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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

Do mundo grego outro sol

 

 

A concisão das palavras funcionou como regra absoluta e os poetas aceitaram-na.

Uma palavra a mais de fácil sedução e o pano era crestado. Como afirmava Cícero, um adjectivo basta para fazer baixar um voo soberano. Diga-se que no período helenístico, a necessidade de se criarem antologias, tinha por objectivo que só o melhor fosse legado a presentes e vindouros.

Leónidas de Tarento era poeta zeloso da coroa de cada texto. Preocupado pelas classes mais humildes não se prendia ao ornamento da escrita. De resto, a avaliar pelo que nos chegou, e que remonta já aos séculos VI-V a.C o cuidado dos extremos limados da poesia, constituía decoro na salvaguarda da transmissão do cerne das realidades.

A Antologia Palatina do século XI –e que deve o seu nome à Biblioteca Palatina de Heidelberga onde foi encontrada - e a Antologia de Planudes do sec. XIV, reúnem quinze séculos de poesia helénica num acervo enxuto e saneado de palavras que, se equivocadas, suprimiriam o sentido a que se entregavam.

O mundo errático dos poetas tinha também na escrita a que nos referimos uma função didáctica, quantas vezes a detrimento da científica, mas dotada sempre de uma envolvência em relação à natureza e ao erotismo exaltando o amor e o seu valor sobre todas as coisas.

Um pomo nos olhos das palavras oferece-nos Albano Martins numa portuguesa versão de 2002 pela chancela da Asa do mundo grego outro sol.

O conhecimento da língua grega e a sua intrínseca contenção, faz-nos receber de Albano Martins, a fidelidade à leitura que nos propõe rigorosa, e oferecendo a cultura clássica em sumo e sol.


Afinal, à distância de séculos e tão aqui

 

Se chamuscas muitas vezes uma alma que volteia à tua volta, ela fugirá, ó Eros. Porque também ela, tem asas.
Meléagro


Ao beijar Agatão, eu tinha a alma nos lábios. A infeliz viera para ficar com ele.
Platão


Tenho nas mãos os seus seios, a sua boca na minha (…) E eu definho no meio das duas.

Paulo Silenciário


Depois de ter pintado as formas, eu queria também ter pintado o talento. A arte, porém, não se submeteu aos meus intentos.

Anónimo.


Na releitura deste livro, Ísis, mãe de Hórus e esposa de Osíris, segredou-me naquela ilha grega que me coube em sorte no mar Egeu, o quanto devia sempre convocar tão incomportável beleza.

 


Teresa Vieira

A VIDA DOS LIVROS

de 25 de Junho a 1 de Julho de 2012

 

Quando estamos fora, temos tendência para nos ocuparmos mais de todos os pequenos sinais sobre Portugal que aí encontramos. Foi o que me aconteceu agora em Londres, ao encontrar por acaso «The Taste of Portugal – A Voyage of gastronomic discovery combined with recipes, history and folclore»», de Edite Vieira (Grub Street, London, 1995, 2000). A obra é cuidada, foi muito bem recebida e permite-nos perceber como é que a nossa cultura pode ser abordada para interessar quem nos deseja conhecer.

 

 

A CULTURA FEITA GASTRONOMIA
A gastronomia e a culinária são dois elementos fundamentais para conhecer uma cultura, e no caso português isso é especialmente evidente, pela diversidade do nosso território e das nossas gentes, até pelos poderosos fatores de coesão. Os autores e as obras sobre a matéria são múltiplos, conhecidos e de uma qualidade assinalável. As referências na literatura portuguesa à gastronomia são fecundas e deliciosas. Edite Vieira demonstra, aliás, um muito bom conhecimento da cultura (sentindo-se a presença de Luís de Sousa Rebelo e de Eugénio Lisboa) – e encontra um modo muito acessível e pedagógico para fazer chegar o gosto da nossa boa mesa ao público britânico. O Embaixador João Hall-Themido reconhece-o no pequeno prefácio, e ao lermos a obra sentimos estar perante uma excelente porta de entrada para o conhecimento de quem somos. Uma boa refeição é um ato de convívio e de criação e no nosso caso, perante a diversidade de iguarias e acepipes, esse encontro permite-nos entender as raízes, as tradições, as gentes, a terra e a história. Não vou falar da literatura culinária, que é muito rica desde tempos ancestrais. Só para falar de tempos próximos, recordo «A Cozinha Tradicional Portuguesa» de Maria de Lourdes Modesto – mas lembro, em casa de minha avó, «Doces e Cozinhados» de Isalita (com primeira edição de meados dos anos vinte, da autoria de duas amigas, que em boa hora publicaram a sua experiência familiar – Isabel Campos Henriques e Angela – Angelita – Carvajal y Pinto Leite Telles da Silva) e «O Livro de Pantagruel» (1946) de Bertha Rosa-Limpo (mãe do cineasta e gourmet Jorge Brum do Canto), peças fundamentais de uma pequena biblioteca excêntrica, que não tinha o cheiro tradicional dos livros, mas um aroma suave a caramelo, baunilha, canela e tomilho. É preciso explicar que os livros de receitas são detonadores de ideias, avivadores de memórias, porque o bom cozinheiro e a boa cozinheira (como minha Mãe, com muitas receitas religiosamente passadas à mão) tem sempre aquilo que as receitas não podem ter. Nunca comi pastéis de massa tenra, folhados ou ovos mexidos com tomate como os da minha Mãe. É que Vatel tinha mão, que é o nome do talento e do segredo, uma vez que o quanto bastante (q. b.) não se ensina.

