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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

A iluminação é um estado e não uma experiência.

 

António Alçada Baptista vivia num estado de não separação com uma certa força vital. O gosto de o ler e reler é uma realidade que nos mobiliza pelas construções intelectuais de todas as peregrinações onde nos levou e leva, pela iluminação que nos deixou em consciência de que só se deixa a grandeza.

 

A tribo que o António me referia sempre, não era mais do que uma realidade à nossa capacidade para construirmos afectos como um bastião de escolha, para o qual todos podemos ser vida e não passagem. Na escrita, também a tribo que abria janelas, desenvolvia a possibilidade de alguns viverem de jeito diferente, no jeito que faz caminho mais próximo das verdades sem que para elas se tenha a tentação de apontar.

 

Nos livros de António Alçada reside também uma estrutura de semeio muito fundo à liberdade de cada um. Um depositar de inquietação atenta ao não enganar o horário do labor que não é desvio ou traição à maneira de viver, antes vida próxima que nos impede as saudades no peito se deixámos fugir mundo e meio de nele sermos.

 

Existem inúmeras presenças enzimáticas ao longo das palavras escritas por Alçada, sobretudo, as que não clamam nem por heróis nem por pantufas, outrossim as que acordam as riquezas adormecidas ou sugerem que se exponha o testemunho individual que polarize e faça viver a criação.

 

Aceitei com honra o desafio proposto por Guilherme d’Oliveira Martins de fazer esta página no viver da literatura e na água da minha total liberdade de escolha. Na verdade, partilho com o Guilherme uma amizade de longa data, uma partilha de valores e o orgulho de ter sido sua aluna. Assim, devo dizer que esta minha sugestão, de que se percorram os pensares escritos do António  assenta também no ideal de afecto e admiração que uniu Guilherme e Alçada Baptista. Por nós os três passaram e passam os nós e os laços: diferentes existências de liturgia que embranquecem cabelos, mas que unem razões que nos ligam aos outros.

 

Teresa Vieira

A VIDA DOS LIVROS

de 28 de Maio a 3 de Junho de 2012

 

Na semana em que se realiza em Lisboa o Congresso Europeu do Património, organizado pela Europa Nostra e pelo CNC, recordamos três obras clássicas dedicadas ao Património, à memória e à respetiva preservação. Falamos de «A Ilustre Casa de Ramires» de Eça de Queiroz (Chardron, 1900), de «Brideshead Revisited – Sacred & Prophan memories of Captain Charles Ryder» («Regresso a Brideshead») de Evelyn Waugh (Chapman and Hall, 1945) e de «Au Plaisir de Dieu» de Jean d’Ormesson (Gallimard, 1974).

 


Howard Castle (UK)

 

«O FIDALGO DA TORRE»
As três obras são profundamente diversas, até pelas épocas diferentes em que foram concebidas e escritas, de qualquer modo apresentam características comuns que merecem realce e que têm a ver com o facto de haver uma saga familiar que é inserida em vários períodos históricos, nos quais se pretende analisar as especificidades culturais e a ligação à memória e a um património ancestral. Gonçalo Mendes Ramires é de uma linhagem antiga, que permite seguir a vida histórica de Portugal. Ocupa-se em escrever uma novela histórica, «A Torre de D. Ramires», ele, «o fidalgo da Torre», instalado na pequena aldeia de Santa Ireneia, vizinha da Vila Clara, no termo de Oliveira. Dir-se-ia que há um apelo do tempo, num momento em que o tédio parece prevalecer. A não ação parece ser a paradoxal característica desta personagem. A recordação de antanho procura compensar a ausência de motivação contemporânea. É o tradicional problema português, em que o mito histórico invade a circunstância atual, com resultado incerto e algo perverso… Será cada qual digno de seu passado? E Gonçalo parte para África, sucedâneo do império antigo e regressa. É então que o romancista o retrata, como se ele fosse o símbolo de Portugal. «Os fogachos e entusiasmos, que acabam logo em fumo, e juntamente muita persistência, muito aferro quando se fila à sua ideia… A generosidade, o desleixo, a constante trapalhada nos negócios e sentimentos de muita honra, uns escrúpulos quase pueris, não é verdade?... A imaginação que o leva sempre a exagerar até à mentira, e ao mesmo tempo um espírito prático, sempre atento à realidade útil. A viveza, a facilidade em compreender, em apanhar… A esperança constante nalgum milagre, no velho milagre de Ourique, que sanará todas as dificuldades… a vaidade, o gosto de arrebicar, de luzir, e uma simplicidade tão grande, que dá na rua o braço a um mendigo… Um fundo de melancolia, apesar de tão palrador, tão sociável. A desconfiança terrível de si mesmo, que o acobarda, o encolhe, até que um dia se decide, e aparece um herói, que tudo arrasa… Até aquela antiguidade de raça, aqui pegada à sua velha Torre, há mil anos… Até aquele arranque para África». Gonçalo surge neste romance como um paradigma simbolista, finissecular, ambígua representação de uma decadência que aspira genuinamente a superar a pura descrença. Nesse sentido é dos romances mais complexos de Eça, a requerer uma leitura incompatível com a simplificação nacionalista, que muitas vezes se ouve. Por isso, salientamos o carácter pioneiro da consideração da importância do património cultural, numa aceção dinâmica e não conservacionista.

