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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

ANTÓNIO TABUCCHI

  
por Vasco



Por Guilherme d’Oliveira Martins

 

Conheci António Tabucchi no final da década de oitenta e encontrei-o sempre como um apaixonado da língua e da cultura portuguesas, nunca relativamente a uma visão idílica ou a qualquer ilusão, mas sempre a partir de uma análise de aguda crítica. O seu espírito era inquieto, inconformista, sempre crítico, e por isso era uma companhia sempre positiva, de quem desejava olhar o horizonte, procurando perscrutar o inesperado, nunca disposto a aceitar o vulgar e o lugar-comum.

 

Não esqueço um final da manhã no Aeroporto de Lisboa quando fomos esperar Umberto Eco, vindo para proferir uma das conferências do «Balanço do Século», organizada por Fernando Gil, sob a égide de Presidente Mário Soares. Fomos ambos testemunhas da irritação do escritor de «O Nome da Rosa» quando os jornalistas lhe perguntaram banalidades ou demonstraram total ignorância sobre a sua obra. Tabucchi concordou, serenamente, apaziguando a reação iracunda do romancista. Para quem o conhecia, o certo é que no seu carácter, oscilava entre a impecável capacidade de desempenhar funções diplomáticas e de exercer o seu direito à indignação em momentos em que não se eximia ao direito inalienável de não calar o seu sentido crítico.

 

No Instituto Italiano em Lisboa, foi dos grandes artífices do reforço da relação cultural entre os nossos dois países. Por momentos essa casa, de tantas tradições, tornou-se um lugar ainda mais aprazível e próximo. Afinal, António Tabucchi era sempre, e a um tempo, italiano e português, um elo natural de uma latinidade viva. E era com um especial gosto (ele não nos deixaria falar de orgulho) que o líamos na imprensa italiana e na comunicação europeia – a exprimir a sua opinião crítica, sem pejo, sem desejar proteger-se em qualquer limbo ou em qualquer torre de marfim.

 

Foi, de facto, um europeu ativo e empenhado, preocupado com o afastamento dos cidadãos relativamente às causas comuns. Dizer que era um homem de liberdade até às últimas consequências é uma elementar verdade. Mas só pode perceber-se se virmos que nunca baixou os braços, afirmando o que entendia ser o combate da justiça e da verdade. Em «Afirma Pereira» sentimos, num tema português que os italianos conheceram bem, a tensão entre um país acomodado e complacente quanto à autoridade e à segurança. Mastroianni personifica um homem envelhecido e quase indiferente. Mas há um momento em que nasce a necessidade da denúncia e da afirmação. Trata-se de tentar compreender (e recusar) a ilusão de que são venturosos os que não têm de escolher, uma vez que sem escolha não há possibilidade de ser e de aspirar à emancipação.

Tabucchi descobriu Portugal, um dia na Gare de Lyon, em Paris, através de uma tradução de Pierre Hourcade, de Álvaro de Campos. Depois, tudo o aproximou de Portugal: a literatura, a família, as cidades, as letras e as artes. A sua aldeia foi a Rua do Monte Olivete, num lugar de tantas recordações literárias – Ruben A., Alexandre O’Neill… E o certo é que a sua obra é um acervo fantástico de um europeu autêntico, cosmopolita, sedento de encontros e diálogos. É a ilustração magnífica de uma cultura portuguesa aberta, disponível, desassossegada, plural. E é esse pluralismo que faz de António Tabucchi um discípulo de Caeiro e de Campos, e um seguidor incansável dos passos de Ricardo Reis, de Bernardo Soares e de Fernando Pessoa. Mas, é um discípulo verdadeiro, não um mero seguidor. Ele soube sempre reler e reinterpretar, tendo uma vida própria extraordinária. Tempo virá em que a cultura portuguesa aberta e plural se referirá a um grande amigo, a um escritor de primeiríssima água – que praticou um futuro de vitalidade e de surpresa, de incerteza e de criatividade. Há dias, ouvi na Antena 2 um diálogo que me trouxe alegria e saudade. Graça Morais e António falavam das suas artes e eu tive o impulso natural de eternizar esse encontro, como sinal desta cultura que tanto amamos, e com a qual somos, e bem, tão exigentes!  

