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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

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Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

A VIDA DOS LIVROS


de 29 de Agosto a 4 de Setembro 2011
 

 

Luís Filipe Thomaz acompanhar-nos-á com o seu conhecimento e a sua sabedoria. Levaremos para nos guiar os seus estudos, como «A escravatura em Malaca no século XVI» e «As Cartas malaias de Abu Hayat, Sultão de Ternate, a El-Rei de Portugal – e os primórdios da presença portuguesa em Maluco». Partimos com o entusiasmo de sempre. Desta vez, vamos completar as peregrinações no rasto de Fernão Mendes Pinto e de Francisco Xavier. Quinhentos anos depois da conquista de Malaca (1511), regressamos imbuídos do espírito universalista e moderno do diálogo e do respeito, e, mais do que lembrar o tempo antigo, partimos dessa história rica para o futuro, fieis a Padre António Vieira e ao seu Império do Futuro e às Saudades dele.

 

 

Malaca. Porta de «A Famosa». Património Mundial da UNESCO.

 

VINTE SEIS ANOS DE VIAGENS
Quando Helena Vaz da Silva lançou, em 1985, este ambicioso ciclo dos «Portugueses ao Encontro da sua História», do Centro Nacional de Cultura, talvez não supusesse que, todos estes anos passados, com várias voltas ao mundo realizadas, ainda continuamos a procurar encontros inesperados nos lugares mais recônditos da terra. Mais do que olhar para a História, como referência passada de encontros e desencontros, do que se trata é de realizar embaixadas de escritores, artistas, cidadãos, que têm sobretudo o interesse de favorecer o melhor conhecimento mútuo. Há alguns meses, regressámos do Japão e sentimos com muita emoção que fomos recebidos de braços abertos, genuinamente. A virtualidade maior desta iniciativa é o seu carácter de pura «peregrinação», em que vamos de olhos e coração abertos, sem cuidar do que pode resistir, mas apenas pensando no facto único, que é o de haver portugueses em toda a parte, e se não estão fisicamente existe a sua memória. Com que espanto vimos no Sultanato de Oman as cúpulas das mesquitas que inspiram as guaritas da nossa Torre de Belém ou a decoração da Bacalhoa – como Leonor Xavier lembra na «Viagem das Arábias». Com orgulho, fomos ouvir, em imaginação, o Padre Vieira em Salvador ou no Maranhão, a fazer da língua uma eficaz lança contra a injustiça. Com que satisfação partimos da Foz do Iguaçu no caminho dos Bandeirantes, percebendo que a História se foi fazendo numa riquíssima dialéctica envolvendo índios guaranis, jesuítas e conquistadores. Se falo de continentes longínquos devo ainda referir a Europa Oriental, mais próxima, onde, para surpresa de muitos, fomos encontrar um braço direito português de Pedro o Grande, mas também deparámo-nos com a recordação de Damião de Góis em Cracóvia ou com os ecos extraordinários da diva Luísa Todi em S. Petersburgo…

 

SEMPRE COM FERNÃO MENDES
Fernão Mendes Pinto tem-nos guiado os passos. Temos viajado, milhares de milhas ou quilómetros, com a «Peregrinação» debaixo dos olhos. E posso dizer que, vendo os cenários onde esteve, ainda admiramos mais o extraordinário génio desse escritor, mais do que cronista, anunciador da nova literatura. Aliás, só poderemos perceber Camões, João de Barros, Diogo do Couto ou D. João de Castro, lendo o outro lado da vida e as descrições pícaras e dramáticas de Fernão Mendes. É o anti-herói, que usa a regra da sobrevivência, mais do que a da honra – e nesse ponto descreve a presença portuguesa na sua diversidade, em que a virtude e o pecado se associam. E assim Fernão Mendes construiu, no dizer de António José Saraiva, «um Oriente espantosamente humano, que tem o seu estilo próprio. Um Oriente que não é feito só de cidades, templos e esculturas, mas também do estilo falado, de etiquetas humanas, de sentimento típicos». Encontrámo-lo entre Goa e o Mar Vermelho, em guerra de corso. Vimo-lo no Japão e sentimos a sua relação com o bom Padre Francisco Xavier. Relemos as aventuras em Sião, na Cochinchina, Anão e Tonquim, no rasto do Corsário Coja Acém, ao lado de António Faria. Mas agora preparamo-nos para caminhar com ele em direcção a Malaca, onde esteve ao serviço de um fidalgo, percorrendo as costas de Samatra e da península malaia. A aventura de antanho é o pretexto, mas o que queremos é reencontrar as reminiscências actuais da presença dos portugueses, das nossas cultura e língua nestas paragens.


UM PÉRIPLO PORTUGUÊS
Este périplo, que invocará os quinhentos anos da presença portuguesa em Malaca (1511) e continuará a recordar o nascimento de Fernão Mendes, permitindo irmos ao «coração de Malaca», mas também até à Indonésia, a Timor e às Flores, nesta extraordinária região do «papiar cristão». E, como gostava de lembrar o nosso querido António Alçada Baptista, aqui as orações dizem-se em português e a palavra saudade tem o mesmo sentido que nós lhe damos. Neste espírito de «Peregrinação» voltamos, mais uma vez, a deparar-nos com o génio de Afonso de Albuquerque, artífice da miscigenação, da mistura e do encontro. E se Fernão Mendes foi tudo – criado de fidalgo, soldado, escravo, agente de negócios, pirata dos mares da China, mercador, médico ocasional do rei do Bongo, vagabundo e embaixador -, a verdade é que isso significa que ele simboliza o português do mundo – Todo o mundo e Ninguém, como no «Auto da Lusitânia» de Mestre Gil.