 

A PRESENÇA FORTE DE UMA LEMBRANÇA
«Regresso a Brideshead» é um retrato de Inglaterra na primeira metade do século XX. A partir do romance de uma casa e da história de uma família. Sente-se a guerra europeia, as contradições da industrialização e da tradição, o anglicanismo e o catolicismo, a crise da velha nobreza, a decadência das casas antigas e do que significavam, mas também as reminiscências da honra, da dignidade e também do dogmatismo em ligação com a esperança. Contudo, a Graça divina vai emergindo subtilmente, uma vez que a esperança, a honra e a dignidade não permitem a indiferença. Há, aliás, um diálogo entre Charles e Cordelia, a irmã mais nova de Sebastian, em que Waugh traz uma citação célebre de Chesterton (bem sentida por ele mesmo) retirada de um dos contos mais conhecidos do Padre Brown, sobre pescadores de almas: «Apanhei-o com um anzol invisível e uma invisível linha tão comprida que posso deixá-lo vaguear até aos confins do mundo e, mesmo assim, trazê-lo de volta só com uma sacudidela do meu dedo». E essa ligação é teológica, tendo também a ver com a relação vital e rica entre pedras vivas e pedras mortas e entre o passado, o presente e o futuro. A amizade entre Charles Ryder e Sebastian Flyte é feita da procura de compreensão do «outro» com todas as dificuldades e resistências de aproximação e de distância. O romance é, assim, entretecido por um profundo afeto por uma casa histórica e pelas pessoas que a habitam. E Evelyn Waugh diz no prefácio à edição de 1959 que, em 1944, quando escreveu a obra, estava longe de supor que as casas de campo inglesas ganhassem a importância que obteriam como exemplos vivos de história e de identidade. Pode, aliás, dizer-se que o escritor foi dos contribuiu decisivamente, para que essa atenção patrimonial, de modo que as casas não fossem vítimas de um cruel esquecimento, como tinha acontecido com os conventos no século XVI. No fundo as casas têm alma e são pontos de encontro entre a história e a vida.

 

«AU PLAISIR DE DIEU»
«C’est le banal qu’il faut montrer, parce que c’est ce qu’on ne voit plus, à force d’habitude et de familiarité». Jean d’Ormesson, como Waugh, faz uma viagem à história centrada na relação entre uma família e a sua propriedade rural, detida ancestralmente. O berço da tribo era o Castelo de Plessis-lez-Vaudreuil, que resumia uma longa história desde as cruzadas até aos nossos dias. Os acontecimentos do século XX precipitam a mutação e a decadência – a modernização, a indústria, a emergência da burguesia, a guerra, a resistência, o amor, o dinheiro, os debates dilacerantes, Pétain e De Gaulle, a tradição, as mudanças políticas, Maurras e Karl Marx… Tudo se mistura num torvelinho de contradições. A vida quotidiana penetra nas grandes questões. As transformações profundas geram o drama e a ameaça da decadência. Ressalvadas as distâncias, são os mesmos temas que encontramos em Brideshead – com um maior distanciamento aqui relativamente às tradições. Daí que Jean d’Ormesson dedique o seu livro a seu pai, apresentado como liberal, jansenista e republicano – atributos correspondentes a camadas diferenciadas da história e da vida. Malraux disse, aliás, um dia: «que livros valem a pena ser escritos, para além das Memórias?». E aqui sente-se isso exatamente. Sostène reporta-se à noite dos tempos, a Éléazar nascido no século XI. Séculos e séculos de serviço «au plaisir de Dieu». É o esteio da família, o ponto de encontro das diversas lembranças e recordações, a partir de um tempo em que a cultura dos campos domina, como um relógio regularíssimo. «Nasci num mundo que olhava para trás. O passado contava mais que o futuro. O meu avô era um velho bom muito direito que vivia da recordação. A sua mãe tinha dançado nas Tulherias com o duque de Nemours, com o príncipe de Joinville, com o duque de Aumale, e a minha avó em Compiègne com o príncipe imperial». O tempo foi-se acelerando e as pessoas deixaram de ter tempo. O silêncio foi sendo ocupado pelo ruído, os ritmos tradicionais pela marcação forte dos compassos… E foi-se tomando consciência de que seria necessário restaurar as ardósias dos telhados, certos de que a alma das casas é afetada pela doença que leva à sua destruição física. É preciso preservá-la, ligando pedras vivas e pedras mortas, enquanto lugar de acolhimento e de ternura, de força e de consistência! Falar de património, não é falar de castelos no ar, mas de amores e desamores, de vontades e caminhos – de pessoas!

