Saltar para: Posts [1], Pesquisa [2]

Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

A VIDA DOS LIVROS


de 30 de Maio a 5 de Junho 2011

 

«Origens do Sebastianismo» de António Costa Lobo é um clássico da ensaística portuguesa, agora reeditado (Texto, 2011) com o prefácio de Eduardo Lourenço de 1982, que constitui uma das análises mais luminosas sobre o sebastianismo da nossa literatura – e procede a uma síntese entre a filomitia e a recusa de qualquer simplificação imaginativa. Costa Lobo (1840-1913) escreveu esta reflexão em 1909. Frequentara a Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, tendo desenvolvido actividades como jurista, sob influência do krausismo, e de professor do Curso Superior de Letras. Foi Par do Reino, Ministro dos Negócios Estrangeiros e Conselheiro de Estado. Este ensaio merece referência pela sua qualidade, pelo conhecimento que revela da evolução histórica portuguesa e pela agudeza crítica com que se demarca de outras análises menos fundamentadas sobre o sebastianismo.

 

 

O FANTASMA DE D. SEBASTIÃO
Para Costa Lobo «o povo português não emergiu da reconquista da liberdade em 1640 como havia sido no período anterior ao cativeiro. O domínio castelhano foi um cataclismo, que abalou pelos alicerces a sociedade portuguesa, e não uma calamidade transitória, cujos efeitos cessaram com o seu término, como geralmente se cuida. Os efeitos da servidão não se obliteram logo em alforria. Porventura não esteja ainda Portugal deles inteiramente curado. O presente é condicionado pelo passado e condiciona o futuro. No organismo de um indivíduo as grandes enfermidades deixam sempre quebrantado o vigor da compleição: numa nação cuja existência se continua na sucessão das gerações, em cada uma destas se propaga, por herança, o germe da enfermidade originária». Eduardo Lourenço, no seu prefácio, começa por referir naturalmente o sentido profundamente crítico de António Sérgio, que tem de ser entendido no contexto em que foi produzido, por demarcação do saudosismo sebastianista, pouco conforme com as suas preocupações de lançar as bases de uma reforma de mentalidades. Sem pôr em causa a qualidade de Pascoaes, do que se tratava era de evitar generalizações perniciosas justificativas de alguma acomodação sentimentalista. E assim Lourenço parte imediatamente para a leitura de Oliveira Martins, que neste ponto é guia para o ensaísta de “O Labirinto da Saudade” - «do que era um fenómeno extravagante ou uma aberração sem lugar no discurso histórico, Oliveira Martins fez um mito cultural de ressonância incomparável». O que estaria em causa no caso português era uma “decadência inconformada consigo mesma”, assumida após um momento dramático em que um passado glorioso deu lugar a uma humilhação incompreensível nas areias de Marrocos. E assim o sebastianismo torna-se uma «prova póstuma da nacionalidade» - «o epílogo, e a manifestação mais palpável do espírito nacional, é o insano mito do sebastianismo que continuou embebido na imaginação e nele nutrido pelo conhecimento da decadência nacional e pela recordação e saudades de tempos mais felizes». Contudo, fácil é de entender que o sebastianismo não é de compreensão fácil. Pode ser visto como um «avatar delirante», mas mais do que isso é o símbolo de uma história complexa que alterna momentos gloriosos e decadentes, em que a fatalidade e a vontade se entrecruzam e se alimentam mutuamente.

 

QUE MESSIANISMOS?
Vem à memória a analogia entre o messianismo judaico e a ideia nacional de um império futuro. E Eduardo Lourenço liga o mito cultural de Alcácer Quibir a uma «estrutura de ausência», vista como corolário do tempo em que substancialmente perdemos a independência, ainda que juridicamente tal nunca se tenha consumado verdadeiramente. E é assim que Portugal aparece como «ausente de si mesmo e esperando-se nessa ausência». Interrogando-se sobre os mitos portugueses, Eduardo Lourenço demarca-se das leituras negativistas e fatalistas, uma vez que considera, com Oliveira Martins, que a «estrutura de ausência» não pode confundir-se com a incapacidade de espera. E o certo é que o autor de “Portugal Contemporâneo” sempre se dispôs a crer em uma «Vida Nova», capaz de fazer regressar a pátria a um caminho de vontade e prosperidade. Ao contrário do que se exigiria, o sebastianismo, como mito, é uma prova póstuma da nacionalidade, mas também sonho ou vaga esperança messiânica – e neste ponto o ensaísta contemporâneo chega a Fernando Pessoa. E o poeta pensa no mito cultural como impulso libertador. No pensamento de Eduardo Lourenço (o nosso filómita por excelência, na linha do que José Marinho considerava ser Oliveira Martins) estamos perante um «mito», mas não uma esperança de índole transcendente ou religiosa. É o «herói simbólico» que se apresenta – na tradição do ciclo bretão, do rei Artur e dos cavaleiros da Távola Redonda. E o tema do herói merece atenção. Por contraponto a Sebastião, há Nun’Álvares, os Filhos de D. João I e o Príncipe Perfeito. Contra o fatalismo, surge a vontade de Herculano temperada pela índole colectiva. Sampaio Bruno preferiu procurar uma significação metafísica, Teixeira de Pascoaes ligou o sebastianismo à saudade lusíada (lembrança e desejo, de Duarte Nunes do Leão) e Costa Lobo procurou ancorar nas razões históricas as repercussões do cativeiro – desde as Cortes de Tomar a Dezembro de 1640.

 

FERNANDO PESSOA, ELE-MESMO
Lembramo-nos do Quinto Império de Vieira e temos de referir que «a restauração política de Portugal do seu tempo interessou Fernando Pessoa, como é de sobra conhecido, a pontos de ver Sidónio Pais um novo D. Sebastião. Mas (esclarece E. Lourenço), o Quinto Império com que sonha é um Império Cultural. E desse império e não de outro talvez seja ele mesmo o D. Sebastião». Entrando de pleno no mundo dos mitos, Eduardo Lourenço chega ao século XX e longe de qualquer tentação ilusória, diz-nos, com clareza, que «o Portugal – D. Sebastião de Pessoa é todo-o-mundo-e-ninguém com ele Pessoa – D. Sebastião é ninguém-e-todo-o-mundo, um e outro, a “eterna criança que há de vir”, aquele que morre como particularidade nacional ou pessoal, para ser tudo em todos, exemplo de um mundo e de uma personalidade sem limites nem fim». Deste modo, o autor de «A Nau de Ícaro», ao partir de António Costa Lobo, ultrapassa claramente as preocupações deste e a sua análise, para proceder a uma análise fulgurante da mitologia portuguesa, na linha da sua psicanálise mítica do destino português. Para o Padre António Vieira o que estaria em causa era um império sobrenatural, capaz de superar os «fumos da Índia» e as fragilidades que conduziram a Alcácer Quibir. «Assim o que começou como um sonho de um Império redivivo termina com Pessoa em Império de sonho». E, deste modo, a propósito do «Desejado», Lourenço regressa à sua leitura histórica fundamental – da maravilhosa imperfeição, de Portugal como cais de partida e de chegada, do regresso ao projecto do infante D. Pedro das Sete Partidas, da compreensão da Europa como lugar de ambição mais amplo do que as suas fronteiras e de um universalismo heterogéneo de uma lusofonia de grandes diferenças e complementaridades, que obriga a entender os mitos e essa ligação extraordinária de reminiscências vicentinas de Todo o Mundo e Ninguém, metáfora de um império que se fez mundo fora na reunião de condições inesperadas e impossíveis, e de que o mais adequado símbolo é o herói picaresco por excelência da nossa literatura, Fernão Mendes Pinto.

 

Guillherme d'Oliveira Martins

A VIDA DOS LIVROS


de 23 a 29 de Maio 2011


«A Expansão Quatrocentista Portuguesa» (D. Quixote, 2008) de Vitorino Magalhães Godinho é uma obra que merece revisitação obrigatória, pelo rigor da análise, pela pertinência das considerações e pelo sentido crítico, factores que representam um modelo e um exemplo para a moderna historiografia europeia, na qual pontuou o seu autor, que há pouco nos deixou, mas cuja presença tem de manter-se viva na cultura portuguesa contemporânea. Acresce que a obra em questão foi objecto de uma criteriosa revisão do Professor Magalhães Godinho no final da vida, o que lhe dá importância e uma actualidade acrescidas.