O Centro Nacional de Cultura homenageia uma das grandes referências da cultura europeia contemporânea.

 

 

 

 

António Tabucchi, o escritor italiano que escolheu Portugal por afecto.
António Tabucchi uma razão para o tempo não envelhecer.


Por Teresa Vieira

 

 

A vida não está por ordem alfabética como há quem julgue. Surge…ora aqui, ora ali, como muito bem entende, são migalhas, o problema depois é juntá-las, é esse montinho de areia, e esse montinho de areia, e este grão que sustém? Por vezes, aquele que está mesmo no cimo e parece sustentado por todo o montinho, é precisamente esse que mantém unidos todos os outros, porque esse montinho não obedece às leis da física, retira o grão que aparentemente não sustentava nada e esboroa-se tudo, espalma-se e resta-te apenas traçar uns rabiscos com o dedo, contradanças, caminhos que não levam a lado nenhum, e continuas à nora, insistes no vaivém, que é feito daquele abençoado grão que mantinha tudo ligado…até que um dia o dedo resolve parar, farto de tanta garatuja, deixaste na areia um traçado estranho, um desenho sem jeito nem lógica, e começas a desconfiar que o sentido de tudo aquilo eram as garatujas.

António Tabucchi in “Tristano Morre”

 

Os poemas de Pessoa, o contacto com O’Neill e Cardoso Pires, a tradução de Drummond, o contributo para as línguas e cultura europeias e este silêncio que se deve fazer também pela escrita, e encurtá-la na nomeação deste sempre galardoado Escritor, critico e tradutor de peito cheio.

Tabucchi Nascido em Vecchiano como Poeta na margem do Tejo.

 

25.03.12

Sec XXI

A VIDA DOS LIVROS


de 26
de Março a 1 de Abril de 2012

 

A primeira «Gramática de Linguagem Portuguesa» é da autoria de Fernão de Oliveira (1507-1581) e data de 1536. Estamos perante uma tentativa original e pioneira de propor uma norma para a língua portuguesa, não seguindo o modelo das gramáticas do seu tempo. Procura definir a linguagem como uma "figura de entendimento", aludindo ao modo de falar dos portugueses. A gramática é constituída por 50 capítulos e trata de formas gramaticais, da fonética, da lexicologia, etimologia e sintaxe. Quatro anos depois, João de Barros (1496-1570), o grande cronista, publicaria a sua «Gramática da Língua Portuguesa» (1540), juntamente com o «Diálogo em louvor da nossa linguagem». As duas obras revelam uma surpreendente complementaridade, destacando-se a minúcia e o rigor de Fernão de Oliveira relativamente ao uso da linguagem e a segurança de João de Barros no tocante à análise teórica da língua, da sua formação e desenvolvimento.

 

 

O GÉNIO DA LÍNGUA
«O génio da língua é a essência espiritual emanada dos seus vocábulos intraduzíveis que se pode sintetizar numa expressão mais ou menos definida» - Teixeira de Pascoaes disse-o, pensando na saudade, por certo, no desejo sensual e alegre e na lembrança espiritual e dolorida, mas ao lermo-lo, temos de ir mais além. Quando fala de palavras intraduzíveis o poeta refere o que faz parte do que é próprio e genuíno de cada língua, e é por isso mesmo que a língua tem um valor próprio, da maior importância, no património imaterial da cultura. Ao depararmos com a magia das palavras na obra de um grande poeta, verificamos que os sentimentos, sendo intraduzíveis, vão ao encontro de palavras únicas para se exprimirem e se fazerem entender. Por isso Sophia dizia: «Gosto de ouvir o português do Brasil / Onde as palavras recuperam sua substância total / Concretas como frutos nítidas como pássaros / Gosto de ouvir a palavra com suas sílabas todas / Sem perder um quinto de vogal / Quando Helena Lanari dizia “Coqueiro” / O coqueiro ficava muito mais vegetal». Aqui está a magia do que se não se traduz, mas sente-se.