 

O MODO COMO SE AGE SOBRE A NATUREZA
Numa obra como «The Taste of Portugal», o que temos é a interrogação das raízes, a investigação cuidada sobre as origens de um sabor, de um prato, de uma iguaria. E não há festa, nem comunhão, nem convívio sem a mesa posta e sem os acepipes. «Há só um banquete que desbanca todos os jantares de Paris, mas que os desbanca inteiramente, é a ceia de véspera de Natal nas nossas terras do Minho» - di-lo Ramalho Ortigão. E, ao invocar a Beira-Serra, aí temos o nosso Gil Vicente a falar de «Quinhentos queijos recentes / todos feitos à candeia, bezerras, leite, ovelhas meirinhas» e «dois mil sacos de castanha, tão grossa, tão sã, tamanha / que se maravilhará / onde tal coisa se apanha». Divino queijo da serra… O gosto de Portugal é um encontro de múltiplos paladares, «cada roca com seu fuso, cada terra com seu uso». Como entender o país sem os aromas que Júlio Dinis nos transmite na insuperável «Morgadinha dos Canaviais»? E é Jacinto, ao regressar ao torrão, que nos diz desse prazer extraordinário que é o reencontro com as tradições da gastronomia – a canja divinal, as favas, o arroz doce. Contudo, falar dessas reminiscências é lembrar a história e as suas provações, as fomes e a abundância, os conventos, os campos, as cidades, as serras e o anúncio do paraíso através do estomago. Fialho de Almeida descreve a realidade da terra e ilustra-a com as receitas enriquecidas pelos inesperados aromas que a natureza dá. É esse encontro que se chama cultura: o modo como as gentes agem sobre a natureza. Não há, com raras exceções, uma autoria individual, como acontece com as lendas. Um prato tradicional é produto do génio coletivo. Fialho insiste neste ponto. E, no nosso caso, as viagens pelo mundo misturam sabores, ligaram-nos e enriqueceram-nos. Das especiarias do Oriente (o cravinho, a noz-moscada, a pimenta, o gengibre) às culturas das Américas, tudo se mistura, ligando-se ao melting pot mediterrânico e atlântico. Garrett diria que acredita mais na tradição do que em todos os livros de crónicas e nas investigações arqueológicas. O autor de D. Branca não descrê da investigação histórica, mas diz-nos que só a vida pode fazer luz sobre os acontecimentos e sobre as explicações. A gastronomia é um revelador extraordinário – ela é feita com os ingredientes de que as pessoas dispõem e como vivem. A metáfora da «sopa de pedra» é eloquente – ela dependerá em concreto do que existe no momento e no lugar. A água, a pedra, o azeite e depois tudo. Quando em 1565 a Princesa D. Maria casou com o Duque de Parma levou consigo as receitas culinárias e as indicações úteis para a vida doméstica. Hoje esses elementos são preciosos e estão na Biblioteca de Nápoles, como chave fantástica sobre a vida quotidiana.

 