Guilherme d'Oliveira Martins

A VIDA DOS LIVROS

de 21 a 27 de de Maio de 2012

 

«O Delfim» de José Cardoso Pires (Moraes Editores, 1968) é uma das obras que celebrizou o seu autor, por muitos considerado como influenciado pelo neorrealismo, mas, de facto, insuscetível de ser catalogado numa qualquer escola ou num grupo. Profundamente atento ao seu tempo, conheceu muito bem a literatura norte-americana e o surrealismo, entendendo como poucos, a importância da narrativa cinematográfica. Daí haver uma natural empatia entre autor e realizador, na obra homónima de Fernando Lopes (com a mediação de Vasco Pulido Valente). Dir-se-ia, assim, que «O Delfim» é o resultado de um diálogo biunívoco e natural entre a literatura e o cinema que leva a uma simbiose reveladora da qualidade de ambos os autores – na leitura de uma história impossível de resistência à mudança.

 


Fotograma de «O Delfim», de Fernando Lopes.

 

O CINEMA COMO GERAÇÃO
Cheguei até Fernando Lopes através dos meus bons amigos da geração de «O Tempo e o Modo» (que não sendo minha, segui com estima muito especial, através de pessoas como António Alçada Baptista, ele mesmo um centro irradiante de «grandes amizades») nesse misto de interrogação, de dúvida e de otimismo trágico, que foi marca indelével dessa maneira de pensar. Depois encontrei uma das suas netas, a Sofia, no Centro Nacional de Cultura, julgo que não poderia ter havido sítio melhor, e isso foi motivo para falarmos várias vezes de sementeiras de futuro, de perplexidades e da necessidade de termos os olhos bem abertos e atentos, onde a indiferença vai tendo tanta força. Olhando a sua presença, devo começar quase pelo princípio. O caso de «Belarmino» (1965) é muito especial. É um dos emblemas do chamado cinema novo, com um lugar único, que vai muito para além da circunstância ou de um cânone. Lembre-se, aliás, um memorável dossiê de «O Tempo e o Modo». Com exagero houve quem dissesse que esse foi o contributo de Fernando Lopes para a história do nosso cinema. Não, houve muito mais.

 

O AMOR DA LITERATURA
Ele amou profundamente a literatura, o cinema e a televisão, e sobretudo o mundo das pessoas – e deixou um testemunho vivo através de tudo o que fez, e do exemplo prático, indo ao encontro da realidade e da vida. Por isso, «Belarmino» é um caso aparte. Paulo Rocha disse: «Enquanto Fernando Lopes for vivo ninguém vai conseguir parar o cinema português». E Alberto Seixas Santos liga-o indelevelmente a «Verdes Anos», do próprio Paulo Rocha. É a matéria-prima da literatura e da narrativa que está em causa. Estamos diante de um documento fidelíssimo da circunstância que retrata, que nos leva a conhecer uma pessoa autêntica, de carne e osso, um lutador popular que passaria despercebido se não tivesse chamado a atenção de Fernando Lopes, do seu inequívoco talento artístico e intuição humana. Que é um filme senão um modo de prender o tempo? Alexandre O’Neill, no ano seguinte à apresentação do filme, escreveu o poema «Amigos pensados: Belarmino», em homenagem aos vários encontros boémios no mundo da Lisboa dos anos cinquenta e sessenta. E pode dizer-se que foi O’Neill quem melhor captou o sentido desse filme, que recorda muito mais do que «Rocco e os seus irmãos», uma vez que a estética e a conceção de Fernando Lopes não se podem resumir a um respeito de escola, qualquer que seja, mais ou menos neo-realista. Há abertura a novas perspetivas, e sobretudo a procura da vida que não se encerra em cânones pré-definidos. Se não fosse assim não poderíamos dizer que é neste poema de «Feira Cabisbaixa», ao lado dos exemplos de Tereno, Eulália e Alice, que se procede a uma fidelíssima interpretação do que verdadeiramente estava em causa neste documentário inexcedível, que, em boa verdade, é muito mais do que isso, entre a fotografia de Augusto Cabrita, a música de Manuel Jorge Veloso, a entrevista de Baptista Bastos, e o genial suceder de imagens, no aproveitamento belíssimo de uma coreografia esplêndida. Quando O’Neill viu o filme apaixonou-se logo por ele. Viu aí a profunda atenção aos dramas humanos e ao que na realidade nos conduz a ultrapassar o real, procurando compreendê-lo. Gerou-se então uma amizade entre Fernando e Alexandre, digna do que o poeta designou, em sua casa, como «cabine dos irmãos Marx», espécie de refúgio para tantos e inusitados amigos pensados. E o certo é que odas estas palavras são ponderadas, uma vez que, passados os anos, Belarmino Fragoso continua na nossa memória não como uma personagem, mas como autêntico símbolo de uma sociedade em transição, do encerramento para a abertura. «Tiveste jeito, como qualquer de nós,/e foste campeão, como qualquer de nós./Que é a poesia mais que o boxe, não me dizes?/Também na poesia não se janta nada,/mas nem por isso somos infelizes./Campeões com jeito/é nossa vocação, nosso trejeito./Esperam de 1 a 10 que a gente, oxalá, não se levante/- e a gente levanta-se, pois pudera, sempre./Mas do miudame levámos cada soco!/Achas que foi pouco?/Belarmino:/Quando ao tapete nos levar/A mofina,/Tu ficarás sem murro,/Eu ficarei sem rima,/Pugilista e poeta, campeões com jeito/E amadores da má vida».