 

A TERCEIRA LÍNGUA EUROPEIA
O português é a terceira língua europeia mais falada no mundo, graças à difusão operada pelos portugueses das caravelas e à unidade linguística do Brasil. É uma língua de várias culturas, que, como língua viva, comporta muitas diferenças, mundo afora, na pronúncia, na sintaxe e no vocabulário. Apesar da dispersão significativa, tem conseguido manter uma coesão apreciável, que permite a ligação de uma identidade complexa, baseada no diálogo e na compreensão. E saliente-se que o fenómeno dos crioulos não constitui uma exceção, mas um modo de enriquecimento, uma vez que prolongam as línguas nacionais dos países de língua oficial portuguesa. Quando se fala de lusofonia, importa, antes de mais, referir que, se a língua portuguesa é de origem europeia, a verdade é que ganhou uma riqueza universal. A lusofonia há muito que deixou de ser eurocêntrica, para se tornar multipolar, enquanto partilha fecunda de várias culturas e de diversas influências. A língua portuguesa é, assim, partilhada por diferentes culturas, que se encontram e se completam na sua profunda diversidade. Leia-se, por exemplo, Mia Couto e o seu «queixa-andar» e veja-se como, apesar das muitas diferenças, há pontos fortes de união. Encontre-se Pepetela, Germano de Almeida, Craveirinha, José Eduardo Agualusa, António Candido ou Rubem Fonseca. Aí está tudo!

 

A COESÃO DA LÍNGUA
A coesão essencial da língua portuguesa não pode, pois, fazer esquecer a diversidade interna e externa. Olhando a faixa oeste da Península Ibérica, onde nasceu o galaico-português, encontramos três grupos de dialetos ou falares diferenciados, mas muito próximos – galego, português setentrional e português centro-meridional, segundo a formulação de Lindley Cintra. Estamos a falar da distinção com o falar das classes cultas do eixo Coimbra-Lisboa, que define a norma dominante da língua. E aqui importa referir que a Universidade (desde o século XIII) marcou decisivamente essa norma. Afinal, D. Dinis, ao criar o Reino, ligou as decisões da língua, do Estudo Geral e da fronteira. A diferenciação dos três grupos referidos faz-se pelo sistema das sibilantes. Nos dialetos galegos não há sibilantes sonoras (z) e não há a fricativa palatal sonora (o nosso j), mas a surda (x). Nos dialetos portugueses setentrionais há as sibilantes ápico-alveolares idênticas às do castelhano e ao padrão (surdas – em seis; sonoras – em rosa). Nos falares meridionais apenas aparecem as sibilantes predorso-dentais, que caracterizam a língua padrão – surdas (como em cinco ou caça) e sonoras (como em rosa e fazer). Além das características técnicas, há as especificidades regionais: os bês e os vês – Garrett dizia «nós os do Porto podemos trocar os bês pelos vês, mas nunca a liberdade pela tirania». Galegos e setentrionais usam dizer binho e abó, enquanto os meridionais pronunciam a consoante vê como lábio-dental. Já o ch é dito no padrão como fricativa (chave) e como africada palatal nos dialetos galegos e nortenhos (tchave). Quanto aos ditongos, à pronúncia meridional (ôro, ferrêro) contrapõe-se a diferenciação galega e setentrional (ouro, ferreiro), com uma particularidade no falar de Lisboa (que diz ferr?iro). Lembrem-se os ditongos reforçados na região do Porto e Entre-Douro-e-Minho (pworto); a alteração dos timbres das vogais na Beira Baixa, Alto Alentejo e Barlavento algarvio (müla, pöca) e a queda da última vogal átona (tüd, por tudo). Por outro lado, há diferenças vocabulares assinaláveis: ervilhas no norte e centro, griséus no Algarve; aloquete, a norte de Coimbra, cadeado, a sul; mais palavras de origem árabe a sul; palavras arcaicas a norte – como mugir em vez de ordenhar, espiga por maçaroca, anho por cordeiro. São fatores históricos que pesam, mas do que razões linguísticas.