«O GOSTO DE PORTUGAL» - ALGUNS EXEMPLOS

Se queremos dar exemplo dos nossos sabores começamos pelo bacalhau. Foi o contacto atlântico com os povos escandinavos que nos trouxe o «fiel amigo». Aqui vinham os vikings buscar sal, e deixaram-nos a técnica de secar o bacalhau para o manter. Em resultado desse intercâmbio, os portugueses tornaram-se os maiores divulgadores do bacalhau seco, com os seus 365 modos de cozinhar. Depois, temos de falar da matança do porco e das mil e uma utilidades deste: o presunto, o chouriço, o fumeiro, as morcelas, as alheiras, as farinheiras, o toucinho, que até os doces abrilhanta. De novo, estamos diante da complexa arte de preservação dos alimentos. Como é possível compreender a aventura da viagem dos portugueses sem esta relação com os alimentos, a partir do nosso precioso sal? Mas continuemos na peregrinação dos sabores. A sopa é um elemento fundamental. Há sempre lugar para uma sopa. O caldo verde impera, a canja de galinha completa – e Eça de Queirós imortalizou-a. Mas há sopas de tudo – de coelho bravo, de perdiz, de camarão, de peixes, de favas, de feijão, de tomate (com ovo e pão), de ervilhas, de legumes, de papas de milho – e do que Deus quiser. O pão é rei (ou não significasse etimologicamente tudo): a broa de milho, as açordas, as migas, o ensopado de cabrito, os gaspachos, as bolas. Quanto ao pescado, esse apresenta uma variedade inesgotável e proverbial: as mil formas de bacalhau (com especiais referências a Gomes de Sá, o afamado cozinheiro do Porto, e ao Sr. Brás, de que perdemos o rasto), os divinos pastéis de bacalhau ou bolinhos na cidade invicta, a meia desfeita com grão, o bacalhau com natas, as pataniscas. E as sardinhas assadas, a caldeirada de enguias, a pescada com todos, os salmonetes grelhados, os bifes de atum, os rissóis de camarão, a lagosta suada, as amêijoas ditas de Bulhão Pato (que são do João da Mata, que um dia lhas dedicou), além dos chocos guisados e do polvo. E quando vêm as carnes: começamos pelo bife com ovo a cavalo (para o trivial), continuamos com o cozido à portuguesa (para dias mais festivos), num lugar decisivo. A escolha é difícil: chanfana da Bairrada, feijoada à portuguesa, cabrito assado, vitela barrosã, tripas à moda do Porto, arroz no forno, leitão da Bairrada, rojões, iscas com elas (as batatas, naturalmente), ovos com chouriço, paio com ervilhas, bucho de porco recheado, peru de Natal, frango na púcara, pato com arroz, coelho na caçarola, empadas de galinha ou de vitela e fogaças. E há, para acompanhamento vegetal: os peixinhos da horta, a salada de feijão-frade, o esparregado, as favas e o arroz de tomate. E, em falando de arroz, ele pode portuguesmente acompanhar tudo. E para que o pecado seja completo vêm as sobremesas, apesar de tudo abençoadas pelas abadessas e abades: o arroz doce (com lugar cativo na literatura política – com referência especial para A. A. Teixeira de Vasconcelos, com «O Prato de Arroz Doce», crónica de 1862); o leite-creme (mais ou menos queimado, com várias receitas de comer e chorar por mais), os ovos-moles, o toucinho-do-céu, as barrigas de freira. Nos conventos de freiras, os doces de gemas de ovos, demonstram, aliás, que nada se perde e nada se cria, já que as claras eram usadas para os engomados. Continuemos com o afamadíssimo pudim do Abade de Priscos (o Padre Manuel Rebelo, músico e cozinheiro, falecido com quase cem anos em 1930), as farófias, a sericaia, o manjar branco (vindo dos códices da Idade Média), os D. Rodrigos, os morgados de figo, os pastéis de nata e os pastéis dos jerónimos de Belém, as queijadas de Sintra, os sonhos, as azevias, as rabanadas, o bolo-rei e os pães-de-ló (que os japoneses designam com «castela», por causa das claras em castelo) – desde o molhado até aos do Minho –, os folares da Páscoa, a geleia de marmelo e os doces bíblicos de leite e mel. Em suma, pelos sabores poderemos entender as tradições, a história, a vida, as gentes, os recursos, as necessidades – numa palavra: a cultura genuína.


Guilherme d’Oliveira Martins

Duras, uma das maiores escritoras francesas do sec. XX: ou o aroma das raízes quando se confundem com a terra.

 

De novo o amor sob a luz. A planta rente à fonte, o rosto, lá onde se inicia o jogo. A fome, as praias abandonadas, o terror da opressão, a guerra exasperante, a hora disponível ao corpo e a voz na importância da memória das viagens, o sorriso das crianças num poder terrífico, enfim, a realidade dos dias.

 

Uma mão de palavras tão só para se aproximarem do dizer do impacto quando releio Duras.

 

Marguerite Duras escritora e directora de filmes nasceu na Indochina francesa em Gia Dinh e estudou Direito em França. Algumas das suas obras foram adaptadas para o cinema como o célebre filme “O Amante”.

 

O poder da palavra desta escritora nunca afrouxou em nenhuma página, antes nos surge à leitura de cada livro, como um fabuloso fole insistentemente na direcção da vida: meticulosamente lucido, musculoso e  fundo em nós caso para nós, de jeito tão fundo, nunca nos tivéssemos olhado.

 

O brilhantismo do estilo de Duras também nos transporta à nossa Hiroschima e ao seu reverso. Num abismo de fumo em Nathalie Granger suivi de La femme du Gange

 

D’abord il la regarde, attend. Et elle se lève. Alors il marche. Et elle le suit (…) puis elle ne s’arrête plus de suivre (…) Ils s’éloignent encore.

Chega-nos assim uma leitura que beija os lábios das folhas dos livros de Duras e aí se sustém para entendermos o quanto muito cedo na vida é de facto demasiado tarde. O quanto nunca nos libertamos, e de trincheira em trincheira desabrochamos, quantas vezes sob o pano de uma camisa de noite.

 

E por tudo o que em jóia trai a alegria até o amor se pode viver de uma maneira horrível.

 

Olhos azuis, cabelo preto: um livro impossível e venerável ou

“C’est Tout”, um companheiro meu junto a outros livros de cabeceira:

Y.A. : Ça sert à quoi, écrire ?

M.D. : C’est à la fois se taire et parler.

Silence, et puis

Je n’ai jamais eu de modèle. Je désobéissais en obéissant.

Je n’ai plus envie de faire l’effort (…) je suis seule.

Y.A. : Vous êtes qui ?

M.D. : Duras, c’est tout.

Y.A. : Elle fait quoi, Duras ?

M.D. : Elle fait la littérature.