 

«BELARMINO» COMO REFERÊNCIA
Porém, «Belarmino», referência histórica insuperável, não teve sucesso comercial, e veio, graças a uma convergência de amizades, «Uma Abelha na Chuva» (1972), no dizer de João Bénard da Costa «adaptação libérrima de um romance de Carlos Oliveira», que «reviu o neo-realismo à luz do romantismo e inovou tanto pelos lados da mise-en-scène quanto pelos da montagem». E a marca crítica e inovadora de Fernando Lopes ficou de novo evidenciada, como foi prenunciado no filme inicial. Conhecemos o seu percurso e a sua vida. Os seus amigos têm-no recordado e sentimos que ele nos fez usufruir dos melhores resultados da criatividade, da arte e do talento – como na inesquecível experiência da RTP-2, nos seus tempos mais gloriosos, que temos de continuar a lembrar, pelo espírito livre, aberto, inovador e desassossegado. Olhando o percurso vêm-nos à mente alguns flashes. A «Crónica dos Bons Malandros» (1984), sob o tema de Mário Zambujal (com quem recordei Fernando, como se ali estivesse, à porta das Galveias), ilustra um tema bizarro, passado ali a dois passos, na Gulbenkian, protagonizado por uma quadrilha cansada de vulgares assaltos. Mas mais do que isso: dá-nos conta de quem era este singular cineasta, que sobretudo amava a vida e o inesperado dela. Quantas vezes invocou esse desejo íntimo de se deixar atrair pela aventura em busca de um bom momento. E era desses momentos bons que a vida dele se foi compondo, como nos dizia sempre o seu sorriso melancólico. «O Fio do Horizonte» (1993), com base num texto de António Tabucchi, foi o filme que Fernando Lopes mais terá gostado de fazer. Aí reencontramos, de novo, a procura da existência. Spino, anátomo-patologista da morgue de Lisboa, depara-se com o corpo de um jovem que o atrai estranhamente. João Bénard encontrou aí Borges e Pessoa, numa «história de duplos e de um vivo que encontra o morto que é ele». José Cardoso Pires deu, por outro lado, o enredo e a tensão dramática de «O Delfim» (2002). É, de novo, o país entre o fechamento e a abertura que está na ribalta – o tema da transição surge apresentado com naturalidade e subtileza, como se houvesse dois registos: o do tempo que permanece e o dos constrangimentos que levam à mudança. Este é o tema recorrente de Fernando Lopes, sempre ciente de que deveria dar testemunho crítico relativamente a uma sociedade que parecia não mudar nos seus fundamentos e que sofreu um profundo abalo telúrico com repercussões de largo prazo. Um incidente, como é regra nos romances de Cardoso Pires, é o revelador de tudo. «Tomás Manuel domina os cães com pulso forte, tem-nos colados a ele. Tremem os três, presos ao chão. Dois mastins e um homem que acende cigarros uns nos outros e que mostra às dunas um rosto devastado…».

Guilherme d’Oliveira Martins

A VIDA DOS LIVROS

de 14 a 20 de Maio de 2012

 

«Daqui houve nome Portugal» é uma antologia emblemática da literatura relativa à cidade do Porto, da autoria de Eugénio de Andrade (2ª edição, Asa, 2000), da iniciativa de José da Cruz Santos, no ano de 1968. É sem dúvida «o mais belo retrato das pedras e das gentes do Porto». Merece estar sempre presente na nossa memória. 

 

O CARÁTER DA CIDADE INVICTA

Eugénio de Andrade diz que "a cidade o que tem, sobretudo, é carácter - um carácter que faz do cidadão do Porto o mais belo estilo de se ser português". Tem razão. A síntese é feliz e adequada, merecendo ser compreendida. E Sampaio Bruno, mestre de várias gerações de pensadores (como Leonardo ou José Marinho), afirmava que "no Porto, o pão tem de ser laboriosamente conquistado dos lucros do comércio". Isto, enquanto Raul Brandão falava do Porto "filho do rio e do mar" e Jaime Cortesão recordava os portuenses que conquistaram "as suas liberdades palmo a palmo, em luta armada com os seus bispos, de quem a cidade fora senhorio feudal, e com os turbulentos fidalgos de Entre Douro e Minho…". Desta forma se criou no Porto uma "verdadeira república urbana, como as suas congéneres da Flandres e da Itália", distinguindo-se destas "pelo profundo sentimento de comunhão com que compartilhava as aspirações e os riscos da pátria maior". Aí "burgueses e mesteirais organizaram-se como classe e conquistaram as garantias de liberdade, sem as quais o trabalho se torna servidão e a vida perde dignidade". E nessa luta ancestral, lembre-se o Arco de Sant'Ana, escrito por Garrett no Convento dos Grilos, após o desembarque do Mindelo, no cerco heroico que culminaria com a vitória da causa liberal em Évora Monte. Aí se ilustra, com laivos de metáfora, a insurreição popular contra um bispo barregão, no tempo do rei D. Pedro I. E em ambos os casos venceu a causa emancipadora. É este o burgo medieval que Garrett descreve, que dará lugar à "cidade comercial, civilizadamente cosmopolita" desenhada por Ramalho Ortigão.