 

LÍNGUA UNIVERSAL
Nas ilhas atlânticas, há um prolongamento dos dialetos centro-meridionais. A colonização do século XV partiu dessas regiões. Há exceções em S. Miguel e na Madeira. No primeiro caso acentuam-se as tendências na alteração dos timbres das vogais e na queda da última vogal átona, e ao contrário da língua padrão o ditongo ej torna-se e. Na Madeira, o u e o i tónicos tornam-se ditongados, e a consoante l precedida de um i palataliza-se (:v?yla, por vila). E se nos atemos apenas ao continente europeu, poderíamos distinguir no Brasil duas zonas linguísticas, a Norte e a Sul, separadas por uma fronteira que se estende da foz do rio Mucuri entre os Estados do Espírito Santo e da Bahia até à cidade de Mato Grosso.
Em África, na Ásia e na Oceânia, além do português como língua oficial (com muitas especificidades vocabulares), as variedades crioulas resultam do contacto do sistema da língua portuguesa com os sistemas indígenas. Porventura, podem derivar todos os crioulos dos papiares, as línguas francas do português do século XVI, que serviram de modo de comunicação entre as populações locais e os navegadores, mercadores e missionários, nas costas de África, Arábia, Pérsia, Índia, Malásia, Indonésia, China e Japão. Os crioulos são línguas derivadas do português. Baltazar Lopes da Silva, para o crioulo de Cabo Verde, foi por certo o mais fecundo escritor e estudioso do tema. E a diversidade é fantástica, os crioulos: de Cabo Verde: de Barlavento (Santo Antão, São Vicente, São Nicolau, Sal e Boavista), de Sotavento (Santiago, Maio, Fogo e Brava); do Golfo da Guiné (S. Tomé, Príncipe e Ano Bom, na Guiné Equatorial); os continentais (Guiné-Bissau e Casamansa); da Ásia (papiar cristan de Malaca, patuá di Macau, Sri-Lanka, Chaul, Korlai, Tellicherry, Cananor e Cochim); de Java (Tugu). Perante esta panóplia de extraordinária riqueza, a que temos de somar os vocábulos portugueses incorporados em diversas línguas nacionais (desde o bahasa indonésio ao japonês), percebemos que há potencialidades por aproveitar, numa economia para as pessoas.

 

Guilherme d’Oliveira Martins

Luís Sá: uma vigília das ideias

 

Tenho escrito sobre Luís Sá. No Jornal Euro Notícias onde, o Professor Adelino Maltez me deu o gosto de partilhar comigo a sua página de opinião; no Jornal da Universidade onde eu e o Luís leccionávamos a mesma cadeira e onde ainda lecciono, e noutros locais para onde eu escreva e agora na página do Centro Nacional de Cultura.

 

E faço-o como contributo, para que o não esqueça um mundo em que ele acreditou, e, sobretudo, para que não creia as gentes de cotações de almas em bolsa de valores que lhe podem impor silêncio.

 

O Prof. Doutor Luís Sá foi, também em nome de princípios irredutíveis, um excelente e generoso docente, dotado de um poder de captação da atenção dos alunos invulgar.

 

A sua morte súbita surpreendeu. Chocou-nos de jeito indizível. Na véspera tínhamos estado a escalonar matéria da Faculdade e a dividi-la por turmas. Na véspera brindámos ao almoço por todos os movimentos que dentro de cada ser implicam o revolucionar de um caminho honesto e são. Na véspera, sacrificámos no diálogo muitas das utopias comunitárias, e surgiu-nos a filigrana da poesia, afinal a única que explica sem rasura a experiência estética.

 

O aforismo de René Char, comentado por Hannah Arendt que bem refere o quanto a nossa herança não é precedida de nenhum testamento e que, portanto, não deveria fixar-se o passado nem pretender determinar-se um futuro, para que, enfim, sintamos nas mãos o quanto o presente urge, esta, uma realidade muito presente no Luís.

