Saltar para: Posts [1], Pesquisa [2]

Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

PRELÚDIO A UMA DECLARAÇÃO DE DEVERES

 

 

Em 1943, ano em que viria a morrer,Simone Weil, então em Londres com a France Libre, escrevia o "Prelúdio à Declaração dos deveres para com o ser humano", que Albert Camus publicaria em 1949, na Paris do pós-guerra, quando dirigia, na Gallimard, a colecção "Espoir", pondo-lhe o título de "L´Enracinement": "O enraizamento é talvez a necessidade mais importante e mais desconhecida da alma humana. Uma das mais difíceis de definir.Um ser humano tem por raiz a sua participação real, activa e natural na existência de uma colectividade que conserva vivos certos tesouros do passado e certos pressentimentos do porvir. Participação natural, quer dizer, trazida automaticamente pelo lugar, o nascimento, a profissão, o meio humano. Cada ser humano precisa de ter muitas raizes. Precisa de receber a quase totalidade da sua vida moral, intelectual, espiritual por ntermédio dos meios de que naturalmente faz parte". É a este meio multirradical que chamo cultura: duma pessoa, duma sociedade, duma civilização. Já aqui o disse, que a consciência da nossa identidade própria, e o reconhecimento do outro e da diferença são condições necessárias do diálogo. O Estado, disse Bourdieu, lapidarmente, "é uma ideia"... Quiçá uma ideia abstracta e jacobina - já o afirmaram - que se insttucionalizou e se tornou no centro soberano da atribuição de direitos e deveres, regalias e punições. O seu aparelho institucional vai tentando apropriar-se do sentimento patriótico para cimentar a sua hegemonia, com que pretende substituir a fidelidade à Pátria (que é uma qualidade do amor) -  e a tradição que nos faz descobrir, no passado comum, as raizes da nossa comunhão presente - pela obediência às orientações e imposições dos interesses presentes. Na sombra da conspiração do Estado está sempre - aliado, manipulador, cúmplice, especulador ou simples eminência parda - o Dinheiro. Tal como o Estado, escreve ainda Simone Weil, "o Dinheiro destrói raizes em qualquer lado onde penetre, substituindo todas as motivações pelo desejo de ganhar". Ou, citando de memória Adriano Moreira, "substitui-se o valor pelo preço". Antes de recordar Zygmunt Bauman, numa reflexão sobre o que covencionalmente se vem chamando "crise de valores", esclareço que, ao referir-me à descoberta das raízes da nossa comunhão presente no passado comum, não penso em "purezas" étnicas, nem em qalquer "superioridade" de raça ou de valores. Penso sim, como já disse, na "nossa vida antes de nós", numa história de encontros e desencontros, que nos moldou uma identidade forte, cuja consciência nos faculta o poder de nos abrirmos ao mundo. O desenvolvimento actual da historiografia, a globalização da investigação histórica, ajudam-nos a aprofundar, a enraizar, a nossa identidade, a redescobri-la no contexto das outras e no olhar dos outros sobre nós. Esta consciência de que existimos em relação com o que fomos e com os outros é necessária como contraponto à tendência hodierna que Zygmunt Bauman chama "a privatização da vida em geral". Tenho reflectido sobre o apagamento das fronteiras entre a intimidade e a publicidade, designadamente na chamada "comunicação (?) social": o despudor, o descaramento com que se atiram para o pasto das massas, quer episódios dolorosos das vidas, quer comportamentos que, decentes ou indecentes, só podem ser humanamente compreendidos pelos próprios intervenientes ou, quando muito, na solidariedade das comunidades a que pertencem. Chegamos assim ao ponto de, a partir da vida das pessoas, com o que necessariamente tem de prazenteiro e doloroso, de feio e de bonito, se fabricarem produtos de consumo mediático. Na sociedade de consumo,também as pessoas são objectos,são estimadas pelo preço, não pelo valor. Assim compreendi, finalmente, que a razão porque se consome a privacidade dos outros transformada em artigo para venda, é a necessidade de iludir a solidão a que conduz a privatização geral da vida: porque se rejeita o enraizamento na solidariedade, a responsabilidade pelo outro, sem a qual nenhuma relação humanamente digna é possível. A redução da pessoa ao indíviduo, da moral ao "chacun governa-se" é diametralmente oposta à moral que Lévinas tão bem define como "existir para o outro". Na nossa cultura,diz-se mandamento novo: amai-vos uns aos outros... Recorro a uma citação de Bauman: "Isolados dos que estão ao seu lado. Privatizados. Compartilhando o espaço, mas não os pensamentos ou os sentimentos - e agudamente conscientes de que, com toda a probabilidade, tampouco partilharão o mesmo destino. Esta consciência não alimenta necessariamente ressentimento ou ódio, mas traduz indiferença e reserva. ´Não quero envolver-me ´,diz-se, para calar emoções que nascem ou asfixiar no ovo qualquer relação humana,íntima e profunda,do género ´para o melhor e o pior,até que a morte nos separe ´. Estão na moda fechaduras,cadeados e alarmes cada vez mais engenhosos. Não em virtude da sua utilização prática,eficaz ou conjectural, mas pelo seu simbolismo, pois servem para delimitar a fronteira do eremitério onde não queremos que nos incomodem e significar a decisão de que ´Por mim,o que está lá fora bem pode ser um deserto."  Este encerramento de si, o receio dos outros, o medo do compromisso resultam de uma incerteza crónica, dum andar em perdição pela floresta sempre mutante das novidades noticiosas e publicitárias que nos bombardeiam. Assim se vai perdendo a densidade interior,a consistência dos valores e das crenças,a esperança no futuro ou na eternidade,tudo se reduz ao desejo imediato. À durabilidade vem sucedendo a precaridade. O Estado tentacular e controlador,a "comunicação social" e a publicidade, condicionantes da opinião, do gosto, da cultura em que vivemos, a grande indústria e distribuição, impondo sistematicamente produtos e "gadgets" sempre novos e, desde logo, já obsoletos... Onde e como poderemos ser livres e como poderá a nossa consciência respirar? Tudo parece cada vez mais precário: o emprego e as relações humanas em geral, a conjugalidade e o amor, os valores mobiliários e imobiliários, a arte que se faz e desfaz em função de um espaço ou de uma ocasião, a segurança social, as dietas de emagrecimento, as receitas para um coração saudável, sei lá, as modas todas, pois que em modas nos movemos... Não podemos, todavia, voltar ao passado, não é possível encarar o futuro, nem o presente, com saudosismos.Será pela atenção aos sinais do tempo - alarmes - que teremos de despertar a consciência para o tempo e procurar o modo. Para não cairmos no barranco de cegos.
 