UMA REFERÊNCIA FUNDAMENTAL

Vitorino Magalhães Godinho (1918-2011) manteve-se atento à realidade do mundo até ao fim. Deu uma lição de cidadania e de presença crítica. Felizmente, foi-me possível comprovar essa vitalidade, não apenas testemunhando a revisão a que procedeu em muitos dos seus ensaios e obras de referência, mas também a elaboração original de uma importante antologia de Alexandre Herculano. Como disse Joaquim Romero Magalhães, “lê-lo e estudá-lo é a mais adequada homenagem ao mais notável dos historiadores portugueses”. A lição da independência e do sentido crítico foram constantes no magistério do pedagogo e cientista: «é urgente refazer as ciências humanas, é imperativo reinventar o sentido da acção humana. Não nos apegarmos a tradições mais imaginadas do que verdadeiras nem tampouco inovar por inovar, sem comandarmos as mudanças sem sopesarmos se são necessárias». Tornar-se-ia, assim, indispensável evitar a fragmentação científica, em compartimentos estanques, e o servilismo em relação ao pragmatismo imediatista. Mais do que as representações simbólicas, deveria importar dar atenção à economia e à sociedade, lembrar «azenhas e charruas, as fábricas e o carvão, os homens e as suas maneiras de sentir, pensar e agir, o espaço geográfico em que decorrem suas vidas, a dialéctica entre papéis sociais e personalidade, em suma». Os ensinamentos do mestre, o seu sentido crítico, a visão de conjunto que sempre cultivou, a ligação ao espírito inovador dos «Annales» de Lucien Febvre e Fernand Braudel, significarão, por muito tempo, uma inspiração historiográfica da maior importância. Romero Magalhães não exagera. Estamos na linhagem dos nossos melhores historiadores como Alexandre Herculano, Oliveira Martins e Jaime Cortesão. Lida e reflectida a obra de VMG, percebemos uma exigência exemplar, que permaneceu intacta ao longo do tempo. E a moderna ciência económica muito tem a ganhar com essa perspectiva multipolar, complexa e sistémica – que evita simplificações, recusa determinismos e previne projecções lineares empobrecedoras. De facto, a história económica e social é essencial para a compreensão de acontecimentos, entre os quais avulta a recente crise financeira. Não por acaso, no fim da vida, com grande lucidez, VMG estava profundamente preocupado com a génese e o desenvolvimento da crise global. Como entender a evolução económica portuguesa sem estudar história das finanças públicas ou das contas externas? Como definir as soluções sem considerar os elementos duráveis de carácter sistémico? Daí termos de lembrar (à luz da história) os efeitos perniciosos dos egoísmos nacionais, que os anos trinta do século passado conheceram dramaticamente.

 

A EXPANSÃO QUATROCENTISTA
A releitura das conclusões de uma obra magistral como «A Expansão Quatrocentista Portuguesa» (D. Quixote, 2008) permite-nos entender as dificuldades de uma economia periférica. O que importa, no fundo, é evitar as conclusões fáceis. Lembremo-nos como falharam as tentativas de indicar modelos (quem não recorda os defensores do milagre irlandês?). Para VMG será sempre necessário conhecer o caminho que se pisa, para que as políticas públicas decorram de estudo aturado e da compreensão da complexidade. Por exemplo, na génese dos descobrimentos o que importou ao historiador não foram as razões pessoais do Infante D. Henrique. As causas e o sentido das condutas têm de ser vistos num âmbito largo e diversificado. As transformações sociais e culturais encadeiam-se em processos de estruturas, que têm de ser analisados global e sectorialmente. As razões que movem os decisores ligam-se às condições sociais e culturais, mas também aos papéis sociais e padrões de acção e às mentalidades. Não basta considerar separadamente as diversas abordagens possíveis, havendo que seguir as ligações e aproximações, numa tentativa de apreensão da «dinâmica global». Estas considerações levam o historiador à análise rigorosa dos elementos disponíveis, afirmando que a expansão portuguesa e castelhana no século XV não foi condicionada pelo imperialismo turco-otomano. Os descobrimentos, a colonização e as conquistas teriam, assim, resultado da convergência da nobreza e da burguesia, a primeira para fazer face à desvalorização monetária e à emergência do mercantilismo europeu, e a segunda para encontrar novos mercados e mais mão-de-obra para as novas produções. Haveria que aproveitar as oportunidades dos arquipélagos do Atlântico Norte, do Norte de África, e mais tarde da Índia e o Brasil, quanto ao trigo, açúcar, ouro, cereais, panos, pescarias, escravos, malagueta, especiarias, pedras preciosas, sedas e madeiras raras. Assim não há um plano só. «A expansão deve-se, não a uma iniciativa única, mas a uma pluralidade de iniciativas» (João Afonso e D. João I, em Ceuta; D. João I, D. Henrique, D. Pedro e particulares nas Ilhas; D. Henrique e talvez D. Pedro na passagem do Bojador; D. Henrique, D. Pedro e particulares na exploração da costa africana e D. Henrique e D. Duarte relativamente a Tânger). A coroa e a Ordem de Cristo tiveram um papel decisivo no lançamento dos descobrimentos. Gomes Eanes de Azurara esteve certo ao ligar razões nacionais e religiosas à curiosidade pré-científica, à perspectiva comercial, ao espírito de cruzada e cavalaria e às concepções político-estratégicas. Havia, porém, divergência entre: a conquista territorial e a navegação comercial, as lógicas da nobreza e da burguesia comercial. De facto, são processos complexos, que ou convergem ou divergem. Por exemplo, a regência de D. Pedro (em coerência com a Carta de Bruges) desviaria o plano marroquino, optando pela exploração atlântica e pela colonização insular, talvez lançando a necessidade de aliança com o Preste João, para atacar os poderes muçulmanos em duas frentes. E D. João II reuniria as duas orientações, da nobreza e da burguesia, pela valorização económica de Marrocos para os resgates da Guiné, e pelo plano da Índia com o fito da concorrência ao monopólio veneziano-muçulmano. Não podemos esquecer ainda que o bloqueio português ao estreito de Meca conduziu à ruína do Sultão do Egipto e à conquista desta região pelos turcos (1517), tendo a rota do Cabo afectado o comércio veneziano do Levante (1503-1535) sem a destruir. As rotas de Ormuz e de Adém sofreram alterações, sobretudo em detrimento da segunda, mas não ficaram arruinadas, e a expansão portuguesa não constituiu um golpe de morte para o império turco, embora tenha perturbado e dificultado a sua influência no Oriente.

 

EM BUSCA DA VIDA
Ao falar da regência do infante D. Pedro, temos ainda de alvitrar (com o mestre) a busca de uma aliança com o Preste João, para atacar em duas frentes os poderes muçulmanos – afinal, as determinantes políticas e económicas associam-se sempre. E perante a complexidade de factores, temos de entender que no final do século XV há uma nobreza castelhana que ganha importância e começa a concorrer com os correspondentes grupos sociais portugueses. Tordesilhas coincide com essa emergência. Enquanto em Portugal o Estado passa a depender dos rendimentos aduaneiros e o rei torna-se o primeiro dos mercadores, o contraste começa a estabelecer-se na Península – entre o peso português de um Estado centralizado, por um lado, e a proliferação de pequenas empresas que asseguravam a prosperidade das burguesias provinciais do sul de Espanha, por outro. Numa palavra, VMG seguiu com atenção e rigor os acontecimentos vários (a economia e a sociedade, como Max Weber) e deste modo persiste com a sua grande lição.