 

O Luís chegou a dizer à minha madrinha Drª Leonoreta Leitão (professora e escritora) e à entrada para uma festa do Avante - local que ela nunca deixava por pé alheio - o quanto me intuía como uma democracia selvagem, sem necessidade de busca ou fundamento, pois que legitima.

 

Assim esta faceta do Prof. Doutor Luís Sá também se revelava na atenção ao particular, quando, a um colectivo devotava uma especial vigília das suas ideias.

Claude Lefort foi também um dos nossos eleitos para tema do nosso último almoço no Quebra Bilhas.

 

Ainda hoje permanece na minha bibliografia obrigatória para os alunos da minha Unidade Curricular A Crise das Fronteiras, tese de doutoramento do Luís e afinal amplo estudo por onde passa o conceito de Laços de Pertença.

 

Continuo a entender que uma paisagem interior humanizada é muito mais rica do que aquela paisagem em estado mais paradigmático. E o Luís correndo os riscos inerentes, sempre foi pela primeira opção.

 

Preocupemo-nos pois com o estuário das ideias trazendo à memória quem deixou caminho.

 

M. Teresa Bracinha Vieira

16.03.12

Sec. XXI

DIA DA POESIA 2012


Camões dirige-se aos seus contemporâneos

 

Podereis roubar-me tudo:
as ideias, as palavras, as imagens,
e também as metáforas, os temas, os motivos,
os símbolos, e a primazia
nas dores sofridas de uma língua nova,
no entendimento de outros, na coragem
de combater, julgar, de penetrar
em recessos de amor para que sois castrados.
E podereis depois não me citar,
suprimir-me, ignorar-me, aclamar até
outros ladrões mais felizes.
Não importa nada: que o castigo
será terrível. Não só quando
vossos netos não souberem já quem sois
terão de me saber melhor ainda
do que fingis que não sabeis,
como tudo, tudo o que laboriosamente pilhais,
reverterá para o meu nome. E mesmo será meu,
tido por meu, contado como meu,
até mesmo aquele pouco e miserável
que, só por vós, sem roubo, haveríeis feito.
Nada tereis, mas nada: nem os ossos,
Que um vosso esqueleto há-de ser buscado,
Para passar por meu. E para os outros ladrões,
Iguais a vós, de joelhos, porem flores no túmulo.

Jorge de Sena

A VIDA DOS LIVROS


de 19 a 25 de Março de 2012


Comemora-se este ano o quinto centenário do início da publicação das Ordenações Manuelinas (1512), constituídas por cinco livros como as Ordenações Afonsinas, que visaram ultrapassar «a confusão e repugnância de algumas ordenações por Reis nossos antecessores feitas, assi das que estavam incorporadas como das extravagantes, donde recresciam aos julgadores muitas dúvidas e debates, e às partes seguia grande perda». Houve, assim, que «reformar estas ordenações e fazer nova compilação, tirando todo o sobejo e superfluo, e adendo no minguado, suprimindo os defeitos, concordando as contrariedades, declarando o escuro e difícil de maneira que assim dos letrados como de todos se possa bem e perfeitamente entender».

 

 

