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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

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«Teolinda e Ulisses…»

 

 

 

 

 

 

 

 

 


 

 

O meu livro “Escritos sobre a pele” tem duas dedicatórias.

Hoje teria acrescentado uma terceira

                                                       “ À Teolinda Gersão, este meu conto:

                                                                                      “Isto a que se chama estar defronte

 

Desde a página 14 do livro “A cidade de Ulisses” da escritora Teolinda Gersão que tomei a decisão de me sentar em cima do tempo, agarrá-lo pelos cabelos como quem nunca largará a liberdade, e fora do alcance de tudo, menos das palavras da Teolinda fazer com que a tarde de sábado fosse o espaço de me dirigir ao mundo por interposta escrita.

Teolinda é cada vez mais uma escritora poderosa.

Coloca ela nas palavras visão e mundo e depois converte-as num exercício fascinante de hermenêutica perturbadora pelo que suscita e pelo que recusa jogar.

Por entre criar reacções e emoções, vai-se absorvendo a cidade de Lisboa neste livro amante, num prazer indissociável da luta dos amores com o vencer dos mesmos através de um apelo constante aos sentidos, numa errância permitida naquele expoente de quem segreda estados de graça e desesperos.

Teolinda traz-nos uma claridade nas razões das mudanças dos mundos ou nos obstáculos que o fazem entender.

E tudo, tudo, são aproximações à vida como se o horizonte fosse uma época de um só instante.

Fervilham muitos e poderosíssimos poderes neste livro.

Cecília amou com beijos e despedidas conjugados. E nunca as coisas são absolutamente o que mostram, ou, a aparência é sempre uma mentira de parênteses por entre Ofelinhas e Pessoas e outros viajantes que se procuram sempre a si noutros lugares.

Assim nos vamos aproximando da lenda de que fora Ulisses a fundar Lisboa, e por este caminho, Lisboa historicamente ligada à Grécia.

Talvez a inexistência de Ulisses tivesse sido tão forte que por essa razão nunca a história o esqueceu; e a Odisseia tão intemporal quanto pode ser a vida de cada um de nós.

E claro, Penélope aquela que afinal não troca a guerra de se desafiar por sob os desejos das palavras masculinas de honra e dever.

Penélope a que será sempre um dos riscos demasiado grandes.

A que me fez escrever

Desço até ao rio.

Quantas vezes fui para morrer? E já subo de novo até à casa onde me aguardas (…) já te lavei com água de rosas.

Já roubei jóias para ti. Mas mãe minha mãe, que vestido uso hoje?(…) que faço com estas chaves? Tive uma lança na mão que atirei ao meu peito.

Recordei.

E regresso à marginal que nos liga ao mar pela mão da Teolinda. E surge Estoril e Cascais e o Guincho e por lá também os continentes feitos barcos ao largo como quem promete chegar ao Índico e a África tão plenamente quanto se imaginam.

Recordo um Natal em que atravessar a Praça de Londres com luzes de festividade ingénua me deu a segurança que só uma mão na nossa até ao fim nos pode dar.

Pouco tempo depois recordei a letra de uma canção de Sérgio Godinho que dizia: toquei-te no ombro e a marca ficou lá. E recordei a letra desta canção já que esta realidade se passava debaixo de água, exactamente no local dos gestos serenos e leves e afinal a marca da mão ficara.

E depois existir naquele tempo Fassebinder é uma árvore que Teolinda não esquece.

É que se vivia sob lágrimas amargas de lucidez e de justiças injustas e desequilíbrios entre classes sociais muito profundos. E no meio de tudo isto e do que agora se não menciona, como sempre, e como nos diz o livro, agarrávamo-nos às esperanças como hoje. Até a fraude fiscal se combate como se combateu sempre em Portugal: com ineficácia e com a impunidade de que o poder é cioso. Também teve lugar um boom na Bolsa e nas palavras soltas das primeiras páginas dos jornais se lia crise, crise, 1929 pode chegar de novo. E havia o pequeno milagre de muitos e de cada qual a protegerem-se com algodão e cimento da imensa turbulência que nos rodeava.

E por outros cenários caminhava Cecília e ele ainda lhe criava barreiras de protecção como se a quisesse agora num diferente igual ao ontem que com ela vivera.

E o mais que Teolinda não escreveu, reside na doçura de Arpad. Na desarmante doçura de Arpad.

Assim, entramos para dentro dos sonhos e queremos mesmo sonhá-los até ao fim.

Mas também nos alerta este maravilhoso livro “ A cidade de Ulisses”, para a porta de traição que têm todos os castelos.

É minha a sedução em que me seduzo(...) o tal furor que afinal faz ruir a convicção. Afirmo no meu conto unindo-o à leitura de Teolinda.

E numa altura em que se paga a vida em capital e juros usurários Teolinda Gersão afirma no seu livro

«O Tejo é mais belo que o rio que corre na minha aldeia».

Desta sensibilidade resulta o parto de sermos o regresso e a partida numa verdade inverosímil pela qual se luta uma vida inteira.

E uma vez por outra, acontecia.

E uma vez por outra, acontece.

 

 

Teresa Vieira

16 de Maio/2011

Sec.XXI