 

Guilherme d'Oliveira Martins


Oiça aqui as minhas sugestões na Renascença

VIDA MONÁSTICA

A irmã Raquel Silva escreve sobre a vida monástica em «Uma atracção Irresistível» (Tenacitras, 2010). Fala da sua experiência pessoal e sobre a Ordem da Visitação de Santa Maria e traz-nos quotidiano do Mosteiro de Vila das Aves.
Estamos perante um percurso individual muito rico que nos leva desde a vocação até a atenção do mundo, passando pelas dificuldades próprias de uma opção de vida. E podemos ainda visitar a congregação e as suas referências fundamentais. É um testemunho sentido que lemos com grande interesse e proveito espiritual. A irmã Raquel Silva cita um provérbio chinês: «Se Deus criou é porque valia a pena» e acrescenta «Julgo que se todos acreditassem nisto seriam felizes». O amor e a felicidade são dois temas bem presentes nesta obra - que prima pela generosidade.

 

Guilherme d'Oliveira Martins

EVOCAÇÃO BREVE DE JOSÉ AUGUSTO MOURÃO (1947-2011)

JOSÉ AUGUSTO MOURÃO (1947-2011) 

José Augusto Mourão nasceu em Lordelo (Vila Real), em 14 de Junho de 1947 e faleceu em 5 de Maio de 2011, em Lisboa. Só há cerca de dois anos tive conhecimento, por uma pessoa sua familiar próxima, da biografia de Frei José Augusto Mourão, desde a sua infância até à idade de trinta e oito anos, em que ele veio ao meu encontro (1985), num Colóquio sobre Teoria do Texto, na Universidade de Évora, no qual ambos participámos, sendo eu nessa altura assistente da mesma universidade. Não se falava do passado e sempre fomos muito discretos. Apesar de ser frequentadora, ao longo de quase três décadas, dos Cursos de Verão de Teologia, organizados pelo Instituto São Tomás de Aquino (I.S.T.A.), de que Fr. José Augusto Mourão foi Director, nos últimos anos - assim como dos Cadernos ISTA-,  faltei no ano em que foi distribuída a entrevista com Maria João Seixas – “Nunca gostei da ideia de viver sozinho” - que tinha sido publicada no jornal Público, em  8 de Junho de 2003i. Só a semana passada li uma cópia da mesma entrevista que nos foi dada nas celebrações em memória de Fr. José Augusto Mourão, no Mosteiro de Santa Maria do Lumiar, onde ele teve uma presença tão forte ao longo de mais de duas décadas, apoiando a comunidade das monjas dominicanas – como também apoiou durante muitos anos a comunidade das Irmãs dominicanas do Convento dos Cardaes - , participando nos Encontros do Lumiar através da organização, de conferências, debates, presidindo e pregando nas celebrações, aos 2ºs Sábados de cada mês. O que fiquei a saber da sua biografia pela leitura da entrevista com Maria João Seixas, corroborada pelo recente artigo de António Marujo (Público, 10 de Maio de 2011)ii, confirma o que o seu familiar próximo me contara recentemente. Não foi relevante tê-lo sabido tão tarde. José Augusto Mourão não dava importância a biografia na sua vida real, nos autores literários, na leitura das obras literárias. Fomo-nos sempre reconhecendo mutuamente pela diferença. Não me surpreendi quando soube que doara o corpo à medicina e que não haveria funeral.

 

 

Fr. José Augusto Mourão foi, todavia, das raras pessoas que mais me surpreenderam pela imediata oferta do dom de si próprio a quem, como eu, nunca tinha visto. No primeiro encontro em Évora, em 1985, sempre a sorrir de alegria, ofereceu-se para me ajudar em tudo o que estivesse ao seu alcance. E assim o fez ao longo dos vinte seis anos em que nos acompanhámos pela amizade e pelo trabalho, até à sua morte. Assisti à evolução da sua vida como frade dominicano, pregador de homilias que sempre me desafiaram a não desistir de procurar Deus, de me transcender, de continuar a procurar a tomada de consciência, de luz, de esperança, de renovar sempre a procura de me transformar. O “vazio verde” –  Vazio Verde- o nomeiii - da sua poesia de louvor, de dor, de inclusão litúrgica, é expressão do caminho de um homem bom, generoso e muito profundo que se deixa trespassar pela fé em Jesus Cristo. O vazio não me aflige, na sua poesia, porque é também trespassada pela esperança e a procura de Luz. O seu caminho poético foi reunido na edição recente da obra poética, com o título O Nome a Forma – Poesia reunidaiv.

 

 

Nos Cursos de Verão de Teologia, em Fátima, Fr. Mourão foi meu professor de Liturgia. Nas suas aulas era clara a crítica ao que chamava “a paixão da regra” nas celebrações litúrgicas, a sua procura de ardência, de inspiração e de beleza na liturgia. Desde 1989 que fiquei surpreendida com o trabalho imenso que Fr. Mourão continuou ao longo de décadas em centenas ou até talvez milhares de cânticos litúrgicos de André Gouzes, OP e de muitos outros que traduziu ou adaptou para a língua portuguesa, uma herança rara para a liturgia do presente e do futuro. Participei no trabalho de um grupo para a gravação em cassetes de alguns desses cânticos. Irei ver se foram reeditadas ou não em CD. Fui por ele muitas vezes convidada para fazer leituras e sobretudo cantar em grupo ou a solo em celebrações litúrgicas de uma inesquecível beleza, precedida e impregnada da beleza, desapego, profundidade e interioridade da sua voz, como dom - quer nos Cursos de verão de Teologia, quer nos Encontros dos 2ºs Sábados no Mosteiro de Santa Maria, Lumiar, quer num espaço colectivo de saúde, com um grupo de seus familiares e amigos. Uma vez convidou-me para fazer uma homilia (1993),  numa celebração no Mosteiro do Lumiar. A sua voz continua a ecoar nos cânticos litúrgicos e nas homilias. Se até hoje se publicaram três livros das suas homiliasv, além das suas Anáforasvi, algumas conferências nos Cadernos do I.S.T.A., num livro e em edições artesanais, há que esperar edições futuras, em volume, de trabalhos seus dispersos em volumes colectivos, edições artesanais e inéditos. Maria Estela Guedes anunciou há dias que acabou de escrever o prefácio e de rever as provas de um novo caderno de poemas de José Augusto Mourão, com o título Onde rasgar Janelas, a editar pela Arte-Livros, São Paulovii.

 

 

José Augusto Mourão foi um homem íntegro, tímido, discreto, de poucas palavras, um trabalhador infatigável e intenso em todas as áreas que estudou, pregou e ensinou, como frade Dominicano e como professor universitário, na Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, como investigador reconhecido internacionalmente. Era membro do Centro de Estudos de Comunicação e Linguagens (CECL, Universidade Nova), e director da revista homónima, membro da Associação Portuguesa de Ciências da Comunicação (SOPCOM), da Associação Portuguesa de Escritores, do Comité Executivo da Associação Internacional de Estudos Semióticos, McLuhan Fellow (Universidade de Toronto). Estudou em Portugal e França, estagiou no Canadá, nos Estados Unidos, em Itália, em Espanha e França ao longo das suas licenças sabáticas, para estudo e/ou docência. Viajava só para trabalhar, como dizia, quer na investigação, quer para Colóquios e Congressos nacionais e internacionais. Da Literatura à Teoria da Literatura, à Filosofia, à Teologia, à Semiótica, à Comunicação, e Linguagens, ao Hipertexto, às Ciberescritas, à Hiperficção e Cultura. Nos últimos tempos colaborou no Secretariado para a Pastoral da Cultura.

 

 

José Augusto Mourão escrevia tudo o que investigava, tudo o que ensinava, todas as suas homilias, todas as suas conferências. Escrevia pensando ou pensava escrevendo. Considerava-se um pensador “flutuante”, como recordou Ana Cristina da Costa Gomes na sessão promovida pelo C.L.E.P.U.L. de Homenagem a José Augusto Mourão, em 7 de Junho de 2010, na Faculdade de Letras de Lisboa, coincidindo com o lançamento do volume Dominicanos em Portugal. História, Cultura e Arte (Coordenação de Ana Cristina da Costa Gomes e José Eduardo Franco, Aletheia, Lisboa, 2010). Foi construindo um pensamento denso, desafiador de consciências, em particular nas homilias e conferências. Foi pioneiro nos estudos de Semiótica e Bíblia. No seu trabalho de investigação estava sempre atento a todos os ecos científicos, teóricos, técnicos, numa permanente actualização. Nas suas homilias e conferências, tinha um particular empenho em causas e situações de fronteira. Na sua penúltima conferência, no Lumiar, em 9 de Outubro de 2010, reuniu uma poderosa síntese de reflexão sobre  “A Estética na fronteira da experiência de Deus”. O Padre e também poeta Tolentino Mendonça citou e recriou esta conferência na sua conferência sobre a “ A linha da Fronteira”, em 14 de Maio de 2011, no Mosteiro do Lumiar,  à qual se seguiu uma celebração in memoriam de Fr. José Augusto Mourão, na qual P. Tolentino o evocou como enigma e pergunta que ele próprio é-foi, a sua fé na Palavra, a dimensão profética que deu à Estética. O P. Tolentino prevê que no futuro se compreenda melhor a sua poesia, a sua obra e as suas homilias.