 

Teresa Vieira

A VIDA DOS LIVROS

de 18 a 24 de Junho de 2012


Ao criar o Prémio Europeu Helena Vaz da Silva do jornalismo cultural, no âmbito do património, a Europa Nostra reconhece a importância fundamental da comunicação social na defesa, na crítica e na salvaguarda da memória histórica e da criação cultural. Como afirma Eduardo Lourenço em «A Nau de Ícaro seguido de Imagem e Miragem da Lusofonia» (Gradiva, 1999): «A cultura – mesmo a mais excitante – não é um fim em si mesma. Precisamos de um demónio crítico e irónico para nos ajudar a viver com menos delírio e euforia (…) a nossa cultura, neste momento tão enigmaticamente suspenso entre o esplendor visível da nossa condição de deuses virtuais e impor uma ordem à sua vontade de se apropriar da vida subtraindo-a ao que Camões chamava “o poder das trevas”».

 

 
Lusa

 

DEFESA DA CIDADANIA CULTURAL
Plácido Domingo disse no Mosteiro dos Jerónimos e no Convento de Mafra sobre a importância da cultura e da proteção e salvaguarda do património cultural. Para o presidente da «Europa Nostra», perante a crise, temos de assumir a emergência de pôr a defesa da cultura, da criação, do património e da memória, como primeiras prioridades da sociedade contemporânea. Por isso, o Congresso Europeu do Património da «Europa Nostra» – Lisboa, 2012, considerou que precisamos de uma estratégia coordenada a partir da complementaridade entre iniciativas da sociedade civil, dos Estados e das organizações internacionais e supranacionais, que ponha a cultura no centro da sociedade. E Vasco Graça Moura salientou-o expressamente, também em Mafra, ligando cidadania ativa e proteção do património. Não está, porém, em causa uma lógica retrospetiva, mas sim o entendimento complexo e dinâmico da criação como elemento de coesão e de diferença. A cultura não é um luxo! A cultura não pode ser vista como algo de supérfluo. A cultura é a qualidade, a reflexão e o conhecimento de nós mesmos. Ao falarmos das novas gerações de direitos fundamentais; ao pormos a tónica no desenvolvimento humano e na eminente dignidade das pessoas; ao procurarmos superar uma visão de curto prazo centrada na ilusão financeira e na especulação das economias de casino; ao ligarmos património e criação contemporânea; ao vermos o património cultural como encruzilhada de referências materiais e imateriais, com ligação à paisagem, à natureza, ao meio ambiente e ao equilíbrio ecológico, bem como às artes (a música fantástica dos seis órgãos de Mafra, restaurados e premiados) e às línguas; ao articularmos memória, credibilidade e confiança; ao pormos em comum o património da humanidade e o património partilhado, como fatores de paz, de pluralismo e de respeito mútuo («a Acrópole de Atenas não é grega, é de toda a humanidade», disse Plácido Domingo); ao considerarmos a defesa do património em risco ou ameaçado como tarefa urgente e de todos; ao entendermos a educação, a ciência e as artes como eixos essenciais de progresso; e ao apostarmos na exigência, no rigor e na grande qualidade como elementos criadores de valor – estaremos a abrir caminhos novos no sentido de um humanismo universalista.

 

UMA EUROPA CRIATIVA
A comissária europeia Androulla Vassiliou fez questão de afirmar que «“uma Europa criativa” coloca a cultura no coração das políticas da União Europeia». Não se pense, porém, que se trata de uma afirmação de circunstância. Tem de ser mais do que isso. Os últimos acontecimentos mundiais, a incerteza económica, a falta de coragem política e de visão de futuro, a ausência de uma audaciosa coordenação de esforços, de vontades e de energias têm de dar lugar à valorização do triângulo educação, ciência e cultura, bem como à criação de valor orientada para a qualidade, elemento crucial que não pode nem deve ser esquecido. Lembramo-nos bem do que Italo Calvino propôs para o novo milénio: leveza, rapidez, exatidão, visibilidade, multiplicidade e consistência. Ora, ao falarmos de património cultural e de cultura, numa perspetiva aberta e orientada para diante, temos de entender que a nossa relação positiva com esses valores permitirá que o património não seja puramente material, que a herança seja permanentemente enriquecida pela reciprocidade e que a memória seja um elemento de coesão, de confiança e de experiência e não motivo de divisão e de ressentimento. Helena Vaz da Silva, que foi homenageada em Lisboa, e que passará a inspirar o prémio europeu de jornalismo cultural pelo património afirmou: «a cultura é um instrumento de felicidade». De facto, como poderemos voltar a valorizar os ideais e os valores, se não partirmos da felicidade e do humanismo para o respeito mútuo contra a indiferença?

 