AO ENCONTRO DO TEMPO
Depois do Japão, regressa a Malaca ao encontro do capitão que o protege, que o acolhe e o envia em missão. Mendes Pinto volta, porém, a meter-se em apuros no Golfo de Bengala, e vai até à Índia. Depois, volta a Malaca e daí parte para Java, onde se torna soldado mercenário. Malaca torna-se placa giratória dos movimentos do autor da «Peregrinação». António José Saraiva afirma ainda certeiramente que «não há na literatura portuguesa um tesouro de fantasia comparável a este. Uma selva espessa de aventuras, de acontecimentos, de descrições, de surpresas, de enormidades, um mar em que a vaga sucede à vaga – são as imagens que ocorrem para caracterizar a abundância e a força deste livro». É o anti-herói que descreve a vida sem os preconceitos da honra, mas com as fraquezas próprias de quem desfalece por se deparar com os perigos e ameaças que uma aventura verdadeira sempre suscita. Mendes Pinto oscila, assim, entre o sublime e o corriqueiro, entre o cinismo e a determinação – associando na mesma personagem o herói e o homem comum, o pobre de mim. Pois, sob estas invocações, ouvimos de Malaca a pergunta, que vem da noite dos tempos: «Ki nobas?», a interrogação por novidades ou notícias… Ao encontro da história e da cultura, seguiremos, de 27 de Agosto a 10 de Setembro, com o Prof. Luís Filipe Thomaz, cicerone por excelência desta «peregrinação» única pelo caminho do papiar, a língua franca do século XVI: Kuala Lumpur, Malaca, Bali, Flores (ao encontro da família real de Sika, os Ximenez da Silva), Timor Leste, Amboíno, Ternate, Tidore, Jacarta, Singapura. Que é a interrogação do passado senão a procura dos trilhos contemporâneos que significam a continuidade do tempo?

 

OUVIR CAMÕES
E ouvimos Camões: «Olha cá pelos mares do Oriente / As infinitas ilhas espalhadas / Vê Tidore e Tarnate, co fervente / Cume, que lança as flamas ondeadas. / As arvores verás do cravo ardente / Co sangue português inda compradas. / Aqui há as áureas aves, que não decem / Nunca à terra e só mortas aparecem». (Os Lusíadas, X, 132).

 

 

Guilherme d'Oliveira Martins

A VIDA DOS LIVROS


de 22 a 28 de Agosto de 2011

 

 

«Scoop» de Evelyn Waugh (1903-1966) – 1ª edição, 1938; revista em 1964, Chapman and Hall - é considerado, justamente, como uma das obras-primas da língua inglesa do século XX (há tradução portuguesa, «Enviado Especial», de Luís de Almeida Campos, Bertrand, 1991). Ainda que outros romances do escritor sejam mais conhecidos do grande público, o certo é que neste caso encontramos os ingredientes que caracterizam a originalidade de Waugh – uma capacidade excepcional de usar a sátira, uma leitura muito arguta da realidade social do seu tempo e uma compreensão exacta de que os valores éticos e culturais não se afirmam ou persistem em abstacto, mas sim se forem capazes de vencer a difícil prova da crítica e da severa ironia.

 

Óleo de Henri Lamb.

 

UM HETERODOXO ESPECIAL
Evelyn Waugh nasceu em Hampstead, originário de uma família de editores e escritores, sendo que entre os seus irmãos o mais reconhecido começou por ser Alec, hoje praticamente desconhecido. O modo inesperado e heterodoxo de tratar os temas sociais e religiosos, hábitos e costumes foi a chave do sucesso do escritor que, apesar de conservador de formação e pensamento, se tornou um analista crítico de grande profundidade, inteligência e eficácia. Estudou em Lancing e no Hertford College de Oxford, onde cursou História Moderna, tendo sido um notável retratista literário do ambiente da Universidade britânica entre Guerras – como vários protagonistas desse período reconheceram expressamente. Em 1927, publicou uma biografia de Dante Gabriel Rosetti, onde tradição e modernidade se encontram com especial intensidade. No ano seguinte, lança o primeiro romance «Declínio e Queda» («Decline and Fall»), onde se notam todos os elementos romanescos que o tornarão muito apreciado e sobretudo que o definirão como um caso especial de originalidade e de inteligência humorística. A sucessão de títulos como «Corpos Vis» («Vile Bodies», 1930), «Malícia Negra» («Black Mischief», 1932), «Um Punhado de Pó» («A Handful of Dust», 1934) – antes de «Scoop» - veio confirmar plenamente as qualidades e o método inicialmente demonstrados pelo autor. Entretanto, viaja pela Europa, Próximo Oriente, África e América do Sul, publicando diversos livros sobre essas peregrinações – como «Remote People» (1931), «Waugh in Abyssinia» (1936). É desta experiência de viajante, num tempo especialmente difícil e perigoso, que antecedeu a eclosão da Segundo Grande Guerra Mundial, que E. Waugh vai tirar o tema para o extraordinário relato sobre um enviado especial. Ismaelia tem, assim, a ver com a Etiópia de Salassié e com as pretensões expansionistas italianas. A comicidade dos acontecimentos
antecipava a tragédia…

 