 

CIDADE DE CAMILO

Mas estamos ainda perante a "cidade de Camilo", segundo Teixeira de Pascoaes. Lá está a janela do cárcere na Cadeia da Relação, lembrando Ana Plácido e a escrita inspirada e intensa do Amor de Perdição. E não disse Nemésio que o Porto era "a raiz territorial e étnica que deu crescimento ao país"? Afinal, a cidade não nos deixa indiferentes e foi sempre marcante na história portuguesa. Eugénio de Andrade lembra, por isso, três figuras que se tornaram, cada uma à sua maneira, símbolos da cidade - Fernão Lopes, Almeida Garrett e Camilo. E se se fala do cronista de 1383, temos de ir ao Mestre de Aviz e a D. Filipa de Lencastre, ao Infante D. Henrique e a um tempo fundador na afirmação dos "fatores democráticos na formação de Portugal". Do mesmo modo, ao lembrarmos Almeida Garrett, temos de recordar (aqui por contraponto a Camilo Castelo Branco) a causa liberal, desde pelo menos 24 de Agosto de 1820, a liderança de D. Pedro IV, o labor legislativo de Mouzinho da Silveira, o patriotismo dos irmãos Passos e a consolidação do constitucionalismo. E de Camilo fica o enorme talento, a sua vida aventurosa e a magnífica capacidade de nos dar as imagens marcantes de um período de heroísmo e de traição - numa sociedade rebelde contra os privilégios, mas ciosa das suas tradições. Mas há ainda Júlio Dinis de «Uma Família Inglesa», que retrata a cidade laboriosa e comercial, os jantares do Águia d’Ouro, os serões de Manuel Quintino, a agitação da Bolsa do Porto, o Teatro de S. João, onde se encontram Carlos Whitestone e Cecília… 

 

PORTO, DIFERENTE DE TUDO

Por mim, poderia dizer, como Rodrigues Miguéis: "alfacinha, tenho um fraco pelo Porto". Porquê? Pela liberdade, pela história e por sentir aqui as minhas origens. Lá está à beira da rua da Boavista, nas Águas Férreas, uma das casas das minhas raízes - as mesmas raízes que me levaram a representar, com orgulho e honra, de 1991 a 2005, o povo do Porto na Assembleia da República. De facto, o Porto é diferente de tudo. Sente-se-lhe a alma. Sente-se-lhe o inconformismo. Torga referiu-se-lhe como "velha e livre cidade", com "uma saudável consciência gregária, uma solidez de processos de conduta e relação" - a "única grande cidade castiçamente nossa". E Ruben A. não podia dizer melhor da sua cidade ao proclamar, como exemplo vivo do que é ser-se do Porto - "que ensina ao homem os seus deveres cívicos e que lhe tributa direitos que não despreza por forma alguma, cidade extraordinária de consciência política no que de mais nobre tem esta palavra em ligação com o valor humano da pessoa integrada nas defesas da comuna". E como esquecer o Porto de Agustina Bessa Luís, que invoca "uma paixão e um selo de resistência". Toda a cidade tem "uma alma de muralha" - muralha, que infunde em nós uma doce tristeza europeia, um orgulho de atividade, um desenho de pompas escravas, um sonho económico, uma impraticável fé de liberdade". A muralha fernandina lá está para atestar o carácter invicto da cidade - no Caminho Novo em Miragaia ou nos Guindais - mas também a torre medieval do solar dos Terenas e Monfalins, talvez morada do lendário Pedro Sem, na rua da Boa Nova, perto do Palácio de Cristal… Mas como não falar da Torre dos Clérigos do italiano Nicolau Nasoni? E como não lembrar o velhinho Palácio de Cristal, de inspiração britânica, cuja primeira pedra foi lançada por D. Pedro V, e que foi infelizmente demolido nos anos quarenta do século XX para dar lugar ao atual Pavilhão dos Desportos, que agora convive com a importante Biblioteca Municipal de Almeida Garrett? No velho Palácio fotografaram-se os célebres Cinco - Antero de Quental, Oliveira Martins, Eça de Queirós, Ramalho Ortigão e Guerra Junqueiro - num dia em que Eça pagou com um leque representando cinco cães uma aposta perdida ao bilhar com a sua noiva D. Emília de Castro. «Quem muito ladra, pouco aprende» (Antero); «Escritor que ladra, não morde» (Oliveira Martins); «Dentada de crítico, cura-se com pelo do mesmo crítico» (Ramalho); «Cão lírico ladra à lua; cão filósofo aboca o melhor osso» (Eça); «Cão de letras, cachorro» (Junqueiro)… E se falo de autores, tenho de referir livros e uma peregrinação imprescindível à Livraria Lello, na rua das Carmelitas, lugar mágico para acolher livros, ideias e pessoas - o que não permite esquecer as visitas para viciados à Académica, à Leitura ou à Modo de Ler… Mas o Porto moderno e cosmopolita de hoje passa necessariamente pela Casa de Serralves (que foi propriedade dos industriais conde de Vizela e conde de Riba de Ave) e pelo Museu de Arte Contemporânea - com arquitetura de Marques da Silva a Siza Vieira. E aí sente-se que o Porto se mantém fiel às "saudades do futuro". Como diria ainda Garrett: «Nós os do Porto, podemos trocar os bês pelos vês, mas nunca trocamos a liberdade pela tirania». Que melhor síntese poderemos encontrar?