 

 

Não encontrei ininteligibilidade nas suas homilias, mas antes uma grande sintonia na sua procura de interrogação, de discernimento, conducentes à procura de nos transformarmos, de mudança interior.

 

 

Conheço grande parte da sua obra publicadaviii. É uma obra multifacetada e vasta, a retomar e a meditar, pela sua densidade e profundidade. A ser lida no agora e para o futuro. José Augusto Mourão foi coordenador, com Ana Cristina da Costa Gomes e José Eduardo Franco do Dicionário Histórico das Ordens e Instituições Afins em Portugal (Gradiva, Lisboa, 2010) e de outras obras mais recentes, de relevo para a Cultura Portuguesaix. Traduziu  A rosa é sem porquê de Angelus Silesius (Vega, 1992), Sobre a Leitura de Marcel Proust (Nova Vega, 3ª ed. 2009) e A função da poesia de Savonarola (Vega, 1993), entre outros textos. Com Maria Leonor Telles traduziu Espen J. Aarseth, Cibertexto. Perspectiva sobre a literatura ergódica (Pedra de Roseta, 2005). É autor de inúmeros  artigos e ensaios dispersos em volumes colectivos. Prefaciou e introduziu várias obras literárias e de ensaio.

 

 

Assisti ao lançamento de quase todos os seus livros. No lançamento de um deles, surpreendeu-me o modo como fez a sua apresentação pública: “Sou um corredor. Vale mais morrer cansado, por ser corredor, do que estar deitado muito tempo à espera de morrer”.  Dizia também “Não há nada a esperar da inércia”. Nas suas homilias, em alguma da sua poesia, fala-escreve muito frequentemente da morte, na sua inevitabilidade, como enigma, como passagem para a Ressurreição em que acreditava. Frei Bento Domingues recordou a fé de Fr. José Augusto Mourão na Ressurreição, em várias fases da sua vida, presentes em cânticos que foram cantados na celebração “ da passagem da morte para a vida de Frei José Augusto Mourão”, no Convento de São Domingos, em Lisboa, às 21h do dia da sua morte, em 5 de Maio de 2011 (Frei Bento Domingues, “Não foi para morrer que nascemos”, Jornal Público, 15 de Maio de 2011)x. Frei Filipe - actual jovem prior do mesmo Convento, companheiro de quase todas as horas na recta final da vida terrena de Fr. Mourão -, na homilia da celebração do 7º dia, em 12 de Maio, recordou a força das metáforas, a esperança na ressurreição, nas homilias, na vida e na passagem  para a vida de Fr. Mourão, terminando com a frase de Fr. Mourão” Não acreditar na ressurreição é resignar-se a acabar”xi.

 

 

Fr. José Augusto Mourão passou a vida a estudar, a questionar, a interrogar-se. Acreditou e deu exemplo da força da palavra, da procura da palavra, para tocar a sua própria consciência e a consciência de outrem, para vermos tudo claro, sem rodeios, não raro com alguma crueza, sem nunca desistirmos de procurar a luz, a Palavra de Deus, a Palavra de Jesus Cristo, a chama, a ardência, Deus nos seus enigmas e revelações, pela Encarnação de Jesus Cristo, o Deus absconditus,  mas também o homo absconditus. Deus que nos guarda e nos inspira – “ Helena, Que Deus a guarde e inspire”, escreveu-me na última mensagem por telemóvel, poucos dias antes de falecer. Há muitos anos dizia, sorrindo, ao despedir-se de nós, no fim de uma celebração no Convento de S. Domingos: “ A sabedoria é a ternura do espírito”. Dizia que se deixava guiar pelo sopro que um dia teria de devolver. Devolveu-o há poucos dias. Temos agora de fazer a travessia do luto e seguir o seu exemplo de desapego. Fr. José Augusto Mourão, quando perdi ainda recentemente um amigo muito antigo e familiar, e procurava a maneira de melhor rezar por ele, ensinou-me que tinha que me desapegar dele e que rezasse sempre que me lembrasse dele “que descanse em paz”, “que descanse em paz”. E assim consegui atravessar o luto. Agora é a vez de continuar a mesma oração para  o luto por Fr. José Augusto Mourão, grande Amigo, muito amigo do seu amigo, que muito lutou para me ajudar em todas as áreas, me convidou na hora certa, tentando eu também corresponder e ajudar no que esteve ao meu alcance.

 

 

Com Fr. José Augusto Mourão continuo e espero que continuemos todos a acreditar no espírito como sopro, beleza, dança, na palavra que cura, no “voo da ave do espírito” (Sophia), no novo, para os combates da vida, na esperança de que o espírito nos conduza um dia para além da passagem, embora “ a morte nos surpreenda sempre”, dizia Fr. Mourão. É com a maior gratidão, a “gratidão do outro como outro” que agradeço o dom de Fr. José Augusto Mourão ao longo de quase três décadas, na minha vida, na vida de muitos, a força da sua herança para os vindouros que dela saibam aproveitar. Procuro, procuremos continuar a caminhar com o sabor de eternidade, ecoando com a sua voz: “Irei habitar na alegria/ Irei a Deus,/ louvá-lo-ei sem fim”.

 

 

Que a cultura portuguesa saiba preservar a memória de Fr. José Augusto Mourão, homem singular e diferente a todos os títulos, semeador de palavra, de esperança e de beleza, antecipado e actual, com uma obra e uma herança que merece ser cada vez mais conhecida, preservada  e meditada, no agora e para o futuro. Numa das conversas que tivemos há meses, José Augusto Mourão citava Umberto Eco, concordando com uma frase de Eco próxima desta: ” volvidos vinte anos após a nossa morte somos esquecidos ou então somos copiados”. Que se saiba recordar Fr. José Augusto Mourão que não vigiou o vento e semeou em vida e para o futuro.

 

 

Sintra, 17 de Maio de 2011

Helena Conceição Langrouva

 

 

 

 

i Publicada no site: dominicanos.pmeevolution.com; e em www.triplov.com.

ii Idem.

iii Vazio Verde – O Nome, Centro de Reflexão Cristã, Lisboa, 1985.

iv Declinações:O Nome e a Forma, Coimbra, 2004, 2ª edição  O Nome e a Forma - Poesia reunida, Pedra Angular, Lisboa, 2009.

v A Palavra e o Espelho, Paulinas, Lisboa, 2000; Luz Desarmada, Edições Prefácio, Lisboa, 2006 e Quem vigia o vento não semeia, Pedra Angular, Lisboa, 2011.

vi Anáforas. Ver no Convento de São Domingos, Lisboa.

vii Maria Estela Guedes, “Presença de José Augusto Mourão”,  Revista Triplov, nova série, nº 15, Maio de 2011, publicado em www.triplov.com.  José Augusto Mourão era o coordenador de Portugal do Triplov, revista electrónica luso-brasileira, revista do “híbrido” – como dizia José Augusto Mourão -, com colaborações internacionais.