UM ENVIADO MUITO ESPECIAL
William Boot era um jovem que vivia no campo, longe da agitação de Londres, tendo a seu cargo uma pequena coluna sobre temas da natureza num jornal de divulgação nacional, o «Daily Beast» de Lord Cooper. Boot alimentava, porém, a secreta esperança de poder ter outros voos no jornalismo, como o de correspondente internacional. Como se compreende, a actividade a que se dedicava estava, à partida, longe dessa ambição. As ironias do destino levaram, porém, a que, por uma estranha confusão de nomes, com um novelista com provas dadas, William Boot seja enviado para realizar uma missão num país africano de ficção, Ismaelia, em busca de um «furo jornalístico», uma vez que a situação que aí se vivia era explosiva, à beira de uma guerra civil. O jornal pretendia, no fundo, com recurso a um escritor conhecido, obter mais vendas através de um relato colorido dos acontecimentos dramáticos que iriam ter lugar. A inaptidão de Boot para esta missão era, no entanto, evidente. O inesperado ou o impossível, porém,
verificam-se. E Waugh, com o seu magnífico método de usar a ironia e a sátira até à exaustão, demonstra, para gáudio dos leitores, que seguem com entusiasmo o desenrolar do enredo, como uma personagem votada ao fracasso pode, por um mero equívoco, tornar-se involuntariamente a pessoa de que o proprietário do jornal estava mesmo à espera. E assim como um erro conduziu ao convite para partir, vamos perceber que a vida, sendo, de facto, uma floresta de enganos, leva a que, apesar de estarmos perante o homem errado para esta missão, a verdade é que o êxito que o jornal pretendia com o convite a um novelista conhecido foi alcançado, uma vez que William Boot, o cronista de temas da natureza, apesar da sua incapacidade para entender os acontecimentos de Ismaelia, conseguiu obter o «furo jornalístico» pretendido. A crítica à lógica do sucesso jornalístico imediato é demolidora e tem uma actualidade muito maior do que se poderia pensar à primeira vista. Todavia, assim como houve no início uma confusão, o mesmo ocorre no final, já que é o verdadeiro escritor William Boot a beneficiar das honrarias pelo sucesso obtido graças ao acaso e ao pobre plumitivo que tratava de sementes e do modo mais adequado para as plantar e ter resultados.

 

AVENTURAS PERIGOSAS
Em 1939, o escritor foi mobilizado primeiro para os Royal Marines e depois para os Royal Horse Guards, servindo no Médio Oriente, na Jugoslávia e em Creta. O testemunho deste tempo encontra-se muito claramente evidente nas obras que se seguem: «Put Out More Flags», e a série «Sword of Honour» («Men at Arms», 1952, «Officers and Gentlemen», 1955, «Unconditional Surrender», 1961). Em 1945, é o ano da publicação de «Brideshead Revisited», que celebrizará definitivamente Evelyn Waugh. O monumento literário ultrapassa em muito todas as tentativas feitas para o transpor para a tela, ora numa série de televisão, ora no cinema. Aí encontramos uma saga de tipo novo, onde juntam diversos elementos que Waugh trata magistralmente – o fim de uma era patrimonial, centrada nas últimas referências de uma sociedade aristocrática rural, o choque entre o formalismo vazio e uma «aristocracia do comportamento», os encontros e os desencontros do fim da guerra e da velha aura imperial britânica, os diversos sinais heterogéneos da decadência e de um certo renascimento, através da vivência de sentimentos autênticos. Dir-se-ia que em Brideshead se juntam os diversos modos de ver a vida e a sociedade. De facto, Waugh analisa os antigos valores da sociedade e põe-nos à prova, colocando em confronto a sinceridade e a hipocrisia, a generosidade e o egoísmo, a superficialidade e o sentido das coisas. Não foi, aliás, por acaso que Graham Greene afirmou ser Evelyn Waugh o «maior novelista da minha geração», enquanto na opinião de Nancy Mitford: «What nobody remembers about Evelyn is that everything with him was jokes. Everything. That's what none of the people who wrote about him seem to have taken into account at all». De facto, Mitford entendeu muito bem o enorme poder da ironia, que Waugh manejou como ninguém. Apesar das profundas diferenças, sente-se que há reminiscências do melhor G. K. Chesterton, expressamente citado, aliás, pelo autor. Em «Scoop» encontramos, numa solução concentrada, de um humor refinadíssimo, tudo aquilo que de melhor se revela na obra de Waugh. Estamos diante de uma obra-prima, onde não temos qualquer receita fácil, mas sim um relato muito bem urdido, que seguimos com naturalidade e prazer, percebendo que a sátira nunca é artificial e que, a cada passo, poderemos encontrar-nos com as mais curiosas e bem caçadas personagens. 

 

Guilherme d'Oliveira Martins

A VIDA DOS LIVROS


de 15 a 21 de Agosto de 2011

 

Os amigos do ensaísta, o Centro de Estudos Ibéricos da Guarda e a Associação Rio Vivo realizaram no dia 6 de Agosto em S. Pedro de Rio Seco uma homenagem a Eduardo Lourenço. Foi um momento de especial emoção, em que se inaugurou um pequeno monumento da autoria de Leonel Moura e se invocou o extraordinário percurso do autor de “O Labirinto da Saudade”. E não é de mais recordar que foi a revista “Raiz e Utopia” (título que o Centro Nacional de Cultura mantém) a publicar esse ensaio extraordinário intitulado “Psicanálise Mítica do Destino Português”. Hoje divulgamos as palavras proferidas em S. Pedro de Rio Seco.