Camilo Martins de Oliveira

Júlio Dinis

 

 

- Mas então o que pede de nós este caro sr. Henrique?

- Nem mais nem menos do que uma das nossas pequenas.

O conselheiro relanceou um olhar para a Madalena (…) a hipótese do casamento da filha com Henrique, de modo algum lhe era antipática.


Madalena, que percebeu no gesto do pai a ideia que ele tivera, quis tirá-lo da ilusão e disse:


- Há-de fazer-me falta a amizade de Cristina.


- Ah! – disse o conselheiro, com um sorriso um tanto contrafeito. – Então quer-nos roubar a nossa Cristina, sr. Henrique?


- É apenas uma restituição que peço, sr. Conselheiro, porque não me posso resignar a viver sem coração.


(…) O conselheiro disse jovialmente para a sobrinha:


Ora venha cá, venha cá, que temos muito que falar. E, passando-lhe a mão por debaixo do queixo, para a obrigar a fitá-lo, continuou:


(…) – Surpreender a gente com uma notícia de tal ordem! Ainda há pouco demitido um ministério de bonecas, e já um golpe de estado desta natureza!

Ora dê cá um beijo, enquanto não tenho quem me peça explicações por os que lhe quer roubar.


E o conselheiro, beijou-a nas faces tingidas pelo pejo e pela alegria.


Depois, voltando-se para Henrique, acrescentou sorrindo:


- São os penúltimos.


- Os penúltimos? – disse D. Vitória, rindo – ora essa! Então para quando ficam os últimos?


- Para quando a vir com a grinalda de noiva.

 

Fechemos pois aqui a história, dando apenas sucinta conta dos acontecimentos ulteriores.

