meio (ou do Sol Poente), subsistindo ao longo dos séculos graças à resistência histórica ao poder dos senhores feudais. Lembrávamo-nos de Horyu-ji, considerado o berço do budismo japonês, onde estão os mais antigos e impressionantes edifícios de madeira do mundo.

 


Templo Todai-ji, em Nara

 

A AFIRMAÇÃO DO BUDISMO
Num esforço para afirmar e difundir o budismo ao lado do xintoísmo, como pilares do sistema de culto do Japão, Shotoku mandou construir um imponente pagode de cinco andares, num estilo trazido da China, em que cada um dos pisos representa, de baixo para cima, os elementos fundamentais da natureza: a terra, a água, a madeira, o ar e o vento e o céu. No complexo de Todai-ji, de nítida influência da dinastia chinesa Tang, num parque repleto de corças, que são vistas como mensageiras dos deuses, confraternizando com os circunstantes, gozamos da imponência de um templo descomunal, cuja construção original é do século VIII (752), apesar de o salão principal, que visitamos, ser uma laboriosa e complexa reconstrução do século XVIII (1709). A imagem de bronze do Buda sentado é avassaladora, a maior que se conhece, rodeada de guardiães, – e diz a tradição popular que aqueles que conseguirem passar por uma apertada passagem existente no templo atrás do Buda poderão atingir mais facilmente o Nirvana. São sobretudo as crianças que se dedicam a esse exercício de destreza filosófica. Em Nara, sentimos a cada passo a tradição da cultura nipónica, com as tradições xintoísta e budista. O Museu Nacional apresenta-nos um acervo de grande riqueza, mas é o Byodo-in, que data do século XI, a dar-nos a representação mais fascinante da eterna felicidade, a partir da invocação da Fénix, a ave que renasce das cinzas. O templo projecta-se equilibrado e airoso nas águas que o rodeiam e que representam o grande oceano… O Buda Amida (ou da Luz Infinita) que aqui se encontra está rodeado de vinte e cinco apsaras, ninfas do paraíso de Indra, que ilustram o significado transcendente deste templo. Em 1052, Fujiwara Yorimichi converteu uma vila elegante que herdara de seu pai num importante templo, hoje reproduzido nas moedas de 10 iénes.

 

LEMBRANÇA DA NAU DO TRATO
Chegados a Nagasáqui, o destino da Nau do Trato, procuramos reconstruir, em imaginação, esse cenário. Diz a tradição que cidade foi fundada pelos portugueses. Haveria apenas um pequeno povoado de pescadores e o Padre Gaspar Vilela, sob indicação de Cosme de Torres, primeiro Provincial dos jesuítas foi responsável pela decisão. O local tinha características excepcionais – baía protegida das intempéries e dos tufões, ponto natural de convergência do comércio. Melchior de Figueiredo, também da Companhia de Jesus, fez o levantamento topográfico e Omura Sumitada cedeu os direitos aos jesuítas. Mas, nesta cidade, destruída em 1945 pela bomba atómica, único ponto de contacto com o comércio internacional desde o século XVII ao século XIX, lugar mítico de “Madame de Butterfly” e da lenda de um marinheiro português, temos de lembrar o exemplo do Padre Luís Fróis (1532-1597) autor da “História de Japam”, obra crucial para o conhecimento do diálogo cultural, terminado em termos dramáticos, como veremos. 


Guilherme d'Oliveira Martins

 

 

 

Fotografia: © CNC/Helena Serra

A VIDA DOS LIVROS

 


de 7 a 13  de Fevereiro de 2011

 

 

Daniel Bell (1919-2011) morreu em Cambridge (Massachussets) no dia 25 de Janeiro. É um dos autores de referência do pensamento contemporâneo, e «The End of Ideology – On the Exhaustion of Political Ideas in the Fifties» (Free Press, 1960; reed. Harvard U. Press, 1988) é uma das obras fundamentais da segunda metade do século XX, com ecos, por exemplo, na produção teórica e na reflexão de Raymond Aron. O debate sobre o pensamento de Daniel Bell foi, aliás, muito intenso logo após a publicação do referido livro, prolongando-se até 1989, data em que, com a queda do muro de Berlim e o início do ocaso do império soviético, se acentuou a tendência detectada pelo autor nos anos cinquenta. Se, pelo menos até 1968, várias dúvidas se puseram relativamente à pertinência das considerações de Bell, a verdade é que, no largo prazo, o tempo veio a dar razão ao pensador.