 

Homenagem a Eduardo Lourenço _ 6 Agosto 2011

 

A FORÇA DA PALAVRA
«Celebrar é pôr em comum o que desejamos partilhar e com Eduardo Lourenço é a força da palavra, das ideias, da fecundidade do pensamento que desejamos enaltecer. Celebrar provém do grego «kele», que significava a marca dos barcos na água, tendo depois passado a referir o trilho da gente nos caminhos. Celebra-se o movimento (daí célere) e a palavra é o meio por excelência para representar o que tem vida. E podemos citar Montaigne, sempre ele, a propósito de quem cultiva o ensaio como método de interrogação e de exercício permanente da dúvida: «Je n’enseigne pas, je raconte». E é esse contar, esse dizer, esse encontrar o fio de Ariadne, esse celebrar que nos leva a entender o mundo, o acontecimento como nosso mestre interior, a vida e as pessoas, que encontramos no heterodoxo por método e atitude, por persistente desejo de partir da interrogação e da crítica para tentar chegar a busca insistente da verdade. E o que é um heterodoxo? É alguém que procura entender o mundo como resultado de vários caminhos e de várias influências. O uno e o múltiplo completam-se absolutamente. A obra do nosso homenageado é fascinante, uma vez que procura sempre pôr-se no outro lado, assumindo individualmente a missão, que aprendeu do já citado Montaigne, de partir do eu, do incómodo eu, para o outro. E um heterodoxo lúcido é quem procura mais luz, para poder perceber as diferenças, as particularidades e a universalidade do ser.


CULTOR DE PARADOXOS

Eduardo Lourenço é um cultor de paradoxos, ciente de que a cultura se enriquece pela capacidade de ver o mundo do avesso e de olhar para além das aparências. «É a vida mesma que nos biografa – por isso é a nossa vida – e escrevendo-se em nós nos autobiografa sem que a ninguém, salvo essa vertiginosa musa, possamos imputar tão extraordinária façanha». Com um dom de usar as palavras para melhor as adequar ao mundo da vida, o ensaísta não esconde que a essência do género que cultiva, tem a ver com a confissão na primeira pessoa do singular. «Nisso quem está a menos, somos nós, e a vida tão excessivamente a mais que só a conhecemos por nossa nos intervalos em que a temos como se de outro fosse. Só os outros nos tiram retratos e só a coleção aleatória destas vistas ocasionais dos outros sobre nós ocasionalmente arquivadas, se isso valesse a pena, para termos mais tarde e acabada a vida que não nos tem, seria então um “auto-retrato”». Em tempos, um grafólogo identificou na escrita do ensaísta «uma excessiva necessidade de outros», e o próprio, paradoxalmente, comparou-se a Judas que precisava desesperadamente de Jesus Cristo. E aqui se sente o heterodoxo, incapaz de se deixar ficar ora na leitura racional e positiva dos acontecimentos, ora na tentação mítica ou ilusória das explicações das pessoas e do mundo. Em S. Pedro de Rio Seco está a origem dessa atitude de dúvida e de espanto. «Nós falamos sempre de nós nos textos, mas nuns mais do que noutros. Tenho consciência de que tudo me é pretexto para não falar de mim. Ou seja: para falar incessantemente de mim. É por isso que a minha escrita é lírica e passional» (JL, 6.12.86). E assistimos a uma espécie de jogo da cabra-cega em que somos e não somos e em que nos preocupamos em descobrir o mundo na perseguição dos outros. E deparamo-nos com a procura do «outro que era eu» - que vem das entranhas da terra, desta raia longínqua, aonde Eduardo regressa como um espectro de si mesmo, ou como um fantasma benigno de quem tanto gostamos. «Noutras terras os relógios das torres marcaram outro tempo. O nosso era um tempo sem tempo, alegoria a uma eternidade onde tudo quanto importava já tinha acontecido» (Público Magazine, 21.4.96). E é esse tempo sem tempo que leva Eduardo Lourenço a dizer que tudo era verdade na sua aldeia, mesmo a mentira - «três mil anos de herança», desde o neolítico. «Nunca saí desta idade média onde todas as coisas, todas as vozes, todos os rostos eram naturais» (JL, 13.4.94).


A INICIAÇÃO DO MUNDO

«A saída dessa aldeia foi a saída para o mundo exterior, a saída sem regresso». E a Guarda, primeiro destino, tornou-se como se fora Nova Iorque, o sinónimo do mundo – esse mundo que Thomas Mann representou na «Montanha Mágica» e que encontramos em Vergílio Ferreira. E essa adolescência vivida com naturalidade pôde assemelhar-se ao sublime. Afinal, «a interioridade é também um mito porque estávamos sempre no exterior de nós próprios» («25 Portugueses», 1999). Depois, vieram Lisboa e o Colégio Militar. Lisboa era o sítio ideal para acreditar que as caravelas continuavam a existir. E Eduardo Lourenço fez dessa experiência singular um modo de olhar a vida. Como em tudo, tira a boa lição, define distâncias, e avança para Coimbra cheio das ilusões dos dezassete anos. Na biblioteca, encontra Nietzsche, continua com Kierkegaard, entusiasma-se com Hegel e estuda Husserl. Joaquim de Carvalho e Sílvio Lima tornam-se referências que o marcam pelas ideias, pela atitude, pelo sentido crítico. Eugénio de Andrade encontra-o e lembra-o com Carlos de Oliveira («foi o Carlos que me apresentou o Eduardo»). É o tempo do neo-realismo, que Eduardo Lourenço, vindo de campo diferente, procura compreender, ressalvando a distância crítica. Há, no entanto, manifesta ambiguidade em quem se preocupa com a descoberta dos outros. O episódio da passagem da «Vértice» para o grupo neo-realista é ilustrativa da candura, e da confiança pessoal genuína em Carlos de Oliveira e Rui Feijó. E, nessa demarcação de território, «Heterodoxia» surge como algo de natural. «Um domínio, um território. Que me pusesse fora dos campos delimitados por qualquer ortodoxia, de qualquer género que fosse» (Expresso, 16.1.88). Vitorino Nemésio dirá tratar-se de um livro «juvenil e ardente, concatenado com saber e amor da exatidão, e escrito com um nervo e uma elegância que farão inveja a muitos prosadores brevetados» (Diário Popular, 28.6.50). As reações foram contraditórias – houve quem lesse com entusiasmo e quem julgasse tratar-se de uma traição (mesmo sem profissão de fé anterior)… Hoje admiramo-nos pela clarividência, que o curso histórico confirmaria.