IDENTIDADES E TOLERÂNCIA
Hoje, presenciamos a invocação das identidades como motivo de fechamento e até de intolerância. O medo atrai o chauvinismo. A exclusão induz a fragmentação. Trata-se de não compreender que, sendo a conflitualidade algo de natural nas sociedades humanas, a superioridade ética tem de corresponder ao equilíbrio democrático entre o que é próprio e o que é recebido de fora, em ligação com a capacidade inovadora da criação do novo e do diferente. A decadência é a sobrevalorização do pretérito sem consciência de que a inteligência é a melhor adaptação às novas circunstâncias. E se sabemos que a decadência é sempre o resultado de complexas e contraditórias influências (como se viu no «século de ouro» na Espanha do século XVII ou no «Apocalipse Alegre» de Viena no tempo de Robert Musil) não podemos esquecer que são a capacidade regeneradora e a ideia de metamorfose (de que tem falado Edgar Morin) que nos permitem a saída dos bloqueamentos e das pulsões supostamente purificadoras. A atual crise europeia é ditada pela incapacidade de compreender que só a coordenação genuína permitirá evitar o fracasso. Estamos como no dilema dos prisioneiros – não podemos aspirar ao cenário ideal, mas impõe-se a experiência inteligente para evitar o pior. As tentações fragmentárias, isolacionistas e protecionistas originam prejuízo para todos. A Europa corre o risco da irrelevância, com cada um a puxar para seu lado. A periferia e a mediocridade são características indesejáveis. Num país antigo, Portugal e os portugueses bem sabem do que estamos a falar, ainda que nem sempre tenham sabido tirar as lições certas. Fala-se muito de exportar. Quem o diz tem razão, mas não toda. O certo é que precisamos de criatividade. A globalização precisa de complementaridades e de interdependências. Nunca há fluxos estáveis que não sejam biunívocos. A velha estratégia do transporte, que caracterizou a nossa economia durante séculos não suficiente. Antero de Quental, os seus amigos e António Sérgio disseram-no. De facto, precisamos de fixar riqueza, de criar uma procura estável, de ligar mobilidade e permanência. É por isso mesmo que o debate cultural, sobre a qualidade e a criação, está no centro das nossas preocupações históricas. Durante a visita a Lisboa, na Embaixada de Espanha, o Príncipe das Astúrias fez questão de citar (e muito bem) Eduardo Lourenço – sobre o sonho de um futuro partilhado, neste «magma obscuro de heranças e ritos milenários». Precisamos, no fundo, diz o ensaísta, daquela «espécie de vontade de existir, de ter um destino, uma missão singular por ser então a do Ocidente inteiro, mas também o conhecimento do mundo que já tivemos quando, quase sós, fomos uma imagem antecipada de todos os futuros. Anacronismo? Se se quiser, mas futurante» («Nau de Ícaro», cit., p.71).

 

Guilherme d’Oliveira Martins

Quantos lírios a mais do caule?

 

 

A joalharia da linguagem de Stéphane Mallarmé deu nascimento a uma renovação da poesia na segunda metade do século XIX em França.

 

A utilização dos símbolos para exprimir as verdades escritas, só surgiria para Stéphane, se do pensamento à palavra existisse uma correspondência clara entre poesia e música. Emerge assim a música do poema, como «uma hesitação prolongada entre o som e o sentido» tal como expressou Valéry.

 

À experiência mallarmeana não foi também alheio Fernando Pessoa.

 

Escreve o heterónimo Ricardo Reis «A poesia é uma música que se faz com ideias, e por isso com palavras». A «ideia» assume em Pessoa a função fundamental, e apreende a sensibilidade de Mallarmé no seu transportá-la pela musicalidade. De resto a existência de um exemplar da 3ª edição das Poésies de Mallarmé nas mãos de Pessoa, e por ele as palavras sublinhadas, revelam uma meditação inequívoca do nosso poeta no pensamento refinado e repleto da musicalidade mallarmeana.

 

A influência de Mallarmé é ainda sentida em poetas de hoje como Yves Bonnefoy que tanto utiliza os símbolos herméticos dos estados de alma ao jeito da revolução poética exprimida na modernidade de Mallarmé.

 

Numa quase vontade alquímica de explicar o mistério órfico da terra, morre Mallarmé sem atingir este objectivo, mas não sem que antes solicitasse que se queimassem uma parte dos seus escritos, tal como o fizera Franz Kafka.


Que de lis multiple la tige

Grandissait trop pour nos raisons


Assim Stéphane por entre o meu espanto, ou a famosa «musicienne du silence».

 


Teresa Vieira

MARIA KEIL

 

«Maria Keil, que nos deixou esta semana, é uma referência fundamental na arte portuguesa do século XX. Foi ela que deu ao azulejo moderno o lugar na cidade que antes não tinha. O painel da Avenida Infante Santo “O Mar” ou as decorações no Metropolitano de Lisboa são exemplos fundamentais – em que a sobriedade, o talento e a inteligência se aliam com grande beleza. Não podemos falar do azulejo português no século XX sem referir Maria Keil. Além disso, foi uma das nossas melhores ilustradoras, merecendo uma especial alusão a colaboração que manteve com Matilde Rosa Araújo. Um elevado sentido poético e uma humanidade genuína ligam-se a um equilíbrio estético incomparável. O Centro Nacional de Cultura recorda o exemplo de Maria Keil e a sua entrega à vida e à criação artística».


Guilherme d’Oliveira Martins

A VIDA DOS LIVROS

de 11 a 17 de Junho de 2012

 

«A Vocação Histórica de Portugal» de Miguel Real (Esfera do Caos, 2012) pretende demonstrar que, mais do que um destino histórico, há uma vocação histórica para Portugal - «a de cruzar a nova experiência europeia com a antiga provação imperial, gerando um novo e exemplar espaço político internacional de igualdade e prosperidade – a Lusofonia».