viii Vazio Verde - O Nome, ( C.R.C., Lisboa, 1985); A Visão de Túndalo. Em torno da semiótica das visões ( INIC, Lisboa, 1988); Dizer Deus – ao (des)abrigo do nome (Lisboa, Difusora Bíblica, 1991); Paixão, Discurso e sujeito- “Os Trabalhos de Jesus” de Fr. Tomé de Jesus (Vega, Lisboa, 1996); A Sedução do Real. Literatura e Semiótica (Vega, Lisboa, 1998); O Regresso ou Metamorfoses do Sagrado (com Ana Luísa Janeira, Carlos João Correia e António Carlos Carvalho, Difusão Cultural, Lisboa, 1998); Ética. Ciclo de Conferências ( Banco de Portugal, Departamento de Estudos Jurídicos, 1999); Semiótica e Bíblia ( coordenação com Maria Estela Guedes e Nuno Peiriço, Paulinas, Lisboa, 1999); Grandes Exposições no Mundo Ibero-Americano, (com Maria Estela Guedes, A. M. Cardoso Matias, Vega, Lisboa,1999); A Palavra e o Espelho (Paulinas, Lisboa, 2000); Discursos e Práticas Alquímicas (com Maria Estela Guedes, Nuno Peiriço e Raquel Gonçalves, Hugin, Lisboa, 2001); Ficção interactiva. Para uma poética do Hipertexto (Edições Universitárias Lusófonas, Lisboa, 2001); O Fulgor é Móvel. Em torno da obra de Maria Gabriela Llansol (Roma Editora, Lisboa, 2004); Declinações: O Nome e a Forma (Coimbra, 2004);  Influência de Joaquim de Flora em Portugal e na Europa. Escritos de Natália Correia sobre a Utopia da Idade Feminina do Espírito Santo (em parceria com José Eduardo Franco, Roma Editora, Lisboa, 2004); O Mundo e os Modos de Comunicação (Minerva, Coimbra, 2005); Luz Desarmada (Prefácio, Lisboa, 2006); Semiótica. Genealogias e Cartografias (com Maria Augusta Babo, Minerva, Coimbra, 2007); A Literatura Electrónica (Vega, Lisboa, 2009); O Nome e a Forma - Poesia reunida-, Pedra Angular, Lisboa, 2009; Quem vigia o vento não semeia (Pedra Angular, Lisboa, 2011). 

ix Coordenação de Obras mais recentes: Com Ana Cristina Costa Gomes, José Eduardo Franco e Vítor Serrão, Monjas Dominicanas. Presença, Arte e Património em Lisboa ( Aletheia, Lisboa, 2008); Com Luís Filipe Barreto, Paulo Assunção, Ana Cristina da Costa Gomes e José Eduardo Franco, Inquisição Portuguesa. Tempo, Paz e Circunstância ( Prefácio, Lisboa, 2008); com Aires B. Henriques, Ana Cristina da Costa Gomes e José Eduardo Franco, Espiritualidade e Sociedade em Portugal no tempo de Frei Luís de Granada (Casa de Pedrógão o Grande, 2007). 

Publicado no site:  dominicanos.pmeevolution.com; e em www.triplov.com

xi Idem.

 

«Teolinda e Ulisses…»

 

 

 

 

 

 

 

 

 


 

 

O meu livro “Escritos sobre a pele” tem duas dedicatórias.

Hoje teria acrescentado uma terceira

                                                       “ À Teolinda Gersão, este meu conto:

                                                                                      “Isto a que se chama estar defronte

 

Desde a página 14 do livro “A cidade de Ulisses” da escritora Teolinda Gersão que tomei a decisão de me sentar em cima do tempo, agarrá-lo pelos cabelos como quem nunca largará a liberdade, e fora do alcance de tudo, menos das palavras da Teolinda fazer com que a tarde de sábado fosse o espaço de me dirigir ao mundo por interposta escrita.

Teolinda é cada vez mais uma escritora poderosa.

Coloca ela nas palavras visão e mundo e depois converte-as num exercício fascinante de hermenêutica perturbadora pelo que suscita e pelo que recusa jogar.

Por entre criar reacções e emoções, vai-se absorvendo a cidade de Lisboa neste livro amante, num prazer indissociável da luta dos amores com o vencer dos mesmos através de um apelo constante aos sentidos, numa errância permitida naquele expoente de quem segreda estados de graça e desesperos.

Teolinda traz-nos uma claridade nas razões das mudanças dos mundos ou nos obstáculos que o fazem entender.

E tudo, tudo, são aproximações à vida como se o horizonte fosse uma época de um só instante.

Fervilham muitos e poderosíssimos poderes neste livro.

Cecília amou com beijos e despedidas conjugados. E nunca as coisas são absolutamente o que mostram, ou, a aparência é sempre uma mentira de parênteses por entre Ofelinhas e Pessoas e outros viajantes que se procuram sempre a si noutros lugares.

Assim nos vamos aproximando da lenda de que fora Ulisses a fundar Lisboa, e por este caminho, Lisboa historicamente ligada à Grécia.

Talvez a inexistência de Ulisses tivesse sido tão forte que por essa razão nunca a história o esqueceu; e a Odisseia tão intemporal quanto pode ser a vida de cada um de nós.

E claro, Penélope aquela que afinal não troca a guerra de se desafiar por sob os desejos das palavras masculinas de honra e dever.

Penélope a que será sempre um dos riscos demasiado grandes.

A que me fez escrever

Desço até ao rio.

Quantas vezes fui para morrer? E já subo de novo até à casa onde me aguardas (…) já te lavei com água de rosas.

Já roubei jóias para ti. Mas mãe minha mãe, que vestido uso hoje?(…) que faço com estas chaves? Tive uma lança na mão que atirei ao meu peito.

Recordei.

E regresso à marginal que nos liga ao mar pela mão da Teolinda. E surge Estoril e Cascais e o Guincho e por lá também os continentes feitos barcos ao largo como quem promete chegar ao Índico e a África tão plenamente quanto se imaginam.

Recordo um Natal em que atravessar a Praça de Londres com luzes de festividade ingénua me deu a segurança que só uma mão na nossa até ao fim nos pode dar.

Pouco tempo depois recordei a letra de uma canção de Sérgio Godinho que dizia: toquei-te no ombro e a marca ficou lá. E recordei a letra desta canção já que esta realidade se passava debaixo de água, exactamente no local dos gestos serenos e leves e afinal a marca da mão ficara.

E depois existir naquele tempo Fassebinder é uma árvore que Teolinda não esquece.

É que se vivia sob lágrimas amargas de lucidez e de justiças injustas e desequilíbrios entre classes sociais muito profundos. E no meio de tudo isto e do que agora se não menciona, como sempre, e como nos diz o livro, agarrávamo-nos às esperanças como hoje. Até a fraude fiscal se combate como se combateu sempre em Portugal: com ineficácia e com a impunidade de que o poder é cioso. Também teve lugar um boom na Bolsa e nas palavras soltas das primeiras páginas dos jornais se lia crise, crise, 1929 pode chegar de novo. E havia o pequeno milagre de muitos e de cada qual a protegerem-se com algodão e cimento da imensa turbulência que nos rodeava.

E por outros cenários caminhava Cecília e ele ainda lhe criava barreiras de protecção como se a quisesse agora num diferente igual ao ontem que com ela vivera.

E o mais que Teolinda não escreveu, reside na doçura de Arpad. Na desarmante doçura de Arpad.

Assim, entramos para dentro dos sonhos e queremos mesmo sonhá-los até ao fim.

Mas também nos alerta este maravilhoso livro “ A cidade de Ulisses”, para a porta de traição que têm todos os castelos.

É minha a sedução em que me seduzo(...) o tal furor que afinal faz ruir a convicção. Afirmo no meu conto unindo-o à leitura de Teolinda.

E numa altura em que se paga a vida em capital e juros usurários Teolinda Gersão afirma no seu livro

«O Tejo é mais belo que o rio que corre na minha aldeia».

Desta sensibilidade resulta o parto de sermos o regresso e a partida numa verdade inverosímil pela qual se luta uma vida inteira.

E uma vez por outra, acontecia.

E uma vez por outra, acontece.