ESTRANGEIRADO, NÃO

Em 1953 parte. Mas recusa a condição de exilado. É apenas emigrado. «Como é que um homem nascido em S. Pedro de Rio Seco pode ser outra coisa que não português?» (JL, 6.12.86). Não aceita o epíteto de estrangeirado - «Não, não aceito. Fico furioso. Fico desesperado» (Ibidem). De facto o seu método é o de olhar de dentro, mesmo estando de fora. «Exílio verdadeiro, o autor destas reflexões só o conheceu no interior do seu país» (dirá no «Labirinto»). Paris, Hamburgo, Heidelberg, Montpellier, Salvador da Bahia. «Gostei muito de estar na Alemanha. Sobretudo em Heidelberg. Mais tarde arrependi-me de não ter aí ficado…» (Expresso, 23.9.95). Depois, Grenoble, Nice, Vence. Mas E. Lourenço continua atentíssimo ao que se passa em Portugal. São fundamentais os seus textos em «O Tempo e o Modo». Sentem-se, sobretudo depois de 1958, de 1961 e de 1968, os sinais da transição, lenta e com sintomas contraditórios. «O fascismo existiu e com uma perfeição quase absoluta. Mas não existiu nunca como a maioria da oposição democrática o pensou antes do 25 de Abril, e a ela continua a referir-se uma parte da classe política triunfante, simplificando-o com a espécie de violência infantil que se reserva aos papões que deixaram de meter medo». Eduardo Lourenço procura compreender Portugal nesse momento crucial de 1974, em que a liberdade chega com o fim do império. Escreve não para recuperar o país, que não perdeu, mas para o «pensar» com a mesma paixão e sangue-frio intelectual com que pensava quando «teve a felicidade melancólica de viver nele como prisioneiro de alma». Em «O Labirinto da Saudade», depois de concluir que a imagem ideal de nós mesmos era desadequada da realidade, diz ser chegada «a hora de fugir para dentro de casa, de nos barricarmos dentro dela, de construir com constância o país habitável de todos, sem esperar de um eterno lá-fora ou lá-longe a solução que, como no apólogo célebre, está enterrada no nosso exíguo quintal. Não estamos sós no mundo, nunca o estivemos». A conversão cultural necessária passa sempre por um olhar crítico sobre o que somos e fazemos. E é esse olhar crítico que nos conduz naturalmente aos fatores democráticos e ao humanismo universalista de Jaime Cortesão. E podemos ler a uma luz nova “A Viagem a Portugal” de José Saramago, numa continuidade ibérica (bem presente no Centro de Estudos Ibéricos), tão bem entendida na memória de Miguel de Unamuno em Salamanca.


TODO MUNDO E NINGUÉM

Como todo o Ocidente tornámo-nos Todo o Mundo e Ninguém. E hoje, em tempo de crise, Portugal, Europa, mundo obrigam a repensar o destino como vontade, seguindo a lição perene de Antero e dos seus… E se falo da célebre geração de 70 é porque Eduardo Lourenço tem no seu código genético de pensador a marca fundamental de uma síntese fantástica que liga o grito dos jovens de Coimbra e do Casino Lisbonense ao impulso futurista do Orpheu, menos no imediato do que no largo prazo, de quem procurou ligar a razão e o mito, o idealismo e o sentimento trágico da vida. E, hoje, acordados à força pela crise, percebemos que esses impulsos que clamam «Indignai-vos!» podem ser úteis. E há dias Eduardo Lourenço empunhava, de novo, o estandarte europeu, sem demasiadas ilusões: «A cada um sua utopia. Utopia por utopia, como europeu desiludido mas não suicida, prefiro ainda a de uma Europa apostada em existir segundo o voto dos que há meio século a sonhavam, não como uma continuidade óbvia de um passado “europeu” sem identidade, mas como uma aposta numa Europa, empírica e voluntariosamente construída pelas “várias europas” que são cada uma das suas nações». Goethe disse-o um dia, e não devemos esquecê-lo. Não é uma pseudo-América de segunda ordem que está em causa, mas uma saída que exige compromisso e ação. Eduardo Lourenço pensa Portugal como vontade e como comunidade plural de destinos e valores, pondo em diálogo os mitos e a razão e procurando afastar a maldição do atraso. O enigma português, em suma, não pode ser respondido ou encontrado através de qualquer simplificação – ora idealista, ora sentimentalista, ora materialista. E só a heterodoxia permite entender o nosso melting – pot, indo ao encontro da miscigenação, ligando a razão e a emoção, percebendo a alternância cíclica do otimismo e do pessimismo. É a «maravilhosa imperfeição» que o pensador cultiva, ligando-a à complexidade e à diversidade. Sá de Miranda e Herculano representam o mais vale quebrar que torcer. Fernão Mendes Pinto simboliza a imaginação fértil ao encontro do mundo. O Padre Vieira interroga a Deus e invetiva-o. Camilo e Eça retratam as diversas faces da pátria. E a utopia (não fora português o herói de Tomás Morus e também português o braço direito de Sandokan, de Emílio Salgari) torna-se um horizonte de crítica e de exigência, e nunca de fuga à realidade. E Portugal, a Europa e o Mundo ligam-se placidamente no apelo universalista da dignidade humana. Artífice de uma heterodoxia fecunda, Eduardo Lourenço é hoje uma das consciências culturais, morais e cívicas da Europa contemporânea, ao lado de Edgar Morin, de Claudio Magris ou de Jürgen Habermas. E é com sereno orgulho que o consideramos como consciência crítica da cultura portuguesa na linha de Herculano e de Antero. Não há outra homenagem que possamos fazer. Muito obrigado, Eduardo! Continuamos a contar consigo!».