 

Estive tentado a dizer que sob a direcção dos talentos e aptidões do novo estadista, se locupletou a fazenda pública, prosperou a agricultura e a indústria, refulgiram as artes e as letras; e que Portugal como a Grécia, sob Péricles, causou o assombro das nações do mundo.

 

Mas receei que, fantasiando no nosso país um governo fecundo e próspero, a inverosimilhança do facto prejudicasse outras narrativas (…) resolvi pois ser franco, declarando que sob a direcção do conselheiro e dos seus colegas, Portugal regeu-se como se tem regido sob as dúzias de ministérios, que nós todos havemos já conhecido.

 

O conselheiro já ministro voltaria, de quando em quando, à quinta para retemperar o ânimo, exausto das fadigas parlamentares da capital, no seio da sua família, e volta melhor.

 

A quinta (…) à qual andam ligadas suaves recordações, foi transformada por Madalena numa habitação de recreio, onde as duas famílias, celebram festas em comum.

 

Estes melhoramentos vieram confirmar o título de que Madalena havia muitos anos estava de posse.

 

E hoje é ela ainda entre a gente do povo conhecida pelo nome de «Morgadinha dos Canaviais».

 

 

Teresa Vieira

 

 

PS - Joaquim Coelho foi médico e escritor na transição entre o romantismo e o realismo. Sob o pseudónimo de Júlio Dinis, figura este escritor necessariamente na lista dos grandes autores que todos têm de conhecer. Destacando-se numa prosa limpa e ímpar, Dinis atravessou o mundo pelo prisma dos sentires sadios que o amor e a esperança cuidam. Morre aos 32 anos e é minha a vaidade de aqui o recordar hoje no ar que o mereça neste século XXI.

LONDON LETTERS


Atlee Lab Gov 1945-51

 

 


O desfecho eleitoral permanece poderoso nos efeitos estratégicos. − Ah, c’est la politique! Tal qual o choque do afastamento de Winston Churchill da liderança britânica, após a vitória dos Aliados na II Guerra Mundial (1939-45). − Hmm, what exactly happened? Tudo ocorre no Verão de 1945, já depois do suicídio do III Reich num bunker de Berlin e em vésperas de Harry Truman vingar Pearl Harbour em Hiroshima. O voto popular entrega a premiership a Mr. Clement Richard Attlee.

Há mudanças no Number 10 de Downing Street, em London. As ondas do impacto são imensas, tanto no plano interno como nas relações internacionais, envolvendo desde a criação do National Health Service e a First Parliamentary Bill até ao programa atómico e à descolonização da Índia e Burma. Pior: “A deliberate act of socialist aggression” pusera-se em marcha. O Lab Gov edifica o Welfare State – aquele que hoje ameaça ruir sob o triplo ataque da parasitagem administrativa, dos abusos do sistema e da estranhíssima bandeira do austerity business.

“A decent way of life”, do berço à tumba, fora a revolucionária proposta eleitoral do movimento trabalhista. Daí a vitória das políticas sobre as palavras, como se infere dos ‘Attlee Papers’ reunidos na Bodleian Library (Oxford). Se o herói do dia é um enigma, como afirmam amigos de Westminster, não sei. Uma sua insuspeita admiradora, Lady Thatcher, di-lo “all substance and no show”. Mas estes são políticos com uma espessura que as atuais elites dirigentes de todo não possuem. A política do tempo diferia da colocação dos ‘amigos’ de partido ou dos mercenários de ocasião dentro do fluxo de caixa orçamental e governar as instituições (locais ou nacionais, públicas ou com dinheiros públicos) era algo intrinsecamente ligado às coisas humanas. Para além de o Lab PM reconhecer que “[i]t is dangerous to play politics with the Budget” (1945).

O programa político trabalhista é diverso do dos rivais domésticos e dos homólogos continentais. Com poucas palavras à nação e a ferina hostilidade dos barões de Fleet Street, o Cabinet cuida metodicamente das prioridades e distingue the public ends and the private means enquanto nacionaliza 3/5 da economia. O Labour Government 1945-51 realiza como que o equivalente institucionalista de uma revolução democrática radical. George Orwell escreve 1984 e só efetivamente nos anos 80 surge Mrs. Margaret Thatcher a desmantelar tal aparato de poder (1979-1990).