 

 

Teresa Vieira

16 de Maio/2011

Sec.XXI

A VIDA DOS LIVROS


de 16 a 22 de Maio 2011


«Londres em Paris – Eça de Queirós e a Imprensa Inglesa» de Teresa Pinto Coelho (Colibri, 2011) corresponde a uma leitura anglófila do percurso do autor de «Os Maias». Tudo começa por uma factura emitida em 1 de Abril de 1892 pela Livraria Galignani da Rue Rivoli. Partindo desse documento, a autora procede a um estudo de grande interesse e curiosidade sobre a influência da imprensa vitoriana na concepção e elaboração da «Revista de Portugal» e do «Suplemento Literário da Gazeta de Notícias», do Rio de Janeiro, bem como no projecto de “O Serão”. Eça aparece-nos fascinado pela cultura e literatura inglesas, apesar de estar em Paris e de ser tido por afrancesado. Tudo isto poderá parecer paradoxal, mas não o é, uma vez que o romancista assume, afinal, uma atitude muito comum entre os portugueses – de proximidade cultural com a França e de admiração genuína pela Velha Albion… Leia-se, por exemplo, o que Oliveira Martins diz, exactamente na “Revista de Portugal”, sobre “Os Filhos de D. João I” e sobre a costela inglesa destes. O certo é que este delicioso «Londres em Paris» permite compreendermos bem que a «nossa Europa» tem uma raiz ambivalente.


John Singer Sargent, In the Luxembourg Gardens, 1879.


CUIDAR DO COSMOPOLITISMO
A investigação parte da preocupação de Eça de Queirós de criar uma opinião pública letrada e cosmopolita, através da criação de revistas modernas, que seguissem as pisadas do melhor que se fazia na Europa. Esta ideia é, aliás, partilhada pela Geração de 1870, que assumiu claramente uma vocação pedagógica, evidente desde os primórdios, não só com Antero de Quental, mas também com a «Biblioteca das Ciências Sociais» de Oliveira Martins. Sabemos, por isso, que o programa da «Revista de Portugal», idealizada e realizada por Eça, visava alargar, «para além da França (nossa exclusiva escola e único socorro do nosso espírito), as fontes das noções e das emoções», fazendo-nos «aproveitar do que as duas grandes nações pensantes, a Inglaterra e a Alemanha (outras ainda, mesmo a nossa vizinha e progressiva Espanha), tão desconhecidas todas entre nós, têm mais recentemente produzido no exercício das letras, e obtido na conquista da erudição». Era o tempo em que recebíamos as grandes ideias e os grandes debates através de Paris, e em que essa influência marcava indelevelmente o que entre nós se fazia. Lembremo-nos da referência irónica à revista idealizada por Carlos da Maia e João da Ega, muito afrancesada, à imagem e semelhança da “Revue des Deux Mondes”. Contudo, Eça, como os seus amigos, entendia ser fundamental pôr o coração de Portugal ao ritmo da Europa. E nessa linha o francesismo seria insuficiente. É certo que houve significativas projecções entre nós da evolução política e intelectual francesa, com destaque para as repercussões da Revolução de 1789, mas também para as influências ambíguas das invasões napoleónicas que deixaram, para além da resistência política, a força das ideias da liberdade, da igualdade e da fraternidade. Isto, para não falarmos das influências óbvias da Monarquia de Julho (1830) no alento à causa da regência de D. Pedro, e da Primavera dos Povos de 1848 no incentivo à causa da Regeneração (1851). E não poderemos compreender as Conferências do Casino Lisbonense sem pensar na Comuna de Paris (1871) e sem cuidar do peso do naturalismo ou do realismo francês na renovação literária assumida por Eça de Queirós no Largo da Abegoaria.

NOVOS VENTOS E INFLUÊNCIAS
Mas, se esses acontecimentos franceses foram relevantíssimos, a verdade é que os próceres dessa «Geração magnífica» depressa perceberam que os mundos anglo-saxónico e germânico teriam a maior importância nos novos ventos que sopravam. E na verdade não se estava perante um fenómeno novo, uma vez que os românticos, como Garrett e Herculano, também tinham dado uma especial atenção às influências anglófilas e germânicas, para além da francesa. E dizia o Programa da “Revista de Portugal”: “já um escritor inglês disse que as revistas inglesas habilitavam a Inglaterra a dar anualmente ‘um balanço à sua civilização’. Desse balanço sai a mais salutar das lições, a mais eficaz das regras. E assim uma revista pode verdadeiramente operar como consciência escrita de uma nação”. E Eça preocupa-se com a isenção, a serenidade, a objectividade e a distância de qualquer paixão para a escrita de uma revista à inglesa. Como disse um dia a Teófilo Braga: “Esta larga imparcialidade tem sido a linha de conduta ultimamente adoptada pelas Revistas inglesas – que com ela se têm dado excelentemente” (1888). E em 1890, José Maria é claríssima perante o jovem Luís de Magalhães: “Vamos imitar as revistas inglesas”. Não podemos surpreender-nos assim com o entusiasmo, justo e adequado, de Teresa Pinto Coelho relativamente a este veio por si explorado. Eça é menos afrancesado do que se julgava? Talvez não seja essa a resposta, mas outra: o romancista e homem de cultura português, fazendo parte da plêiade que queria ver o coração do Portugal culto a bater ao ritmo da Europa, compreende que tem de abrir horizontes de criatividade e exigência, indo ao encontro das grandes nações pensantes. Veja-se, por exemplo, o contributo relevantíssimo de Jaime Batalha Reis nos domínios da ciência, música e arte. Razão tem, aliás, a autora, para afirmar que muitas vezes se menospreza o papel do futuro embaixador de Portugal na Rússia, apesar de ser na sua Geração um dos elementos mais relevantes: pela lucidez crítica, pela capacidade de compreender os valores duráveis e pelas suas qualidade de estudo e de conhecimento.


UMA LISTA ILUSTRATIVA
Ao lermos a lista da factura da Galignani encontramos jornais de informação (Times, Standard e Daily News), semanários (Spectator, Graphic, St. James Budget), jornais artísticos, literários e científicos (Literary World, Art Journal, Musical Times, e Nature), revistas inglesas (Saturday Review, Contemporary Review, New Review), magazines (Longman, Cassell, Chambers e Rare Bits), periódicos americanos (Atlantic, Scribner, St. Nicholas) e revistas científicas francesas (Nature, Science Illustrée). Percebe-se bem a importância da secção da “Revista de Portugal” intitulada “Ideias e Factos” (uma Revista de Revistas). Aí eram publicadas recensões de artigos saídos em revistas inglesas, francesas, americanas e espanholas, que permitia, a um tempo, ter presença internacional, pela inserção da opinião letrada portuguesa nos grandes debates, promovendo um diálogo entre os portugueses e os outros europeus. Se é facto que os resultados da “Revista de Portugal” ficaram aquém do desejável, se os confrontarmos com os projectos iniciais, não é menos certo que Eça tentaria lançar outra iniciativa que tinha como modelo o magazine britânico – falamos de “O Serão”, delineado sobre “The Idler”, onde escreveu Conan Doyle. A preocupação era a de encontrar um magazine de informação e ideias, para as famílias, que pudesse ter sucesso editorial e veicular uma perspectiva moderna do país, da literatura, da política, da economia e da sociedade. O projecto não teve êxito, apesar da motivação e empenhamento do jovem Alberto de Oliveira. Mas importa reter a conclusão de Teresa Pinto Coelho: “Se a Revista (de Portugal) se destinara, como as Conferências do Casino, a aproximar Portugal da Europa culta, o objectivo do ‘Suplemento’ era apresentar aos leitores brasileiros um panorama condensado dos principais acontecimentos culturais, políticos e científicos europeus”. A partir das revistas compradas na Rue de Rivoli (e de outras que chegam), Teresa Pinto Coelho faz uma investigação aprofundada, reunindo um conjunto relevante de elementos complementares entre si, que permitem uma reflexão profunda sobre a atitude de Eça sobre a cultura europeia. Assim, TPC desenvolve o tema da anglofilia queirosiana, na linha estimulante do seu texto fundamental “Apocalipse e Regeneração” e da obra de assinalável segurança e vitalidade que tem continuado a produzir – inserindo Eça de Queirós “no contexto que lhe é devido: um europeu da sua época profundamente influenciado (e seduzido) pela imensidão, pujança e originalidade da cultura inglesa, que, in loco, não sem deslumbramento, lhe foi dado estudar e vivenciar”.