Guilherme d'Oliveira Martins


 

Outros livros...

A VIDA DOS LIVROS

 


De 8 a 14 de Agosto de 2011


«O Republicanismo em Portugal – Da Formação ao 5 de Outubro de 1910» de Fernando Catroga (Casa das Letras, 2ª ed. 2010) retrata o percurso português da ideia republicana. Como afirma o autor: «Desde a significação clássica de res publica compatível com vários regimes políticos até à exclusiva denotação de um regime contrário à Monarquia, são múltiplas as acepções do termo. Por outro lado, basta uma rápida incursão pela literatura política dos séculos XIX e XX para verificar que, por exemplo, a ideia de República em Antero de Quental é diferente da de um Teófilo, a dos federalistas demarca-se da dos unitaristas, assim como a da “Renascença Portuguesa” difere do ideal republicano da “Seara Nova” ou do republicanismo do Partido Democrático». Assim, é interessante verificar como o oitocentismo prenuncia o que acontecerá no século XX e como hoje a ideia persiste.

 


Porto, 31 de Janeiro de 1891.

DECADÊNCIA VERSUS REGENERAÇÃO
A história dos dois últimos séculos em Portugal foi dominada pela alternância entre o sentimento de decadência e a força dos desígnios regeneradores. Se a Revolução de 1820, a Regeneração ou a República corresponderam à ideia de recomeço ou de reforma, o Ultimatum inglês, a crise financeira de 1892 ou o Regicídio significaram sinais de decadência e de humilhação. «Se descermos ao ideário dos pensadores sociais, encontramos o mesmo binómio a ritmar os ciclos do passado e a projectar a tendência futura da humanidade e de Portugal (Herculano, Teófilo, Antero, Oliveira Martins)». A geração de 70 pôs, assim, a tónica nas causas da decadência dos povos peninsulares desde o século XVI, num diagnóstico em que, ao longo do tempo, prevalece a lógica de um «organismo espiritualista de fundo hegeliano», ao lado de um entendimento influenciado por Gianbattista Vico, segundo o qual a História caminha segundo o ritmo de «corsi» e «ricorsi», como Michelet popularizou, devendo ainda adicionar-se a influência pessimista do «inconsciente» de Eduardo Hartmann. De facto, não podemos compreender o republicanismo português sem o ligarmos à história do século XIX. Desde 1820 ou do debate constituinte que conduziu à primeira Constituição (1822) até aos ecos da Primavera dos Povos (1848), passando pela guerra civil que terminou com Évora Monte (1834) e continuando na Revolução de Setembro (1836) e no clima de guerra civil entre 1842 e 1851, sentimos o peso do debate sobre a soberania popular e a sua aplicação. E este conduziu às origens da democracia grega e à República Romana, à consideração da importância da liberdade e da igualdade e ao debate sobre a criação das instituições adequadas à realização dos direitos dos cidadãos. Aos sinais de decadência diagnosticados no Casino Lisbonense por Antero, em Maio de 1871, haveria, no fundo, que contrapor as bases de uma regeneração cívica e política.

A SOMBRA DE HERCULANO
O Acto Adicional de 1852 representou a criação de uma síntese entre a legitimidade da Carta Constitucional (já de si um modo de demarcação moderada relativamente ao absolutismo do Antigo Regime) e a afirmação do poder constituinte do povo, assumida na Constituição de 1838. Alexandre Herculano merece aqui referência especial a diversos títulos – ora como inspirador e animador do golpe de Estado da Regeneração (1851), ora como defensor do espírito da Constituição de 1838, sem esquecer a importância que a Carta Constitucional de D. Pedro tivera na vitória liberal, ora como crítico de uma Regeneração unívoca, como defensor de uma solução plural em que o novo poder pudesse contar com uma oposição, para que a estabilidade se baseasse na crítica e na alternância. Se virmos vem, Herculano aparece, assim, como referência paradigmática, aliando o sentido crítico à formulação de saídas para os males do país. A Regeneração de 1851 não pode ser compreendida, pois, sem as repercussões da Patuleia e de 1848. Lembremo-nos da revolta das hidras e dos primeiros clubes radicais (de Oliveira Marreca, José Estevão e Rodrigues Sampaio) ou da obra fundamental de José Félix Henriques Nogueira «Estudos sobre a Reforma em Portugal» - percebendo aí um movimento doutrinal que faz luz sobre as mais avançadas tendências do liberalismo oitocentista, ligando, liberdade, coesão social e progresso económico. E essa referência permite-nos afirmar que o republicanismo não pode ser entendido fora de uma tensão profícua entre continuidade e ruptura. É de algum modo republicanizante a Regeneração de 1820 pela ausência do Rei e da corte no Brasil; é republicanizante a Revolução de Setembro em nome da soberania do povo; é republicanizante a reacção anti-cabralista (animada pelo insuspeito Herculano, monárquico liberal) por influência do ambiente europeu da «primavera dos povos»; são ainda republicanizantes, no contributo de alguns, a Regeneração de 1851 e o Acto adicional do ano seguinte, naquilo em que procuram estabilizar a solução liberal e o constitucionalismo. E se dúvidas houvesse, bastaria vermos que nos anos sessenta a Questão Coimbrã e em 1871 as Conferência Democráticas são explicitamente republicanas – mesmo que José Fontana e Antero pusessem a tónica na República Social, em que a justiça se torna mais importante do que a questão do regime.