Quanto a Mr. Attlee, esse, entra nas fileiras da aristocracia e da House of Lords pela mão de Elisabeth II e como 1st Earl Attlee. O título da Peerage of the United Kingdom é especialmente criado para si em 1955, quando recebe o Garter e é feito Viscount Prestwood, de Walthamstow, no County of Essex. A silver bullet is always possible!

 

 

No século XXI, contabilizam os estatísticos, a maioria dos britânicos vê Winston Churchill como o maior político do século XX e Clement Attlee como o seu melhor primeiro-ministro de sempre. Terrible indeed é ser socialista, da espécie dos coerentes, consequentes e competentes. Um jardineiro inglês, claro!

 

St James, 21st August

 

Yours very sincerely,

 

V.

A VIDA DOS LIVROS


de 20 a 26 de agosto de 2012

 

«Tentar Perceber» de Vasco Pulido Valente (INCM, 1983) reúne diversos ensaios onde o autor se ocupa da interrogação fundamental sobre a identidade portuguesa, procurando superar muitos dos lugares comuns e simplificações que amiúde se ouvem e se repetem. Sobretudo no tocante à nossa identidade há um desenvolvimento crítico das conceções provindas de Herculano, Oliveira Martins, António Sérgio e Orlando Ribeiro, considerando que o Estado precedeu a nação, não podendo compreender-se a evolução até aos nossos dias de Portugal e a continuidade nacional sem a compreensão dessas circunstâncias.

 

 

PORTUGAL – TERRITÓRIO ABERTO AO MUNDO
Portugal é um território que, ao longo dos séculos, foi ponto de chegada e de partida, «onde a terra se acaba e o mar começa» (Lusíadas, III, 20). A hospitalidade que tantas vezes é referida como característica da atitude portuguesa tem a ver com essa dualidade – que as dificuldades económicas condicionam. Estamos perante uma cultura de diálogo, de encontro, mas igualmente de confrontos e de paradoxos. Eduardo Lourenço parte daí na sua psicanálise mítica do destino português, publicada no fim dos anos setenta em «Raiz e Utopia». A tradição e a modernidade coexistem, ora como resistência à mudança, ora como visionarismo imposto pela sobrevivência – a lembrança de glórias passadas procura compensar as medianias presentes. O caso do ambíguo sucesso de Fernando Pessoa no século XX é bem ilustrativo dessa tensão. O poeta tornou-se, nos dias de hoje, um símbolo do Portugal moderno, mas quando «Orpheu» apareceu, em 1915, muitos dos comentários ouvidos na opinião publicada da altura consideravam, no mínimo, que se estava perante um grupo marcado pela loucura. Anos volvidos, os heterónimos de Pessoa facilitam uma interpretação suficientemente ampla das suas ideias de modo a simbolizarem a unidade e a heterogeneidade de uma cultura capaz de mimetizar a modernidade. Como território aberto à circulação do mundo, Portugal é um espaço que se enriquece pelas contradições e complementaridades. Orlando Ribeiro teve a suprema virtude de proceder à consideração das questões geográficas, limpando-as de fantasias e erros. Foi, assim, o melhor intérprete do diálogo entre a terra e as gentes, citando a autoridade de Pierre Birot para caracterizar a individualidade portuguesa: «Assim puderam longamente amadurecer, ao abrigo de fronteiras que são as mais velhas da Europa, os traços próprios da alma portuguesa e que a individualizam tão nitidamente em relação aos seus vizinhos peninsulares. De um lado, um povo orgulhoso e exaltado, pronto para todos os sacrifícios e para todas as violências que lhe inspirará a preocupação da dignidade; de outro lado, mais melancolia e mais indecisão, mais sensibilidade ao encanto das mulheres e das crianças, uma humanidade verdadeira onde se reconhece um dos tesouros mais preciosos do património da nossa velha Europa ocidental». O ocidente da Península Ibérica tornou-se diferente, autónomo e dotado de uma personalidade própria graças à história do Estado que precedeu a nação – e assim a geografia, a vontade das gentes e a frente marítima atlântica completaram esse fator decisivo. A Europa marca-nos porque somos cabo dela, o Atlântico dá-nos o espaço da descoberta e do desconhecido e o Mediterrâneo liga-nos às raízes antigas, centrípetas e centrífugas.