Guilherme d'Oliveira Martins

Oiça aqui as minhas sugestões na Renascença

A VIDA DOS LIVROS


de 9 a 15 de Maio 2011

 

No seu último livro intitulado “La Voie – Pour l’Avenir de l’Humanité” (Fayard, 2011), Edgar Morin apresenta, de um modo muito clarividente, um conjunto muito rico de propostas para ultrapassar a crise global que vivemos, mas também para compreender as raízes do mal que nos atinge globalmente e que exige respostas corajosas e determinadas. E a verdade é que, se nada for feito, os riscos são tremendos em virtude de uma máquina inigualitária que mina os tecidos sociais e suscita perigosas tensões protecionistas; de um sistema que destrói os recursos raros, que encoraja as políticas de concentração e que corrói o planeta; de uma máquina que inunda o mundo de dinheiro fácil e ilusório e que encoraja a irresponsabilidade bancária; de um “casino” onde se exprimem todos os excessos do capitalismo financeiro; e de uma estranha centrifugadora que pode vir a fazer explodir a Europa».


RECUSAR A RESIGNAÇÃO
Ernesto Sabato, o grande escritor argentino há pouco falecido, afirmou que «só há um modo de contribuir para a mudança, é a recusa da resignação». Edgar Morin cita esta afirmação, preocupado que está com as fragilidades que estão a destruir os fundamentos de uma humanidade consciente das tarefas fundamentais que tem de assumir num tempo de incerteza e de risco de destruição. Nos tempos em que vivemos, plenos de contradições, em que os erros e as responsabilidades são de todos, apesar da tentação de criar bodes expiatórios, tantas vezes falsos e ilusórios, para que o caminho da autodestruição possa continuar sem grandes sobressaltos, Morin lança um alerta – o de que se impõe impedir que persista o fatalismo segundo o qual nada poderemos fazer para inverter a perigosa situação de que acabamos de tomar consciência, através desta crise financeira que nos abala e que é tudo menos conjuntural ou momentânea. Estão profundamente enganados os que pensam poder voltar à velha mentalidade imediatista e à corrida vertiginosa que confunde economia e ficção. Isso não será mais possível, sob pena de tudo piorar. “No sabemos lo que pasa y eso es lo que que passa” – Ortega y Gasset disse-o, e hoje sentimos que se trata de uma verificação sobre o que nos acontece. Mas Edgar Morin não corre atrás das tentativas de perceber os últimos acontecimentos. Fala-nos, antes, da cegueira de conhecimento que compartimenta os saberes e desintegra os problemas fundamentais e globais, que necessitam de um conhecimento transdisciplinar. Refere-nos que o ocidental-centrismo apoia-se apenas na racionalidade e dá-nos a ilusão de possuir o universal. E assim não é apenas a nossa ignorância, mas também o nosso conhecimento que nos cega.


A CRISE GLOBAL NÃO É ACIDENTE  
A crise planetária com que lidamos mal resulta da inexistência de autênticos dispositivos de regulação. A crise global não se resume a um acidente provocado pela hipertrofia do crédito, a qual não se deve apenas ao problema de uma população, empobrecida pelo encarecimento dos bens e serviços, obrigada a manter o nível de vida pelo endividamento. Morin aponta o dedo à especulação do capitalismo financeiro nos mercados internacionais (do petróleo, dos minerais e dos cereais) e ao facto de o sistema financeiro mundial se ter tornado um barco à deriva, desligado da realidade produtiva. E cita Patrick Artus e Marie-Paule Virard, no seu livro de antes do “crash” do Outono de 2008 intitulado «Globalisation: le pire est à venir» (La Découverte, 2008): «O pior ainda está para vir da conjugação de cinco características maiores da globalização: uma máquina inigualitária que mina os tecidos sociais e atiça as tensões protecionistas; um caldeirão que queima os recursos raros, encoraja as políticas de concentração e acelera o reaquecimento do planeta; uma máquina que inunda o mundo de liquidez e que encoraja a irresponsabilidade bancária; um casino onde se exprimem todos os excessos do capitalismo financeiro; uma centrifugadora que pode fazer explodir a Europa». A crise é multifacetada: é ecológica, pela degradação da biosfera; é demográfica, pela confluência da explosão populacional nos países pobres e da redução nos países ricos, com desenvolvimento de fluxos migratórios gerados pela miséria; é urbana, pelo desenvolvimento de megapolis poluídas e poluentes, com ghettos de ricos ao lado de ghettos de pobres; é da agricultura, pela desertificação rural, concentração urbana e desenvolvimento das monoculturas industrializadas; é ainda crise da política, pela incapacidade de pensar e de afrontar a novidade, perante a crescente complexidade dos problemas; é ainda das religiões pelo recuo da laicidade, pelo emergir de contradições que as impedem de assumir os seus princípios de fraternidade universal. Numa palavra, «o humanismo universalista – afirma ainda Morin - decompõe-se em benefício das identidades nacionais e religiosas, quando ainda não se tornou um humanismo planetário, respeitando o elo indissolúvel entre a unidade e a diversidade humanas».


CRESCIMENTO CONTÍNUO E INTERMINÁVEL?
A ideia fixa do crescimento contínuo e interminável não pode continuar. Basta fazermos simples operações aritméticas, considerando os sete mil milhões de habitantes da terra, para percebermos que sem consciência dos limites apenas poderemos chegar ao desastre global. É preciso conceber uma sábia complementaridade entre crescimento, decrescimento e estabilização, segundo a compreensão da complexidade. O desenvolvimento indiferenciado, seguindo o modelo ocidental produtivista, está votado ao fracasso, uma vez que desconsidera a diversidade e a complexidade, não compreendendo os limites. A hiperespecialização, o hiperindividualismo e a perda das solidariedades conduzem à incapacidade de corresponder às mais elementares exigências da justiça. E Morin afirma mesmo que não basta contentarmo-nos com o “durável” ou o “sustentável” de reminiscências ecológicas – é preciso ir mais fundo. As crises misturam-se, do conhecimento, da política, da economia, da sociedade, e levam-nos aos bloqueamentos da globalização, da ocidentalização e do desenvolvimento. Para Edgar Morin, assim, «a gigantesca crise planetária é a crise da humanidade que não consegue aceder à humanidade». Duas barbáries coexistem e agem sem contemplações: a que vem da noite dos tempos e usa a violência; e a barbárie moderna e fria da hegemonia do quantitativo, da técnica e do lucro. Ambas levam-nos ao abismo. Contudo, importa entender o que Hölderlin nos ensinou: «onde cresce o perigo, cresce também o que salva». A globalização pode trazer-nos factores positivos sobre o que pode unir a humanidade no sentido da paz. A consciência de uma Terra-Pátria é ainda marginal e disseminada. A globalização tecno-económica prevalece e contraria a emergência da sociedade-mundo que pode estar a ser lançada. A mundialização envolve, deste modo, o melhor e o pior, a emergência de um mundo novo e a autodestruição da humanidade.


A IDEIA FECUNDA DE METAMORFOSE
Edgar Morin propõe a ideia de metamorfose, improvável mas possível, como alternativa à desintegração provável. A natureza está cheia de exemplos de metamorfoses – a lagarta encerra-se na crisálida, num processo de auto-reconstrução. A noção de metamorfose é, deste modo, mais rica que a de revolução, uma vez que preserva a radicalidade transformadora, ligando-a à conservação da vida e à herança das culturas. Sendo impossível travar a tendência que conduz aos desastres, devemos pensar que as grandes transformações começam com uma inovação, uma nova mensagem marginal, modesta, tantas vezes invisível… Será preciso, no fundo, ao mesmo tempo, mundializar e desmundializar, crescer e decrescer, desenvolver e envolver, conservar e transformar. As reformas políticas, económicas, educativas ou da vida só por si estarão votadas à insuficiência e ao fracasso.   

Guilherme d'Oliveira Martins

 

 

Oiça aqui as minhas sugestões na Renascença

 

A VIDA DOS LIVROS


de 2 a 8 de Maio 2011

 

Ernesto Sábato (1911-2011) é um dos melhores escritores argentinos do século XX. Deixou-nos no último dia de Abril e a sua obra e exemplo cívico dão-nos a referência de alguém que, ao longo da vida, foi um incansável lutador pelo reconhecimento da dignidade da pessoa humana em todas as suas dimensões e consequências. A sua obra maior está na trilogia “O Túnel” (1948), “Sobre Heróis e Tumbas” (1961) e “Abbadón, o Exterminador (1974).