UM IMPORTANTE INSTRUMENTO JURÍDICO
Sem entrarmos no debate atualíssimo sobre as edições iniciais das Ordenações (face à recente descoberta de um novo «sistema» anterior a 1521), a verdade é que a promulgação de importantes documentos em matéria fazendária – o Regimento dos Contadores das Comarcas (1514) e sobretudo o Regimento dos Vedores da Fazenda (1516) - obrigou à reforma definitiva das Ordenações de 1521. Lembre-se que o reinado de D. Manuel se caracteriza por uma tendência de uniformização institucional, que completa a centralização operada por D. João II. As novas Ordenações não são, deste modo, uma nova compilação, na esteira da anterior. Estamos perante um novo método, mais moderno, em que, embora partindo-se de legislação pré-existente, se faz uma nova apresentação como se tratasse de legislação nova, em nome da clareza e de uma centralização racionalizadora. Nesta linha, por exemplo, quanto à matéria de tributação, há uma profunda revisão do sistema de forais, no sentido da redução das providências que regiam a administração e a autonomia de cada município, prevalecendo uma relação atualizada das prestações devidas à coroa ou aos seus donatários. Os forais reformados (1497-1520) apresentam, assim, significativa diversidade – apesar de preservarem as garantias locais relativamente à limitação de agravar receitas afetas aos donatários, sob pena de perda de jurisdição. O importante Regimento dos Vedores da Fazenda (17 de Outubro de 1516) dotou a coroa de novos e importantes instrumentos de controlo. Estamos perante um documento paradigmático da intenção reformadora de D. Manuel. Por isso mesmo, já não se encontra no «sistema» de 1521, antes tendo prevalecido a ideia de que deveria haver umas Ordenações da Fazenda. Por um lado, o Regimento define claramente as atribuições dos oficiais que cumpriam as tarefas de recebimento e pagamento na esfera local, ou seja, os almoxarifes e os recebedores e, por outro, articula estas funções com as daqueles que as enquadravam nas circunscrições intermédias – os contadores das comarcas. Em nome da clarificação racional, a antiga Vedoria da Fazenda viu desdobradas as suas funções em três (Reino, África e Contos da Índia). Não há um vedor-mor, mas sim três vedorias, que constituem tribunais distintos. A cada vedoria correspondiam: a administração da Fazenda (recolha de rendas, inspeção das contas dos almoxarifes e contadores, administração particular dos bens do monarca e preparação do despacho régio para os assuntos de «graça»), a jurisdição voluntária (arrendamentos e aforamentos) e a jurisdição contenciosa (apreciação em apelação ou agravo, das sentenças dos almoxarifes, provedores e erros de ofício em que fossem parte os rendeiros da coroa). Em articulação com as vedorias, a «Casa dos Contos do Reino» estava encarregada da contabilidade e assentamento das contas e tombos, sendo o núcleo central de controlo das receitas e despesas e também do arquivo da administração financeira. O Contador-mor era coadjuvado por três contadores, que procediam à fiscalização contabilística das 13 contadorias espalhadas pelo reino, passando, a partir de 1514 e de 1516, a um número mais alargado de oficiais, procedendo-se a uma fiscalização mais apertada sobre a administração local, relativamente à qual havia dificuldades na respetiva prestação de contas. Com efeito, havia muitas queixas dos povos sobre esta matéria, o que obrigou o Rei a dar especial atenção ao regime dos Vedores da Fazenda, no sentido de um maior controlo central, ainda que sem os resultados, à primeira vista esperados.

 

AS MUDANÇAS NA CASA DOS CONTOS
Em 1560 verificar-se-ia a fusão da Casa dos Contos do Reino com a Casa dos Contos de Lisboa, encarregada esta até então da fiscalização das contas dos oficiais de recebimento que operavam na capital e na sua comarca. Deste modo, a centralização correspondeu à necessidade de contrariar a fragmentação da tesouraria e dos recursos disponíveis. O regime das vedorias funcionaria até à reforma da Fazenda portuguesa de 1591, já na vigência da união pessoal, com a criação do Conselho da Fazenda, que concentra a coordenação e superintendência dos assuntos da fazenda, e leva à extinção dos três tribunais acoplados às vedorias, passando a haver só um, e quatro repartições administrativas, que respeitavam às alfândegas, aos arsenais, à Casa da Índia e à Casa dos Contos, superintendendo nos almoxarifados e comarcas. Em 1604, seria criada a Junta dos Contos com a missão de proceder às execuções fiscais das dívidas à Fazenda real. Apesar de haver uma intenção claramente unificadora, o regime de pluralidade orçamental, característico da administração financeira, desde meados do século XIV, não foi, no essencial posto em causa – as receitas fiscais da monarquia eram arrecadadas e despendidas nas diferentes repartições territoriais (almoxarifados) sob a coordenação dos vedores da fazenda, sem uma unificação da gestão das receitas. No entanto, os recebimentos vinculados à Fazenda real e arrecadados na Ásia em nada revertiam para os cofres centrais do Reino, e os capitais que saíam dos cofres do reino eram para aquisição de cargas do retorno da Carreira da Índia – havendo, pois, dissociação entre os fluxos financeiros do Estado da Índia e da exploração da rota do Cabo. Considerando os direitos alfandegários cobrados em Goa, Malaca, Ormuz e Diu estamos perante cerca de 60 por cento do total dos encaixes da Fazenda real no final do século XVI. O contributo financeiro do Império assenta, pois, na circulação de bens dos vários espaços para o reino que canalizam réditos para as alfândegas e em direitos de propriedade (cerca de 25% do total em fins do século XVI), explorados diretamente pela coroa ou através de contratos de arrendamento (ouro da Mina, pimenta, escravos, pau-brasil).