 

A IDENTIDADE NACIONAL
«A identidade nacional, tal como existe hoje, resulta de um processo histórico que passou por diversas fases até atingir a expressão que atualmente conhecemos» - disse José Mattoso, por certo o mais lúcido analista da identidade portuguesa. E a verdade é que a permanência do território europeu e das suas fronteiras, ao longo dos séculos, bem como a importância de uma língua antiga, com projeção intercontinental, falada por mais de duzentos milhões de falantes constituem duas características importantes que devemos lembrar. Temos as fronteiras estáveis mais antigas da Europa, somos a terceira língua europeia mais falada no mundo e o idioma mais usado no hemisfério sul. No entanto, como tem sido salientado pelos estudiosos da questão portuguesa, a nossa identidade tem-se afirmado ao longo dos tempos, desde o século XII, a partir da sua capacidade de se enriquecer através do contacto com outras identidades e outras culturas. A cultura portuguesa sempre se tornou mais rica, abrindo-se, dando e recebendo. Formámo-nos como um cadinho de diversas influências – a partir dos vários povos que foram chegando à finisterra peninsular e se misturaram. E essa qualidade de receber e de se relacionar permitiu, a partir do século XV, a gesta de ir à descoberta de outras terras e outras gentes. Há, assim, um enigma bem presente, que é o de tentar saber por que motivo fomos mar adiante – a «dar novos mundos ao mundo». E se Eduardo Lourenço fala de uma superidentidade, di-lo como uma espécie de compensação, de quem vive dividido entre a recordação histórica de velhas glórias e a consciência presente de dificuldades e limitações. Por isso, os nossos mitos tornam-se importantes, não para explicar, mas para cuidar da sua crítica para obter a respetiva superação. Jaime Cortesão falou do «nosso» humanismo universalista de fundo franciscano, para significar que a dignidade humana está no centro da nossa «aventura». S. Teotónio, companheiro de D. Afonso Henriques e alma dos cónegos regrantes de Santo Agostinho, de Santa Cruz de Coimbra, criou um centro erudito, animado pelo riquíssimo diálogo mediterrânico, renovador do pensamento europeu. Santo António de Lisboa, discípulo de Santa Cruz e companheiro do Pobre de Assis contribuiu decisivamente para renovação teológica e cultural do franciscanismo na Europa e no mundo. Gil Vicente, Sá de Miranda e Camões usaram o tempo e o espírito para pôr a tónica nesse universalismo de ideias e valores. E o Padre António Vieira tornou as «Trovas» de Bandarra uma chamada a um desejo vivo e não morto, transformando a lembrança funesta de Alcácer Quibir num apelo de renascimento e restauração. No entanto, era mais fácil a invocação de um encoberto morto, com raízes fundo celta, trazido da noite dos tempos do ciclo bretão e dos cavaleiros da tábua redonda. Daí a ciclotimia que ainda nos distingue – entre momentos altos e baixos, entre o mistério da história e a dura tomada de consciência das fragilidades, que Alexandre O’Neill resumiu: «Portugal: questão que eu tenho comigo mesmo, / golpe até ao osso, fome sem entretém, / perdigueiro marrado e sem narizes, sem perdizes, / rocim engraxado, / feira cabisbaixa, / meu remorso, / meu remorso de todos nós».

 

A CRISE ATUAL E AS RESPOSTAS
O atual tempo de crise leva-nos a lembrar uma ancestralidade, que obriga a superar o «país sonâmbulo», que Miguel Real recorda, bem como o prefaciador da obra, José Eduardo Franco: a história antiga; o amor-próprio; a sede arreigada de independência; os nove séculos de dificuldades e de vontade; a capacidade de manter uma identidade aberta; a recusa do fatalismo da mediocridade; o sentido crítico que permite ir à luta e não desistir; a consciência dos defeitos e a tentação do ilusório sonho; a contradição de nos acharmos os melhores ou os piores e o sentido trágico que leva à permanência, apesar de tudo. No entanto, estes elementos têm de ser vistos num percurso lento e complexo. Fernão Lopes retrata os alvores da realidade dos portugueses como projeto próprio de autonomia e emancipação, para além do reino político. João de Barros, nas «Décadas», encontra pela primeira vez os portugueses no mundo. «Os Lusíadas» e Camões apresentam a nossa história como uma epopeia digna dos clássicos. Fernão Mendes Pinto ligou a aventura e o drama, o picaresco e a história. A restauração de 1640 obrigou a consolidar a herança histórica própria. O quinto império abriu caminho à consideração do universalismo da dignidade humana, até que os últimos séculos foram afinando a «arte de ser português», agora, mais uma vez em encruzilhada decisiva. E a vontade, como afirmou Alexandre Herculano, tem tido um papel decisivo. «Somos porque queremos». Eis um motivo de esperança e de sentido crítico.