 

Guilherme d’Oliveira Martins

O TALENTOSO BERNARDO

(Pedro Cunha - in Público)

 

Falar de Bernardo Sassetti é referir um dos mais talentosos músicos portugueses de sempre, com dimensão internacional. Digo-o sem receios. E se dúvidas houvesse bastaria referir a sua participação no filme de Anthony Minghella «O Talentoso Sr. Ripley». A melodia que lembramos é «My Funny Valentine», o intérprete é Matt Damon. O pianista escondido era o nosso Bernardo. E Minghella tanto gostou que lhe pediu para tocar nas ante-estreias do filme em Chicago, Los Angeles, Nova Iorque e Roma - a partir de obras por si compostas com o trompetista Guy Barker - o mais famoso inglês na sua disciplina. Esta história não vale só por si - corresponde ao reconhecimento exigente do talento de Berrnador Sassetti. Era uma pessoa modesta, mas consciente do que podia fazer com a sua qualidade artística. A literatura era uma das suas paixões, como a fotografia, a pintura, o cinema - tudo afinal o que era o mundo. E insisto no facto de ser uma das grandes referências da arte contemporânea. Ouvi-lo é como senti-lo a usar as cores, os claros, os escuros, as impressões. Falei com ele longamente da sua paixão pela poesia de Sophia de Mello Breyner - e era espantoso o seu amor pela literatura como vida. Há dias fomo-nos despedir de Fernando Lopes e lembrei-me de «98 octanas» - mas também de «A Costa dos Murmúrios» de Margarida Cardoso e Lídia Jorge» ou de «Milagre segundo Salomé» de Mário Barroso e Rodrigues Miguéis. Mas havia também o teatro como em «A Casa de Bernarda Alba» (com encenação de Diogo Infante e de Ana Luísa Guimarães) ou «Frei Luís de Sousa, na leitura de Ricardo Pais. E depois (ou antes de tudo) o extraordinário concertista, com Mário Laginha e Pedro Burmester, ou como Carlos Barretto e Alexandre Frazão. Originalíssimo compositor, cultor da música contemporânea - capaz de ligar o popular, o jazz, o clássico, em suma,uma linguagem universal da arte e do coração


Guilherme d'Oliveira Martins

A VIDA DOS LIVROS

de 7 a 13 de Maio de 2012


Os Catálogos da Biblioteca Nacional de Portugal têm-se singularizado pela sua qualidade. Tal é o caso agora de «Alfredo Margarido – Um Pensador Livre e Crítico», exposição comissariada por Isabel Castro Henriques, com coordenação de Fátima Lopes e Manuela Rêgo. Trata-se de um documento importante que apresenta ao público em geral e aos estudiosos sobre a lusofonia e as literaturas africanas de expressão portuguesa em especial o contributo crítico de um intelectual empenhado e de qualidade, como foi Alfredo Margarido.

 

 

UMA EXPOSIÇÃO OPORTUNA
A exposição organizada pela Biblioteca Nacional sobre Alfredo Margarido (1928-2010) homenageia «um pensador livre e crítico» e permite abrir horizontes sobre o tema da lusofonia. Personalidade multifacetada, conheceu muito bem África e pôde assumir uma reflexão para além dos diferentes lugares comuns de matizes múltiplos ou de quaisquer paternalismos. Nesse sentido, constitui uma referência fundamental para assumirmos, de forma desafogada, o «humanismo universalista», de que falou Jaime Cortesão, em termos abertos e inovadores, a partir de um movimento plural e centrífugo, entendendo a língua portuguesa como ponto de encontro de várias culturas. A sua personalidade libertária e inconformista, o seu labor incansável, a diversidade de temas e de interesses que cultivou constituem elementos fecundos que nos permitem ganhar novas dimensões da idiossincrasia lusófona sempre que lemos os seus textos e os seus ensaios.
Se nos ativermos ao «Dicionário de Autores de Literaturas Africanas de Língua Portuguesa» do saudoso mestre Aldónio Gomes (nome que não pode ser esquecido, e cuja obra continua a exigir a maior atenção) com Fernanda Cavacas, Alfredo Margarido usou na sua extensa e profusa obra, além do seu próprio nome, pseudónimos como Lúcio Câmara, Manuel Kandiba e Paulo Saraiva, sendo inicialmente técnico agrícola e jornalista, e depois licenciado e doutorado em França. Expulso de Angola por motivos políticos, viveu muitos anos em Paris, tendo sido investigador, pensador, poeta, romancista, ensaísta e crítico literário. «É reconhecido como um dos históricos dos estudos literários africanos com Mário de Andrade e Manuel Ferreira». E como não lembrar Manuela Margarido, sua primeira mulher, figura essencial na lusofonia africana, que conheci pessoalmente na UNESCO, e que teve uma presença forte na ligação à cultura africana de Alfredo?