 

UM ESTADO FISCAL QUE TARDA…
Pelo que fica dito, o Império prolongou no tempo a existência de um «Estado patrimonial». De facto, as rendas ultramarinas adiaram a transformação num «Estado fiscal». Por exemplo, a incorporação na Coroa da administração perpétua dos mestrados das Ordens militares de Cristo, de Avis e de Santiago da Espada (1551) reforçou essa mesma tendência, mercê das comendas das ordens, dos direitos foraleiros e dos dízimos eclesiásticos. De qualquer modo, sente-se a tendência para a criação de um Estado fiscal, centralizado, com racionalização da tesouraria (mas não unidade). O modelo descentralizado é comum aos dispositivos de governo das finanças públicas nas monarquias europeias e foi transposto para diferentes espaços do império, sempre que a Coroa se assumiu como entidade fiscal – nos arquipélagos atlânticos, na América do Sul e no Estado da Índia. Ao longo do século XVI encontramos, porém, uma tensão entre a necessidade de haver um controlo centralizado dos recursos em circulação por parte do Estado, até pelos riscos corridos por este, e a multiplicação de polos de ação, envolvendo a capacidade dos mercadores de gerarem riqueza. No entanto, a multiplicação de polos de ação influentes e o efeito dos «fumos da Índia», mais do que uma imediata insustentabilidade, vai gerar a incapacidade prática de gerir com eficiência e justiça, e de chegar a toda a parte num império de tão grande dimensão.

Guilherme d’Oliveira Martins

António Vieira : a elegante precisão do Saber

 

 

 

Falar de António Vieira é falar de um mundo cujo universo interior atravessa múltiplos saberes.

 

Doutorado em Medicina é António Bracinha Vieira considerado muito justamente como um dos grandes Professores universitários, muitíssimo forte também no mundo da Antropologia, sendo a Etologia igualmente uma das suas áreas académicas preferidas a par da própria Filosofia da Medicina.

 

Escritor de primeiríssima água, inseparável dos núcleos das suas personagens, dos seus ensaios e até da sua poesia, é António Vieira um desinteressado do exercício de domínios da realidade que, nele próprio, goza de uma independência impossível de negar sobretudo por a entender tão lucidamente.

 

Os seus livros Doutor Fausto, Improvisações sobre a Ideia de Deus ou Dissonâncias são naves monumentais da essência do conhecimento deste Escritor singular de cujo músculo somos todos devedores.

 

António Vieira constitui para mim o privilégio de ter conhecido uma superestrutura de verdadeira solidariedade e compreensão face ao sofrimento, aquando do falecimento da minha mãe, realidade que nunca esquecerei.

 

De jeito fascinante sempre António Vieira me incentivou à minha escrita, ao meu modo de existir nas palavras.

 

António Vieira: uma amizade surpreendente, um ensino, uma fundação também na arte de comunicar o silêncio.

 

Há muito que um punhado de palavras escritas se desejavam em mim transportadoras da gratidão que agora deixo aqui registo, e grandemente celebro.

 

M. Teresa B. Vieira

12.03.12

Sec. XXI

MÁRIO MELO ROCHA – UM AMIGO.