 

PISTAS EUROPEIAS E LUSÓFONAS
Oiçamos Miguel Real: «Se a Europa é o lugar natural de Portugal, o seu lugar histórico é, hoje, a lusofonia (…). Os Descobrimentos fizeram-nos, constituíram o nosso tempo de adultos históricos, selaram a nossa identidade nacional. (…) Neste sentido, devemos sempre juntar ao nosso lugar natural (a Europa) o nosso lugar histórico (a lusofonia), este atualmente mais importante do que aquele, porque conquistado e realizado com sucesso». E diga-se, em abono da verdade, que o europeísmo de que Eduardo Lourenço tem falado e cuja crise profundamente o preocupa não é concebido doutro modo – Portugal é Europa e é universalismo. Lorenzo Natali sempre afirmou que Portugal na Europa traria sempre a sua história, e o cosmopolitismo somar-se-ia ao universalismo. «Deste modo, o máximo de recursos possíveis dos países lusófonos deve ser vazado na educação e na cultura (afirma Miguel Real), pondo a tecnologia ao serviço destas e não o contrário, como a Europa tem feito, desenraizando de valores comunitários o atual homem europeu, um homem tecno-burocrata». E, em síntese: «finalmente, a comunidade lusófona deve constituir um espaço de paz absoluta sob tripla garantia: a da inexistência de guerra entre os seus membros; a da inexistência de guerra no interior do território de cada membro e a da defesa comum, caso um dos seus membros seja atacado. Neste sentido, o regime democrático, por mais imperfeito que seja, deve ser considerado a configuração política constitucional do Estado entre todos os membros da comunidade, obstando à substituição do poder por via militar». A reflexão obriga, no fundo, a ligar uma identidade aberta e uma ligação generosa de caminhos independentes e complementares, sem paternalismos nem saudosismos. A lusofonia é uma teia complexa de diferenças. E, como disse Vieira na sua «Clavis Prophetarum» é uma prefiguração do respeito inteiro pela eminente dignidade de todas as pessoas.


Guilherme d’Oliveira Martins

Sebastião da Gama: e pelo sonho é que vamos

 

A intensidade ímpar que se pode dar a uma linguagem foi e é uma das provas deste poeta de eleição, deste pedagogo de nomeada. E afinal é pelo sonho que vamos, mas por um sonho que também atravessa os próprios angulos bem percepcionados por Mourão-Ferreira ou Régio, ou pela análise de relações intertextuais entre os poemas de Camões e de Sebastião da Gama.

 

Ainda assim, o tocar verdades incorruptas como o soube fazer o Poeta da Arrabida é decantação de quem está conscio que a sua vida seria efémera, mas lucida na aprendizagem também da morte enquanto confiança na vida.

 

Os seus poemas e textos constituem uma voz caldeada por múltiplas vozes que se vivem na imensa juvenilidade e maturidade de Sebastião da Gama que morre aos 28 anos sem desalento.

 

Reclamo aqui Alçada, quando um dia deixou claro, o quanto acreditava no diluvio como acontecimento que permitia ao homem uma aposta nova, um botão por desapertar no fim ou no início da vida.

 

Recordo aqui umas palavras de um texto meu na procura das chaves que abrissem portas de terra ou aço que me ensinassem a ser mineira do mar. Afinal este meu mar, meu mato de ondas, tão cisma, tão vida inteira, tão momento de sentido, tão apaixonada por ele que dei bem forte o abraço ao poeta que me disse

 

Vou pelo Mar e levo enclavinhados

Os dedos num pedaço de madeira.

É da quilha, dos remos, ou do mastro?

Seja de aonde seja, se me ensina

Que não desisto de ir ao Mar

     

                          SEBASTIÃO DA GAMA

                       (Cabo da Boa Esperança)

 

Teresa Vieira

A VIDA DOS LIVROS

de 4 a 12 de Junho de 2012

 

Terminado o Congresso Europeu do Património organizado pela «Europa Nostra» e pelo Centro Nacional de Cultura em Lisboa (29 de Maio a 2 de Junho), publicamos hoje uma reflexão sobre o mesmo e sobre a sua importância na defesa e salvaguarda do património cultural.

 



UM NOVO CONCEITO, UMA NOVA RESPONSABILIDADE

«Gato que me fitas com olhos de vida, quem tens lá no fundo?» (Álvaro de Campos). Quando em 1 de Junho de 2011 entrou em vigor a nova Convenção-Quadro do Conselho da Europa sobre o valor do Património Cultural na Sociedade Contemporânea, assinada em Faro a 27 de Outubro de 2005, consagrando um novo conceito, mais amplo e compreensivo, de património, já não centrado numa lógica retrospetiva, mas sim numa lógica dinâmica e de futuro, incorporando o património material e imaterial e a criação artística, a arqueologia, a arte e a vida, abriu-se um novo campo de reflexão, estudo e ação com repercussões indiscutíveis até no domínio económico. Com efeito, a crise que sofremos revela-nos que um longo ciclo de especulação financeira tem de dar lugar à ligação entre criação cultural, aprendizagem, ciência, inovação, preservação do meio ambiente e dos recursos naturais e desenvolvimento humano. Falar de «cultura contra a crise» não é, assim, uma figura de estilo, mas uma questão de sobrevivência. Os fundamentos económicos necessitam de consistência criativa e inovadora. A cultura não pode ser vista como um luxo, mas como um fator essencial de desenvolvimento. E não estamos a falar de jogos florais ou de exposições de crisântemos e de gerânios, mas de saber de onde vimos, de aprender e de uma economia de e para as pessoas – ou seja, da cultura como criação. O valor da cultura envolve, assim, o património, a herança e a memória, as pedras mortas e as pedras vivas, os monumentos e as pessoas, bem como capacidade inovadora e transformadora. As políticas da cultura tornaram-se centrais. Deixou de fazer sentido a oposição entre conservação patrimonial e criação. Tem de haver equilíbrio entre as diferentes preocupações – com atenção permanente ao que herdamos e ao que legamos. Sem memória destruímo-nos, sem inovação entramos em decadência. Temos de preservar a língua e as tradições, enquanto devemos incentivar a modernidade e a vida. «As Viagens na Minha Terra» de Almeida Garrett mudaram radicalmente o nosso modo de dizer e de escrever – e, no entanto, permitiram também olhar com olhos mais atentos para a herança histórica. A pintura de Amadeo de Sousa Cardoso foi incompreendida por alguns no seu tempo, mas hoje transmite de um modo muito expressivo a nossa própria identidade.