 

 

VIDA E OBRA MULTIFACETADAS
Daniel Bell, ao deixar-nos aos 91 anos, legou-nos uma obra de grande importância, não apenas pelo valor académico, mas também pela influência que conseguiu junto da opinião pública, uma vez que teve sempre a preocupação de assegurar que as suas ideias não se limitassem à esfera académica. O tema do “fim das ideologias” teve grande repercussão (ainda que nem sempre correctamente compreendido), o mesmo se devendo dizer de “Para uma Sociedade Pós-Industrial” (1973) e de “As Contradições Culturais do Capitalismo” (1976). Foi, deste modo, que este sociólogo foi responsável pela adopção de neologismos fundamentais no mundo contemporâneo, como “sociedade pós-industrial” e “sociedade de informação”. Nascido numa família judia muito modesta do “Lower East Side” de Nova Iorque, teve uma infância marcada pela Grande Depressão da década de trinta. Estudou no City College de Nova Iorque. Foi marcado, desde cedo, por ideais socialistas, que estudou criticamente e dos quais viria a demarcar-se parcialmente. Com os seus companheiros Irving Kristol (1920-2009), Nathan Glazer (1924), Seymour Martin Lipset (1922-2006) e Irvin Howe (1920-1993), procurou, seguindo um caminho próprio, estudar e divulgar a melhor maneira de corresponder à evolução no sentido de uma sociedade marcada pela ética da responsabilidade e por uma sínteses entre a liberdade económica e o Estado-Providência. Colaborou nas revistas “The New Leader”, “Commentary” e “Public Interest”. O seu espírito independente sempre se destacou, o que o levou a afirmar não ser legítimo apor-lhe a designação de neo-conservador. Para se definir, preferiu um dia dizer: «Sou socialista em matéria económica liberal em política e conservador na cultura» - «a socialist in economics, a liberal in politicas and a conservative in culture». Bell demarcou-se, assim, de análises simplificadoras a seu respeito. O sociólogo apostou, sim, numa ideia de «utopia empírica», que deveria especificar onde queria ir, como se deveria conduzir a esse objectivo de esperança, qual o custo do projecto, bem como quem iria pagá-lo e justificá-lo. Do que se trata é de analisar prospectivamente a evolução da sociedade, definindo cenários e hipóteses, o que o leva a falar de evolução para uma sociedade pós-industrial, baseada na informação e nas novas tecnologias. A economia evoluiria do predomínio do sector secundário até à influência crescente e actual do sector terciário e dos serviços, como já dissera Jean Fourastié. Tudo isto com destaque para o conhecimento e a aprendizagem e para as novas elites burocráticas e administrativas. Apesar da convergência de preocupações, Alain Touraine, ao falar de sociedade pós-industrial, pretendeu sobretudo salientar os novos conflitos surgidos dessa nova tendência. Por outro lado, ao falar das contradições culturais do capitalismo, mostra o predomínio dos valores e aspirações hedonistas (bem evidentes na recente crise financeira mundial), exprimindo a sua crítica relativamente a uma lógica enfraquecedora da coesão e da confiança.

 