 

UM ESPÍRITO LIVRE
Eugénio Lisboa bem o definiu: «Era, como os melhores, um monte de contradições: um rezingão inteligente que disfarçava os seus afetos, um cultor da palavra acerada e perscrutadora que escondia, com pudor e alguma malícia, o seu talento de artista plástico, um erudito sólido que fazia, com desenvoltura, poesia e romance, um provocador profissional que amava o convívio e sabia cultivar as amizades, um professor que gostava de desarrumar a sabedoria estabelecida e convidava à irreverência fundamentada, em suma, um cavalheiro de opinião diferente, sempre preparado para nos contradizer, com um sorriso malicioso e uma voz mansa que amaciava o tumulto». Dificilmente se poderia dizer melhor. Estávamos diante de uma inquietude iluminante, de quem tudo lia e por tudo se interessava. E o catálogo da exposição, contando com uma extraordinária apresentação de Isabel Castro Henriques, ilustra bem essa faceta de desassossego. Trata-se, afinal, de um repositório tocante e exaustivo, onde podemos acompanhar um percurso extraordinário de quem foi «um dos pensadores mais lúcidos da nossa realidade» (Perfecto Cuadrado).

 

UMA VISITA ELOQUENTE
Visitei há dias a exposição da Biblioteca com o meu querido amigo Eduardo Lourenço. É sempre um fascínio ter esta companhia, depois de termos andado às voltas com o papel dos mitos na interpretação da História. Com uma atenção especial a todos os pormenores, foi exprimindo uma sincera admiração pela capacidade de compreensão e de argúcia de Alfredo Margarido, sempre comparando a evolução dos textos e da reflexão com a belíssima obra gráfica. Há uma rara sensibilidade manifestada nos desenhos expostos, o surrealismo é assumido com doçura e ironia, o colorido suave ilustra uma espécie de representação onírica da literatura – o que entusiasma Eduardo: aqui, os vários heterónimos pessoanos num turbilhão ou num caracol de cabeças; acolá Caeiro pastor de rebanhos, mais adiante Pessoa passeando sobre os telhados ou segurando um balão… Luciana Stegagno Picchio fala de «uma notável técnica de aguarelista», que aproveita «a lição surrealista, modalidade portuguesa de uma geração ilustrada por Alexandre O’Neill ou um Mário Cesariny».

 

SINGULARIDADE NA EXPRESSÃO ARTÍSTICA
Entre a descoberta dos textos, das referências, das pequenas e grandes audácias, aqueles desenhos entusiasmam o visitante. Eduardo Lourenço recorda o primeiro contacto, no já distante ano de 1953, através de «Poemas com Rosas». Depois lembra o surrealismo em Luanda, com Cruzeiro Seixas («o Margarido era muito sociável e eu preferia o sol e o mar, encontrar um estranho búzio, as noites e a gente jovem»). Perfecto Cuadrado fala da singularidade da expressão artística de Alfredo Margarido. «Lúcido, crítico e livre, poeta no olhar, no pensar e no dizer uma realidade que continua a precisar de uma profunda reabilitação desde os territórios concêntricos e sucessivos do moral, do ético, do político e do estético». E convém lembrar Teixeira de Pascoaes, que tanto entusiasmou o jovem A. Margarido - «a luz é cada vez mais luz». Eduardo Lourenço recorda a importância e o prestígio dos textos no «Diogène» (como «Incidences socio-economiques sur la poèsie noire d’expression portugaise» de 1962) - e vem à baila Marc Ferro a dizer: «Il avait la sagacité de Fernand Braudel, l’inventivité d’Eric Hobsbawm, la curiosité multiforme de Roland Barthes». Lá estão os «Cadernos de Circunstância», com Manuel Villaverde Cabral e Fernando Medeiros.