 
A MEMÓRIA DA INFÂNCIA
Ernesto Sábato nasceu em Rojas na província de Buenos Aires a 24 de Junho de 1911, iria, por isso, completar os cem anos dentro de poucas semanas. Foi o décimo de onze filhos, numa família de imigrantes de origem italiana, naturais da Calábria. A sua biografia começou por ser dominada pela sombria presença do irmão, falecido poucos dias antes do seu nascimento, de quem herdaria o nome. A memória mais antiga recorda Ernestito, que sua mãe nunca esquecerá pela vida fora. «Aquel nombre – dirá em “Antes do Fim” (1999) -, aquella tumba, siempre tuvieron para mí algo de nocturno, y tal vez haya sido la causa de mi existencia tan dificultosa, al haber sido marcado por esa tragedia, ya que entonces estaba en el vientre de mi madre; y motivó, quizá, los misteriosísimos pavores que sufrí de chico, las alucinaciones en las que de pronto alguien se me aproximaba con una linterna, un hombre a quien me era imposible evitar, aunque me escondiera temblando debajo de las cobijas». A primeira infância foi atribulada e as suas recordações lembram o seu estranho sonambulismo e uma especial ligação à mãe, personalidade forte que tanto marcou o jovem. Ernesto tornar-se-ia activista político e social, primeiro, cientista, depois, e, por fim, escritor dotadíssimo e um dos grandes renovadores da literatura argentina. Cresceu como um menino solitário, frágil e carente, aplicando a si o que Fernando Pessoa disse em “Tabacaria”: «Serei sempre o que esperou que lhe abrissem a porta ao pé de uma parede sem porta». Descendente de montanheses italianos e de uma velha família albanesa, Sábato foi tomando consciência do mundo que o rodeava, entre a incerteza e a esperança, virtude que o viria a marcar profundamente pela vida fora. Quando partiu para o Colégio Nacional de la Plata sentiu com intensidade o peso da nostalgia e da desprotecção, mas, a pouco-e-pouco, foi criando a sua autonomia. «Muitas lágrimas derramei naquele ano infinito». Uma educação austera, e duríssima por vezes, ensinou-o a cumprir o dever, a ser rigoroso consigo mesmo e a nunca deixar por completar qualquer tarefa começada. A severidade do pai teria sido responsável pela tendência pessoal para a tristeza e a melancolia e também para a rebeldia, bem evidente nas atitudes de ruptura de dois dos seus irmãos. Contudo, do pai ficou a profunda admiração pela fidelidade à palavra dada e por um especial culto pela amizade, que perdurou na memória familiar.


UMA VIDA MILITANTE
Com quinze anos começa a aproximar-se de grupos anarquistas e comunistas, ciente de que era necessário combater as injustiças e o risco de tirania. No fim do liceu (1928) entusiasma-se pelo jogo do xadrez, conhecendo Alekhine e Capablanca, duas glórias do momento, a disputar na Argentina o Campeonato do Mundo. “É a época mais feliz da minha vida”. Ingressa na Faculdade de Ciências Físico-Matemáticas, e segue uma vocação pessoal centrada no rigor científico. Aquando do golpe militar do General José Félix Uriburu (1930) passa à clandestinidade e centra a sua acção na Juventude Comunista, descurando o trabalho universitário. A acção política torna-se a sua principal preocupação, percorre o país como dirigente político e agitador social. Conhece Matilde Kuminsky-Richter (1918-1998), que será a sua companheira de toda a vida. Em 1934 começam as suas dúvidas sobre o marxismo-leninismo, sendo enviado para Moscovo para frequentar as Escolas Leninistas de Moscovo, devendo antes participar em Bruxelas no Congresso contra o Fascismo e a Guerra. Aí uma inconfidência leva-o a perceber que correria sérios riscos se fosse para Moscovo, já que descrê com crescente intensidade do materialismo dialéctico. Regressa à Argentina e rompe com o Partido. Em 1936, casa com Matilde e faz o doutoramento em Ciências Físico-Matemáticas, centrando-se agora, essencialmente no trabalho universitário. Consegue uma bolsa para trabalhar em Paris no prestigiadíssimo Laboratório Jolliot-Curie, para onde se desloca, aproveitando para se relacionar com os círculos do surrealismo.


EM BUSCA DA LITERATURA
Uma crise existencial atinge-o, a ciência não preenche a sua busca de sentido. Ainda trabalhará no MIT, em Boston, sendo reconhecida a sua grande qualidade de investigador, mas no início dos anos quarenta opta definitivamente pela literatura. Regressado a La Plata escreve sobre Bioy Casares e aproxima-se da revista “Sur” e do grupo de Victória Ocampo. É um tempo de transição em que assina pequenas obras de divulgação científica, desenvolve trabalhos académicos, mas está sobretudo preocupado com a actividade literária e com uma aposta integral nessa via. Em 1945, escreve “Uno e o Universo”, onde aponta os limites da racionalidade, reclamando a necessidade da compreensão da arte, da emoção e da humanidade. Em 1948, publica “O Túnel”, que constituirá um grande êxito editorial, saudado por escritores consagrados como Albert Camus e Graham Greene. Tema? O pintor Juan Pablo Castel confessa ter morto Maria Iribarne Hunter, que conhecera no Salão de Primavera. O interesse dela pela sua pintura leva-os a terem uma relação intensa e fugidia, em que a solidão e o amor se misturam com o ciúme… Em 1951, Sábato publica “Homens e Engrenagens” e em 1953 “Heterodoxia”, ensaios onde manifesta uma posição crítica relativamente às leituras lineares do progresso e às concepções políticas dominantes. O homem é um mistério que vale a pena investigar. A partir do mistério o homem deve combater o predomínio cego do racionalismo. A novela permite ao autor aproximar-se do amor, da morte, do mal e do mais severo pessimismo. Em 1958, depois de muitos dissabores políticos por defender a liberdade de imprensa e a democracia, quando o Presidente Arturo Frondizi assume a liderança do País é investido nas funções de Director-Geral das Relações Culturais no Ministério das Relações Exteriores, a que renunciará no ano seguinte. Em 1961 publica “Sobre Heróis e Tumbas”, a segunda obra da trilogia que celebrizaria Sábato, que é por certo a sua obra mais forte, onde encontramos três fios condutores da narrativa: a paixão avassaladora de Martín por Alejandra, o nascimento traumático de uma nação e a história da Seita Sagrada dos Cegos, casta perversa de poderes esotéricos e milhões de súbditos no mundo todo. Buenos Aires dos anos cinquenta aparece aqui em todo o seu esplendor e dúvida, entre a ânsia de liberdade e o peso da tirania.


A PROCURA DE SENTIDO
Ernesto Sábato põe na sua escrita a procura exigente de um sentido para a vida, ciente de que a dignidade humana apenas pode ser defendida pela consciência dos limites e pela compreensão das relações complexas entre liberdade e justiça. Em 1974, encerra a sua trilogia fundamental com “Abbadón, el Exterminador”, obra fragmentária, enigmática, apocalíptica, onde se nota a agonia de uma civilização, marcada pelo estranho triunfo das trevas… E é esse triunfo das trevas contra o qual o escritor se bate sempre. Após o fim da ditadura militar argentina Ernesto Sábato foi nomeado pelo Presidente Alfonsin para presidir à Comissão Nacional dos Desaparecidos. Esse foi um momento crucial na vida cívica do escritor, ensaísta e intelectual, bem evidenciada nesta passagem de “Antes do fim”: «El horror que día a día íbamos descubriendo dejó a todos los que integramos la Conadep, la oscura sensación de que ninguno volvería a ser el mismo, como suele ocurrir cuando se desciende a los infiernos. Siempre recordaré la entereza ética y espiritual de las personalidades de la ciencia, la filosofía, varias religiones y el periodismo, que integraron la comisión».    

Guilherme d'Oliveira Martins


Oiça aqui as minhas sugestões na Renascença