A AMBIGUIDADE REGENERADORA
A Regeneração («nome português do capitalismo», na fórmula de Oliveira Martins) nasce, contudo, ambígua – entre os radicais de 1848, os patuleias, os cabralistas arrependidos, os cartistas resignados, os simonianos idealistas (defensores de um socialismo de engenheiros ou de um capitalismo dos melhoramentos materiais do engenheiro Fontes). Se é certo que houve vários sobressaltos (a Janeirinha de 1868, a Saldanhada de 1870, o reformismo de Braancamp), a verdade é que a sementeira de libras, o recurso ao crédito público, os melhoramentos (o caminho de ferro, as estradas, o telégrafo), o alargamento do sufrágio eleitoral, o caciquismo bipolar (do carneiro com batatas, bem retratado por Júlio Dinis) funcionaram melhor ou pior até aos anos oitenta. A liberdade de imprensa, o pluralimo político, as liberdades públicas permitiram o exercício da crítica (o fecho das Conferências do Casino foi excepcional) – daí a crescente influência do Partido Republicano nas cidades, que, sem ter o exclusivo do republicanismo, se torna o seu polo mais relevante. A influência francesa torna-se evidente, sobretudo depois de 1871, e a implantação da República espanhola (1873) também ajuda. O republicanismo envolve três grupos: o democrata, o moderado (vindo de 48) e o federalista. Começam então os esforços reais para dar consistência a um partido capaz de pôr em causa a monarquia liberal. Se os anos setenta são apontados como os da génese do Partido Republicano, pode dizer-se que apenas depois de 1880 foi possível passar de um período incipiente, de alguns centros urbanos, para uma rede nacional com uma direcção coordenada. As comemorações do centenário de Camões foram uma oportunidade para impulsionar decisivamente a influência do Partido Republicano, em torno de figuras como Oliveira Marreca, Teófilo Braga, Bernardino Pinheiro, Latino Coelho e Manuel de Arriaga. A eleição em 1878 do primeiro deputado republicano para a Câmara dos Deputados, Rodrigues de Freitas, no Porto, foi um facto importante, devendo-se, contudo à sua própria popularidade, já anteriormente testada no sucesso dos reformistas (1870 e 71). O Ultimatum e o 31 de Janeiro de 1891 no Porto – na sequência da proclamação da República brasileira em 1889 – vão constituir momentos decisivos para o crescimento do PRP nas grandes cidades. A esses dois acontecimentos adiciona-se a crise financeira e a necessidade de uma longa negociação com os credores externos (que culminaria no Convénio de 1902), bem como a política de João Franco e o excessivo envolvimento do Rei D. Carlos na gestão do dia-a-dia. O republicanismo do PRP congrega os descontentes. Há uma forte corrente legalista que pretende a chegada ao poder de forma pacífica, e de preferência por via eleitoral. O regicídio precipita os acontecimentos e só a fragilidade da instituição monárquica impede-a de aproveitar o excesso radical. Em Outubro de 1910, inicia-se uma outra história que a Grande Guerra perturbará decisivamente…

Guilherme d'Oliveira Martins

A VIDA DOS LIVROS


de 1 a 7 de Agosto de 2011

 

«O Livro do Desassossego» de Bernardo Soares / Fernando Pessoa (edição de Richard Zenith, Assírio e Alvim, 1998) é hoje uma das obras fundamentais da literatura portuguesa. Fruto de uma pesquisa aturada na arca do poeta (arca que pedimos seja devolvida ao domínio público) por uma equipa de investigadores excepcionais, o livro deve ser lido e ouvido atentamente. E o cineasta João Botelho bem o compreendeu, legando-nos uma peça que é digna do livro fundamental a que se refere.


 


 

A MINHA PÁTRIA É A LÍNGUA
«Não tenho sentimento nenhum político ou social» (disse Bernardo Soares). A passagem é bem conhecida. Ouvimos com devoção o «desassossego». «Tenho, porém, num sentido, um alto sentimento patriótico. Minha pátria é a língua portuguesa». Mas o autor acrescenta, quase ironicamente: «Nada me pesaria que invadissem ou tomassem Portugal, desde que não me incomodassem pessoalmente. Mas odeio com ódio verdadeiro, com o único ódio que sinto, não quem escreve mal português, não quem não sabe sintaxe, não quem escreve em ortografia simplificada, mas a página mal escrita, como pessoa própria, a sintaxe errada, como gente em quem se bata, o ortografia sem ípsilon, como o escarro directo que me enoja independentemente de quem o cuspisse. Sim, porque a ortografia também é gente. A palavra é completa, vista e ouvida». Que nos diz Pessoa afinal? Que a expressão da língua tem a ver com a sua humanidade. A comunicação existe para definir a vida das pessoas e da sociedade. Mais do que qualquer circunstância política ou social, a cultura afirma-se no largo prazo – e a nossa relação com a palavra e a língua é fundamental para definir quem somos. A língua tem valor significativo. «A palavra é completa, vista e ouvida». E Bernardo Soares joga com essa relação, inserindo-a na própria vida, Aí está o sinal da cultura que transforma a natureza. E o certo é que em cada palavra há sempre uma longa história: a origem etimológica, a evolução semântica, a ligação às coisas e loisas da vida comum, o paradoxo dos sentidos (que leva «nunc» a ser agora e a tornar-se nunca), a estética da representação gráfica (que levava Pessoa a recusar abismo sem ípsilon), a identificação do mundo e das pessoas e, no fundo, a capacidade de nos fazermos entender e comunicar.