QUE FIM DAS IDEOLOGIAS?
Com a reflexão sobre o “fim das ideologias”, Daniel Bell não pretendeu decretar qualquer fim da história, mas verificar que as ideologias radicais do industrialismo geradas no século XIX, com o agravamento das desigualdades e o confronto de classes, bem como com o anúncio do suposto fim do capitalismo, foram perdendo força e actualidade perante a emergência do Welfare State, as soluções intervencionistas visando a estabilização da conjuntura económica, a justiça distributiva e a génese do Estado social de mercado notadas depois da crise de 1929 e da guerra mundial. As ideologias conhecidas não seriam, deste modo, algo inerente a todas as sociedades modernas, enquanto factores inevitáveis de mudança, mas algo nascido e desenvolvido em tempos especialmente difíceis e de crise. Por outro lado, as ideologias radicais, como o fascismo e o comunismo, corresponderiam a formas de secularismo religioso, aparecidos como sucedâneos teocráticos, requerendo uma «crença temporal» mas também critérios irracionais de pensamento, segundo o sociólogo. Assim, as ideologias da sociedade industrial (marxismo, liberalismo e conservadorismo) ter-se-iam tornado consequência de um suposto predomínio do positivismo científico e do historicismo, incapazes de se submeter com êxito à prova crítica da “refutabilidade” defendida por Karl Popper em «A Sociedade Aberta e os Seus Inimigos». Daniel Bell refere, aliás, o exemplo de Anthony Crosland, no Partido Trabalhista inglês, ao colocar a igualdade, a oportunidade e o mérito no centro de um socialismo moderno, bem como da alteração do Programa do Partido Social Democrata Alemão (1959) no Congresso de Bad Godesberg, ao afastar o marxismo como influência dominante, considerando outros contributos e a democracia como questão central em qualquer programa preocupado com a coesão social e económica, privilegiando a reforma em lugar da revolução.

 

A ÉTICA DA RESPONSABILIDADE, COMO?
Torna-se, pois, necessário haver a libertação do dogmatismo e do lugar comum, podendo repensar-se as premissas de uma crença, uma vez que o revisionismo se reporta sempre aos meios e aos fins (como Bell disse na bela invocação de Anthony Crosland, quando ocorreu a sua morte prematura e inesperada – “Encounter”, Agosto de 1977). E se Max Weber foi uma referência para o pensador americano, a verdade é que a política envolve sempre uma complexa tensão entre a responsabilidade e a convicção, para que a primeira não redunde em oportunismo e a segunda em dogmatismo e auto-convencimento. Por outro lado, Daniel Bell invocou (ao longo do debate que sustentou, a partir do seu livro charneira e do tema da sociedade pós-industrial) o contributo fundamental de Ralf Dahrendorf, que afastava a consideração de classe como decisiva enquanto critério definidor da conflitualidade nas sociedades industriais contemporâneas. Para compreender a nova realidade, haveria, pois, que partir da complexidade dos fenómenos contemporâneos e compreender a ligação entre a economia e o progresso técnico, entendendo-se que o pós-guerra e a sociedade pós-industrial fizeram convergir as políticas públicas de índole económica e financeira. O «baby-boom» depois de 1945, a libertação dos costumes, a emergência de movimentos igualitários nos Estados Unidos (em especial contra a discriminação racial), o sucesso das políticas públicas de estabilização económica e anti-cíclicas no ocidente, os movimentos de autodeterminação nos países colonizados do terceiro mundo, os problemas suscitados pela Guerra do Vietname - todos esses factores serviram de argumento a Daniel Bell para sustentar o seu ponto de vista. Numa palavra, a complexidade social foi tornando cada vez mais evidentes as contradições nas sociedades colectivistas, até à revelação, no tempo da “perestroika”, de que a evolução nas sociedades ocidentais e os progressos da micro-informática, da sociedade de informação e das comunicações não tinham correspondência na então União Soviética e nos Estados colectivistas, o que permitiu uma rápida e surpreendente evolução dos regimes colectivistas do leste europeu no sentido da democracia. Afinal, o revisionismo e o reformismo exigem, para Daniel Bell, a compreensão da ética da responsabilidade de Max Weber, por contraponto à ética da convicção ou dos últimos fins. Desafio difícil, mas necessário,  perante o qual nos encontramos.

 

 

Guilherme d'Oliveira Martins

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Ler Steiner de mala nos olhos e aluno na alma.
Por Teresa Vieira

 

  

 

 

É sabido que George Steiner é um dos mais sofisticados intelectuais do circuito universitário e um dos mais importantes pensadores actuais.


Steiner é seguramente o exemplo vivo de uma aristocracia pensante.