 

TENTAR EXPLICAR PORTUGAL
É sempre difícil e perigoso fazer simplificações. Andando de norte para sul, de leste para oeste em Portugal, partindo para as ilhas atlânticas, topamos, a cada passo, grandes diferenças, mas há um fundo comum de movimentos internos, que levam um minhoto e um algarvio a encontrar-se naturalmente, do mesmo modo que um alentejano mais ensimesmado ou um beirão voluntarioso depressa se tornam familiares próximos por muito que façam um esforço para encontrar as suas diferenças. A mesma língua, o mesmo Estado, a velha conscrição militar, a ânsia por um lugar no funcionalismo público – tudo isso constituiu uma forte rede que congregou duravelmente os portugueses. Foram tentadas várias explicações para justificar a individualidade de Portugal – ora românticas ora positivistas. Historiadores influentes, como Herculano e Oliveira Martins, disseram que Portugal é uma «nação inteiramente moderna», reconhecendo, contudo, as suas «raízes antigas». Na análise de Vasco Pulido Valente para os dois últimos séculos encontra-se uma homogeneidade político-cultural centrada no Estado-nação, que explica, em regra, que as lutas sociais não tenham assumido em Portugal «um elevado grau de virulência, nem durassem muito tempo». Tendo o Estado gerado a Nação, o centralismo desfavoreceu o autogoverno de comunidades locais ou regionais organizadas. Um Estado forte, atuante em momentos decisivos (formação da nacionalidade, descobrimentos, Restauração, reconstrução no terramoto) foi capaz de subordinar a sociedade aos seus objetivos estratégicos, o que permitiu a um país pouco povoado e com óbvias debilidades económicas construir um império universal pioneiro no contexto europeu. O centralismo do Estado favoreceu, ao longo do tempo, o paradoxo da estabilidade e da vulnerabilidade aos pronunciamentos militares (muito nítida no liberalismo do século XIX). A ausência de tensões étnicas ou linguísticas, impediu, todavia, a criação de um Estado tirânico ou sacralizado. E, ainda segundo a síntese correta de Pulido Valente: «a específica tragédia do destino português está em que ele não refletiu essencialmente a dinâmica própria de uma sociedade (sem independência perante o Estado), mas antes de mais a simples capacidade de assaltar e ocupar a máquina deste último» («Tentar Perceber», p. 358).

 

OS HIBRIDISMOS GEOGRÁFICOS E SOCIAIS
A dimensão reduzida do território português suscita a proliferação de hibridismos geográficos e sociais. A mobilidade das populações e as influências entre regiões diferenciadas conduzem a que as explicações unívocas se tornem sempre imperfeitas e incompletas. Lembremo-nos, por exemplo, da intuição de António Sérgio sobre a importância do sal e das atividades marítimas, completada e corrigida por Virgínia Rau, deixando nítida a exigência da ponderação da complexidade das explicações. Uma pista de investigação, por muito sedutora que seja, obriga sempre à prova, que é tanto mais difícil quanto maior for o número de variáveis. Por isso, Orlando Ribeiro demonstrou que estão «entrelaçadas as condições geográficas e a formação de um corpo político de expressão original». Se é verdade que Herculano, Oliveira Martins, Alberto Sampaio, António Sérgio, Jaime Cortesão ou António José Saraiva deram realce a certos aspetos sociais e económicos, a verdade é que a moderna investigação centrada na complexidade, e voltando a dar atenção à história política, tem avançado no sentido da pluralidade dos fatores e das explicações. Somos porque queremos, mas também porque soubemos jogar com diversos elementos – e esse continua a ser o desafio difícil para combater a mediocridade e a irrelevância. Se um certo providencialismo resulta da omnipresença do Estado, da inexistência de divergências étnicas ou religiosas e da fragilidade da sociedade civil e da falta de um autogoverno local, a verdade é que somos chamados a mobilizar o melhor que temos, certos de que sem ilusões temos de ser muito mais exigentes na qualidade da organização, na educação, na cultura e na ciência, como europeus e como repartidos pelo mundo, sabendo assumir o humanismo universalista com inteligência.


Guilherme d’Oliveira Martins

UMA CIVILIZAÇÃO DE ROBÔS?