O GOSTO DE DIZER E PALAVRAR
Com uma notável intuição, o poeta define a sua pátria com ironia e certeza, e refere-a ao respeito das palavras e das ideias, que com elas se constroem. Por isso, não acusa os ignorantes, mas sim o resultado da ignorância, exigindo o respeito pela expressão rigorosa da palavra e da cultura, como transmissão da humanidade na vivência do tempo. E ouvimo-lo: «Gosto de dizer. Direi melhor: gosto de palavrar. As palavras são para mim corpos tocáveis, seres visíveis, sensualidades incorporadas». E estremecia se diziam bem, se sabiam dizer! A expressão, a voz e a ênfase mudam tudo. E, ao ouvir, tremia «como um ramo ao vento num delírio passivo de coisa movida». Afinal, não basta a ligação formal entre língua e pátria. Há o corpo e a terra, a voz e o rosto. É preciso entender que o que está em causa é um dever, uma responsabilidade para com a palavra que recebemos e que legamos. É do «património imaterial» por excelência que falamos, que se confunde com a identificação das coisas e a expressão dos sentimentos – como o gosto do cozido ou da bôla, do queijo e da canja, como o cantar dos alcatruzes ou a toada das camponesas, como o modo de vindimar as uvas e de varejar as amêndoas e os figos. Que é o património senão essa comunhão entre pedras e gentes, entre costumes e ambientes, ontem e hoje, recebendo e recriando? Diria Pedro Homem de Melo: «A Pátria, realidade, / vive em nós, porque nós vivemos». E Almada Negreiros, de modo desabrido: «Ainda nenhum português realizou o verdadeiro valor da língua portuguesa (…) porque Portugal, a dormir desde Camões, ainda não sabe o verdadeiro significado das palavras».

O IMPERADOR DA LÍNGUA PORTUGUESA
É curioso que Bernardo Soares fale emocionadamente de Vieira («Este, que teve a fama e à glória tem, / Imperador da língua portuguesa, / Foi-nos um céu também»). Trata-se do símbolo da maturidade da língua, exemplo do respeito sagrado pela palavra. E que será hoje o misterioso Quinto Império? Decerto nada que tenha a ver com poderes temporais ou com divisões blindadas. Decerto nada que tenha soluções imediatas para os problemas da dívida soberana e para a falência das economias de casino. E temos de estar alerta relativamente aos sentimentalismos que amolecem a vontade. Razão e sentimento encontram-se. O respeito sagrado pela palavra obriga a cultivarmos a dignidade do ser e do querer, a capacidade de encontrarmos os caminhos de emancipação e os antídotos contra a descrença e a autoflagelação. Vieira, falando do «nosso» Santo António de Lisboa, dizia: «não tem logo quem se queixar Portugal. Se António não nascera para o Sol, tivera a sepultura onde teve nascimento; mas como Deus o criou para a luz do mundo, nascer em uma parte e sepultar-se na outra é obrigação do Sol» (1670). A relação com a sociedade global não pode deixar-nos. Como no diálogo entre Todo o Mundo e Ninguém, de Mestre Gil (no Auto da Lusitânia), precisamos de fincar os pés na terra com a humildade necessária para podermos realizar - «semeia o agricultor em pouca terra o que depois há-de dispor em muita»… O Império de Vieira e de Pessoa é hoje império do espírito, da língua e da palavra, partindo da ideia profética de comunhão universal dos povos cristãos para o desaparecimento universal da guerra e a instauração da paz universal – considerando a razão como limite do poder, temperando virtude teológica e prudência política. Utopia? Decerto que sim, mas se hoje falamos de respeito da palavra, falamos de factores democráticos, em que insiste Jaime Cortesão, no seu humanismo universalista.

NÃO ESTAMOS SÓS
A cultura portuguesa não está só. Liga-se às outras culturas da língua portuguesa e tem de ser entendida como uma cultura multímoda, cujo caminho tem de coordenar e articular os objectivos heterogéneos do mundo da fala portuguesa. Lembrando o dilema fixação e transporte, temos de entender que o nosso défice fundamental é ainda de aprendizagem e de capacidade inovadora. A língua e a cultura têm valor que importa aproveitar. A internacionalização da língua portuguesa é um ponto de especial importância. Temos de afirmar que a Comunidade de Países de Língua Portuguesa (CPLP) ainda é muito modesta no seu programa de valorização da língua como elemento fundamental de um impulso moderno de inovação e de criatividade. Há um largo espaço para o desenvolvimento da cooperação internacional relativamente às culturas de língua portuguesa, nos domínios académico, científico, formativo e universitário, que tem de ser aproveitado – não apenas na lusofonia, mas atraindo novas atenções nos principais centros académicos e de cultura. E impõe-se ainda incentivar a mobilidade de estudantes e professores de modo a que haja um maior diálogo entre culturas, num contexto multilinguístico, e um melhor conhecimento das culturas da língua portuguesa. Como afirmava Diogo Vasconcelos, que inesperadamente nos deixou, quando muito dele se esperaria: «a Europa precisa de mobilizar a criatividade colectiva para melhorar a sua capacidade de inovação… (…) É nos momentos de crise que podemos testar e criar novas soluções. São tempos para sermos frugais nos custos, mas exuberantes na criação de novos futuros possíveis».

 

Guilherme d'Oliveira Martins