 

UMA LÍNGUA VIVA DOS SEUS FALANTES
Os textos têm uma rara pertinência, e ao vê-los num conjunto, percebemos que o autor manteve-se sempre atento aos novos fenómenos, sabendo que o desenvolvimento moderno precisa de autonomia e diálogo, de singularidade e reciprocidade. E Eduardo Lourenço aponta-me uma frase, que obriga a um sério repensar. Sinto que se coloca abertamente ao lado de Margarido: «A nossa modernidade, criada pelas independências africanas, obrigou o país a cortar uma parte substancial dos seus laços com o Atlântico, que foi sempre o Oceano das nossas grandes incursões, mesmo se o Índico não pode ser afastado desta reflexão (…). A invenção da lusofonia procura com algum desespero devolver-nos uma parte desse espaço (…). A maior parte dos missionários da lusofonia agem como se não tivéssemos atrás uma longa história de relações polémicas com aqueles que escolheram falar português». Este é um tema fulcral. E Eduardo Lourenço sente que ali estão as suas preocupações fundamentais: «A língua nasceu em Portugal e pertence aos portugueses. Não se consegue aceitar o princípio simples de que a língua pertence àqueles que a falam! Aceitemos a leitura crítica do passado, o que será sempre ocasião para impedir que alguns dos nossos melhores vícios se transformem em virtudes». É esse aguilhão da crítica que tem de funcionar, para tirar as lições dos erros e para fazer dos mitos motivo de compreensão.

Guilherme d’Oliveira Martins

Fernando Lopes: a generosa sétima arte

 

 

Por M. Teresa Bracinha Vieira

 

 

Há dias assim: acreditámos e bem que o filme sobre a vida do boxeur Belarmino Fragoso em 1964 constituiu um marco de sensibilidade única na tela e uma forte referência ao que ficou conhecido por Cinema Novo.

Assim, e não apenas com esta riqueza nos deixa Fernando Lopes.

Fernando Lopes que tão bem escrevia, era a par com Manoel de Oliveira, uma das grandes referências devidamente apontada pelo Plano Nacional de Cinema.

“Uma Abelha na Chuva”, adaptação do romance de Carlos de Oliveira ao cinema não nos deixa dúvidas acerca da magia no manejo das artes por este inesquecível Ser humano.

Foi condecorado pelo Governo francês com a Ordem do Mérito Artístico e Mário Soares atribui-lhe a Ordem do Infante D. Henrique.

Por nós foi quem nos condecorou com a medalha do aprender melhor a olhar de frente os sempre sedentos deuses das artes e dentro destes os deuses de uma generosa sétima arte.

 

2.05.12

Sec. XXI

Yorgos Seferis: o acordado sono do mar

 

Por Teresa B. Vieira


Faz parte da vida dos livros, revisitá-los. Os Poemas Escolhidos, de Yorgos Seferis surgiram- me numa tradução de Joaquim Manuel Magalhães e Nikos Pratisinis editado pela Relógio d’Àgua em 1993.

 

Yorgos Seferis nasceu em Esmirna em 1900. Diplomata conceituado, advogado, estudante na Sorbonne em Direito e Letras e Professor na Universidade de Atenas, foi considerado um dos mais importantes poetas gregos do século XX.


Nobel laureado “ Pela sua escrita lírica, inspirada por um sentimento profundo do mundo helénico e da sua cultura”, no seu discurso no Banquete

 

Nobel em 1963 afirma com particular enfase:

«A poesia tem as suas raízes na respiração humana (…) é  um acto de confiança e quem sabe se o nosso mal-estar não é devido a uma falta de confiança?»

Deste modo de pensar e de sentir a escrita poética surge-nos um escritor num desencadear provocativo de organizadas questões fulcrais, um escritor que pretende que se não esqueça o homem dos banhos em que foi afogado ou dos jogos cósmicos do eterno presente.

No poema intitulado O último Dia, eis:


Como morre um homem? Estranho, ninguém reflectiu nisso.

(…) Todavia a morte é algo que é feito; como morre um homem?

Todavia alguém ganha a sua morte, a sua própria morte,

que não pertence a nenhum outro

e este jogo é a vida.

E no mesmo poema, continua

(…) Um casal passou a conversar:

«Fartei-me do crepúsculo, vamos para casa

Vamos para casa acender a luz».

 

Daqui até ao livro As seis noites na Acrópole, traduzido por Susan Mathias (2007) vai um passo de extrema coerência por entre uma modernidade poética de não fácil acesso, mas dotada de uma trajectória de seta apontada ao alvo.


Afinal, digo hoje, que fora isso o que mais me impressionara no seu livro Os Poemas Escolhidos. As palavras surgiam-me inamovíveis, conquistando a sua própria morte na eternidade da hora em que eram colhidas pelo leitor. Assim, Yorgos Seferis foi e é para mim um conquistador da existência, do valor, do direito à vida quando já nada nos demove dos princípios e das energias.


Surgiu-me hoje a expressão a Yorgos como sendo a sua escrita um acordado sono do mar, e não é que um dos seus poemas também reza:

O sono preenchia-o com sonhos de frutos e folhas;

A vigília não o deixava colher nem uma amora.

Ambos dividiram os seus membros pelas Bacantes.

 

A verdade é que arriscamo-nos a adoecer se não revisitarmos os livros sobretudo pelo lado que mais se arrisca. Pelo lado em que o soro também nos penetra com uma branda e acutilante ironia.

 

20.04.12
Sec. XXI