Georges Bernanos

 

Uma segunda reflexão sobre "O Amor das Três Laranjas" e Prokofiev leva-nos à consideração da arte num contexto político totalitário. Podemos dizer que, pragmaticamente, os sistemas políticos e os detentores do poder têm uma vocação totalitária. Por isso, é tão importante a institucionalização de contra-poderes, como também o respeito e defesa da liberdade de expressão. Esta, por disparatado que nos pareça, aqui e ali, o seu fruto tem pelo menos sempre uma virtude: interroga-nos. Prokofief saiu da Rússia em que já se anunciava o movimento "prolkul", a imposição pelo Estado, dos cânones da cultura do proletariado. Algumas décadas mais tarde, em 1942, Mao Tsé Tung afirmaria: "Exigimos a unidade da política e da arte, a unidade do conteúdo e da forma, a unidade de um conteúdo político revolucionário e duma forma artística tão perfeita quanto possível". Será preciso explicar algo mais? Em contraponto à tentação totalitária e ao centralismo autoritário, temos a tradição anarquista que, curiosamente, na cultura europeia,vai muitas vezes buscar a sua inspiração ao Evangelho. Do próprio "pai" de um socialismo anarquista que tanto influenciou, entre nós, uma certa geração coimbrã, disse o jesuíta Henri de Lubac, teólogo conciliar, que "exegeta de fantasia, Proudhon é, na nossa literatura, um dos grandes representantes da tradição bíblica"...  Adversário do poder estabelecido, fosse clerical ou estatal, em nome da liberdade e justiça social, é todavia Proudhon quem diz: "Jesus é por excelência o tribuno dos povos... ...É por aí que foi, no seu tempo, e que permaneceu como expressão mais alta do génio popular, quer práctico quer moral". Ou ainda: "A luz que ilumina os homens incendeia-me!" Mas não era apenas a autoridade dos poderes trdicionalmente estabelecidos que ele combatia mas a própria essência do poder como regulador de cima para baixo. Veja-se: "O meio mais seguro de fazer o povo mentir é estabelecer o sufrágio universal..." O ideal proudhoniano,o anarquismo,"é a ordem sem poder". E não era assim também para João da Ega? Não nos ocorrerá logo que Maurras se tenha inspirado em Proudhon, mas é Maurras quem escreve: "Um César anónimo e impessoal, todo poderoso, mas irresponsável e inconsciente, entretem-se a molestar os franceses desde o berço. Viva só ou queira associar-se, o cidadão francês sabe que vai encontrar, a cada passo do seu caminho, o César Estado, o César burocrático que lhe impõe ou propõe as suas directivas com as suas proibições,ou as suas mercadorias com os seus subsídios"... O chefe de fila da Action Française, na defesa de um Estado nacionalista e forte e no ataque àquilo que, para ele, é a decomposição da França pela democracia, deita mão de argumentos que hoje ainda ressoam nos discursos ideológicos e políticos dos nossos neo-liberais: "O Estado francês,que hoje se mete em tudo, mesmo a fazer escolas e a vender fósforos e que,consequentemente, faz tudo infinitamente mal,vendendo fósforos ininflamáveis e distribuindo um ensino insensato, o Estado é, ele mesmo, incapaz de desempenhar a sua função de Estado..." e continua fustigando o facto de se sujeitar a autorização prévia a iniciativa ou a solução de questões locais ou vicinais, por se considerarem para tal incompetentes os cidadãos comuns, os mesmos que, todavia, são chamados a pronunciar-se, através das consultas eleitorais, sobre o regime político e económico do Estado, ou a "orientar pela sua escolha, pelo seu voto, a legislação, a alta justiça, a diplomacia, a organização militar e naval do país inteiro!"