 

CRIATIVIDADE E INOVAÇÃO
A criação artística está cheia de implicações contraditórias, complementares e paradoxais. Nos últimos dias vivemo-lo com especial sentido dramático quando Bernardo Sassetti nos deixou. Músico dotadíssimo, moderno e clássico, espírito desperto para o mundo que muda permanentemente – ansioso por captar os momentos fugazes da vida e da realidade que nos cerca, de um conjunto de sons irrepetível à imprevisível junção de elementos que nos permite usufruir um pôr-do-sol – é um exemplo dessa ligação incindível entre a herança e o legado futuro. E a juventude do intérprete deixou-nos um sentimento de perplexidade e de injustiça. A verdade é que temos presente essa sede de inesperado e de desassossego – que nos obriga a dizer que o património, a música, a arte, as letras, a língua, a imagem e a curiosidade não têm fronteiras.
Também há dias morreu Carlos Fuentes, mexicano universal, um dos grandes romancistas contemporâneos. E que nos disse ele sobre a obra que mais o terá influenciado, «D. Quixote»? «Cervantes não obedecia a nenhuma das leis da época: misturou tudo, fazendo entrar na mesma narrativa o romance pastoril, o romance de cavalaria, o romance picaresco. Sempre o leio como se fosse a primeira vez. E digo para mim: ah! Isto ainda não tinha compreendido». Mutatis mutandis, Fuentes poderia ter afirmado o mesmo do nosso Fernão Mendes Pinto… De um modo magistral, no discurso proferido por Eduardo Lourenço na Culturgest, ao receber o Prémio Pessoa, o ensaísta disse, a propósito de Fernando Pessoa, ele mesmo, o essencial dessa ligação entre sonho e interpretação, entre mito e realidade: «Ter sonhado esses sonhos não libertou Pessoa da sua solidão e tristeza. A sua poesia só as inscreverá no céu literário onde as partilhamos de graça. Mas ajudou-nos a perceber, como ele, que somos puros mutantes, descolando para formas inéditas de vida, para viagens sem itinerário. Com Caeiro fingimos que somos eternos, com Campos regressamos dos impossíveis sonhos imperiais para a aventura labiríntica e imprevisível do quotidiano moderno, com Reis, encolhemos os ombros diante do Destino, com “Mensagem” sonhamos com uma pátria de sonho para redimir a verdadeira». E, não por acaso, Eduardo Lourenço lembrou nessa mesma ocasião a memória de António Tabucchi, porque este fez da heteronímia pessoana uma chave da modernidade atual, percebendo, como muito poucos, que a diversidade é a representação da criatividade e da mudança, lugar múltiplo insuscetível de interpretações simplificadas, unilaterais ou redutoras. Mas o escritor de «Portugal como Destino» foi mais além, ao lembrar também Agustina Bessa-Luís, sempre atenta à emergência de contradições e paradoxos, vendo a vida pelo avesso, para poder compreendê-la como realidade apreensível sob prismas diversos, numa espécie de pluralidade onírica, que faz entrecruzar mitos e realidades.

 

PATRIMÓNIO E MEMÓRIA
O património cultural das construções é, assim, uma pequeníssima parte do todo interpretativo a que temos de atender. Não viu Ruben A., em «A Torre da Barbela» a nossa história como puro mito de sonhos sobrepostos? E no entanto aí está o melhor apego a um património vivo, que historicamente, se projeta em nós. Não poderia, assim, ser mais oportuna a realização em Portugal do «Congresso Europeu do Património», nos dias 29 de Maio a 2 de Junho, culminando na cerimónia de entrega dos prémios europeus nos claustros do Mosteiro dos Jerónimos a 1 de Junho. Trata-se do mais importante evento anual europeu no campo da proteção e salvaguarda do património cultural, realizando-se pela primeira vez entre nós. É uma iniciativa da «Europa Nostra» e do Centro Nacional de Cultura, mobilizando meio milhar de participantes, entre os quais se encontram os principais protagonistas no campo da defesa do património cultural. A «Europa Nostra» representa 250 organizações não-governamentais, mais de 1500 associados individuais em 50 países. É uma instituição privada pan-europeia, que, desde 1963, pugna pela defesa do património cultural em estreita articulação com a UNESCO, o Conselho da Europa e a União Europeia. Em Portugal tem diversos membros, contando com as mais prestigiadas organizações de defesa do património, sendo oficialmente representada pelo Centro Nacional de Cultura, graças ao prestígio e ao empenhamento de Helena Vaz da Silva. E estou em crer que esta não vai ser mais uma reunião como tantas outras. Falar-se-á da responsabilidade da cultura em tempo de crise – para além de ilusões ou facilidades.

 

Guilherme d’Oliveira Martins