Em nome do mistério da função sobre as maravilhas do saber e da transmissão do conhecimento, sigo este Mestre tanto quanto me é possível e, não recuso de modo algum, ser uma dependente da leitura dos seus livros, do seu eu, tanto quanto sou mais eu nesse caminho, usando aqui uma próxima expressão do dizer de Paul Celan.


Desconheço o número e a qualidade das pessoas que entendem o quanto a arrogância da razão os leva a saber tudo nada mais sabendo.


Desconheço o quanto as pessoas se sentem condenadas às suas próprias personalidades cruéis, falsas, mesquinhas e egoístas: o quanto os homens e as mulheres excepcionais já demonstraram como se poderia ter sido em vez do que se é.


Diz-nos Steiner que transformar a nossa existência num instante imprevisível por via e consequência do amor e suportar dores inomináveis devido à ausência do amado é desfrutar do sacramento mais inexplicável da vida humana.


Acrescenta ainda que, conhecer este instante imprevisível é, dentro do potencial de cada um, tocar a maturidade do espírito.

Asim, na sua Errata: revisões de uma vida, e depois de lermos mais esta obra sua que constitui um inequívoco marco cultural, fascinante e nítido e elegante na precisão, ainda fomos a tempo de ler o quanto
Steiner se reconhece incapaz de abdicar da convicção de que as duas maravilhas que validam a existência mortal são o amor e a invenção do tempo futuro.


E não temos como agradecer-lhe este pensamento, este sentir de excelência e que torna suportável outras realidades de panfleto com as quais temos de aceder no convívio.


É raro o talento deste grande professor.


É rara a corajosa pergunta: poderá a música mentir?


Com Steiner afigurasse-nos da maior honra possível aspirarmos à função de agitadores no meio destas canhestras civilizações, nas quais o pouco, é o excesso de todos no contributo de humanidade e para a humanidade.


Por isso, quando Steiner nos diz que toda a compreensão fica aquém, como se o poema circunscrevesse em seu redor um último círculo para uma autonomia inviolável, e que por essa realidade somos levados a questionarmo-nos sobre as parcialidades das compreensões, Steiner só nos está a prevenir para a possibilidade de virmos a ser afortunados.


E estamos menos sós e menos resumidos quando nenhum dicionário define a profícua história de uma inovação, de uma interpretação, de uma subversão, todas tão presentes nos movimentos das palavras de
Steiner.


Depois dos livros As lições dos mestres, Paixão intacta, Errata, Nostalgia do absoluto, Depois de Babel, entre outros tantos ensaios de Steiner, sempre nos situamos no virá a acontecer, na hermenêutica incompleta ou errónea do esforço interpretativo.


Ainda assim, tudo o que fica por dizer e o que foi dito se insere num contexto não explicativo posto que é mundo e num significado associado à circunstância e ao que percepcionamos, tendo sempre presente que não seremos capazes de «ouvir» Homero do mesmo modo que o seu primeiro público: tal o alerta de Steiner.


Tal a revisão da interpretação e a descodificação da realidade a que nos devemos vincular por ofício de entendimento.


Em última análise, diria que não temos documentos de interpretação e os eruditos também não. As versões que conhecemos são as dos Evangelhos e as vozes rabínicas que escutamos são as das congregações.


Então onde fica o nascimento? As sortes? Os motivos? A chegada e as partidas obreiras de maravilhas? As artes de inquirição de Sócrates?


Os dias como este? Os primatas andróginos? As comparações de Shakespeare? O destino? Flaubert? Os discípulos amados de Jesus? Zenão de Eleia? E Borges?


Se Steiner me aceitar com as minhas nas suas interrogações, diria em jeito e só em jeito, que há uma possibilidade insolúvel da verdadeira inspiração, da verdadeira revelação, ali mesmo onde induzimos nos outros uma aventura diferente da que conheciam, uma aventura que lhes há-de levar ao conhecimento de actuar sobre as possibilidades de uma existência mais enriquecedora e onde, nos momentos mais duros, os espreita, segurando-os, a arte e a poesia com morada e nome de universo.


Enfim, George Steiner: a convicção de um discurso a revisitar sempre de mala nos olhos e aluno na alma.



M. Teresa B. Vieira


31.1.11


Sec.XXI