Por Guilherme d’Oliveira Martins

 

Conheci-o em meados dos anos oitenta, entusiasta, ativíssimo, ainda não tinha feito trinta anos. Um amigo comum – Miguel Veiga – permitiu que os laços de amizade se reforçassem. O seu pai, o Desembargador Dr. Gelásio Rocha, com a sua simpatia, também colaborou nessa empatia natural. Com João Salgueiro, Emílio Rui Vilar, Artur Santos Silva, tendo eu assumido por essa altura a presidência da SEDES, convidei-o para lançar e dirigir o núcleo do Porto da Associação. Os resultados não se fizeram esperar. A SEDES do Porto, com antigas tradições (de Mário Pinto e Joaquim Macedo a Francisco Sá Carneiro), tornou-se um polo estuante de energia. Tudo graças ao Mário Melo Rocha, com quem falava diariamente, e que me ia apresentando iniciativas de reflexão, debate, estudo do maior interesse, mobilizando o núcleo. Os temas europeus entusiasmavam-no especialmente – num momento em que, sob a presidência da Comissão Europeia de Jacques Delors, com a adesão portuguesa bem fresca, perante a queda do muro de Berlim, se operavam os preparativos de Maastricht e dos alargamentos, sendo preciso pensar profundamente o que de fundamental estava em causa. Lançámos os Encontros Internacionais de Sintra, de que foi um dos grandes animadores, que trouxeram – com uma mensagem inicial de Vaclav Havel - até nós a fina flor do debate europeu: Adam Micnnik, Jacek Wosniakowski, Olivier Mongin, o saudoso José Vidal Beneyto, Timothy Garton Ash, Paolo Flores d’Arcais. Mas nunca esquecerei as memoráveis sessões sobre o futuro de Portugal e da Europa que organizou na delegação da Cultura, na Rua António Cardoso. Era pretexto para conversarmos longamente, sob o sol primaveril da Foz, sobre tudo: a política, a economia, a universidade, o ambiente, o direito. Nestas andanças, conhecemos, graças à persistência dele, a personalidade extraordinária de D. Gonzalo Torrente Ballester, que nos veio falar da sua vida, do seu tempo e da sua obra, numa noite gloriosa. São estas lembranças, e uma funda saudade já, que me assaltam, quando ainda mal acredito que o Mário nos tenha deixado inesperadamente. Até sempre meu querido amigo! Voltaremos um dia à Foz para falar de tudo! Combinado! D. Gonzalo estará connosco! 

MOEBIUS

 

 

Jean Giraud é uma das referências fundamentais da Banda Desenhada contemporânea. A sua primeira história publicada foi «Frank et Jeremie», para a revista «Far West» (1956). Na década de cinquenta desenhou para Sitting Bull, Fripounet et Marisette, Âmes Vaillantes e Coeurs Vaillants. Depois de ter sido alistado para a Argélia colaborou com Jijé na criação de Jerry Spring. Usou o seu próprio nome para desenhar as histórias de Blueberry, que rapidamente se tornaram referências de culto na revista «Pilote», a partir de 1963.

 

No entanto, Giraud torna-se um dos mais fecundos autores de Banda Desenhada, ao seguir duas vias, a tradicional sob o seu próprio nome e a de autor profundamente inovador, sob o pseudónimo de Moebius, cuja assinatura aparece pela primeira vez na revista «Hara Kiri» em 1963 e 1964. Essa criação será interrompida durante dez anos, regressando com grande intensidade quase uma década depois. Moebius dedica-se à fantasia, ao experimentalismo e à ficção científica, domínio em que se tornará um mestre e iniciador de um género da maior importância na BD contemporânea. Em 1974 forma com J. P. Dionnet, P. Druillet e B. Farkas os Humanoïdes Associés, que publicará a revista «Métal Hurlant», de grande influências nos meios da ficção e da ilustração. Aí temos as histórias de Arzach e do Major Grubert.

 

Giraud e Moebius tornaram-se, assim, dois inseparáveis autores, marcados pelo talento e pela imaginação. Sendo a mesma pessoa, representam as duas faces da modernidade da Banda Desenhada centrada na aventura e na ficção, como sinais inequívocos do regresso das narrativas ao campo das artes.

 

 

Guilherme d'Oliveira Martins

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