Entre a utopia anarquista da "ordem sem poder" e a deriva totalitária da formatação estatal da vida de todos, a questão da organização da "polis", sobretudo a do convívio de consciências individuais soberanas, ainda não terá encontrado, apesar dos méritos de soluções como as dos sistemas orgânicos e estados corporativos, resposta mais equitativa do que a da democracia participativa. Como conceito. Na verdade, a manipulação do funcionamento dos sistemas representativos por grupos de interesses que, no menos mau dos casos, tratam comercialmente o comportamento político dos cidadãos, desafia-nos a um exercício contínuo de aperfeiçoamento dos espaços e mecanismos de participação de todos na vida da cidade. Mas tal reflexão não pode circunscrever-se à, nem sequer perspectivar-se pela, consideração de critérios das ciências políticas e sociais, como se o mero exercício de organização e mecânica de entidades, poderes e interesses, fosse inspirador e condicionante. Não. Ela deverá primeiramente incidir sobre a pessoa que, sendo necessariamente um ser em relação, é sempre uma referência plural, "as pessoas". Ora o ecosistema das pessoas, isto é, o meio ambiente em que vivem e se movem, é a cultura. Neste sentido,a cultura contemporânea apresenta facetas assustadoras, desde o domínio da propaganda política e religiosa (v. g. os fundamentalismos) até à vulgaridade do consumerismo. No seu libelo "La France contre les Robots", Georges Bernanos, em 1947, alertava para o perigo de nesta civilização do consumo,"o desenvolvimento das máquinas vir a desenvolver de maneira inimaginável o espírito de cupidez". E ainda: "Para as colossais máquinas de slogans, o objectivo não é convencer, operação demasado delicada, mas destruir sistematicamente o espírito crítico, de o reduzir a nada - ou, pior ainda, de o ridicularizar, desonrar, como se ele fosse realmente uma forma inferior, suspeita, quase inconfessável, da actividade intelectual". Hoje,talvez devessemos perguntar-nos se o ensino por aí dispensado não pecará por um excesso de fornecimento de noções e imagens,a consumir e debitar nos exames, e por uma carência de formação do espírito crítico e de estímulo do esforço pessoal.
   
  
Camilo Martins de Oliveira

HERMAN HESSE

 

"Entre os seres humanos, mesmo se intimamente unidos, permanece sempre aberto um abismo que apenas o amor pode superar, e mesmo assim somente como uma passagem de emergência."

 

Herman Hesse é, nomeadamente, a par de Thomas Mann, o escritor mais lido em língua alemã.

 

Em 1923 este escritor alemão naturalizou-se suíço, tendo vivido em Tesino os últimos quarenta anos da sua vida. De 1960 a 1970 os movimentos pacifistas ajudam a encurtar a distância com que os helvéticos interpretavam Hermann Hesse na qualidade de escritor alemão.

 

Em 1946 o prémio Goeth toca-lhe apenas distanciado uns meses do Nobel da Literatura que igualmente lhe foi atribuído.

 

Hesse também se apaixona pela pintura que fixou a Suíça nas suas imensas aquarelas. Anteriormente uma viagem à India marca definitivamente a sua espiritualidade já distante daquela que quase o fizera pastor, como indicara o seu percurso seminarista. A partir da sua própria revolta pessoal, procura então criar a sua própria filosofia, tendo-se já afastado definitivamente da família e criticado activamente o militarismo.

 

A poesia foi percurso muito grato também a Hermann Hesse entendendo-a como forma de chegar ao núcleo da própria natureza das realidades e propõe

 

A cada chamada da vida o coração

deve estar pronto para a despedida (…).

Dentro de cada começar mora um encanto

que nos dá forças e nos ajuda a viver.

 

E alerta-nos para as várias proximidades e formas de adeus 

 

O apelo da Vida nunca tem fim...
Vamos, Coração, despede-te e cura-te!

 

Creio que ao reler Knulp, romance lido numa edição da Difel, encontrei a transição de um homem para a sua vida adulta, sempre em busca do amor e da própria existência, interpretando o passado até chegar ao que podia ter sido de si mesmo num prenúncio diferente.

 

Na longa caminhada de Karl Eberhard Knulp julgo ter entendido a razão da frase de Hesse  

Ama-me quando eu menos o merecer, porque será nessa altura que mais necessitarei".

 

Assim também um sentido de vida, um regresso à terra natal, leva Knulp à fragilidade de a si próprio se oferecer abrigo; de afinal preocupar-se para que cada um percorra o seu caminho, e que as certezas residam nas não demasiadas promessas.

 

 

Teresa Vieira

London 2012 Olympic Games

 

O símbolo é algo indecifrável no seu trapezismo numérico. − Ah, la matematique! Tal qual a infâmia de, pela primeira vez na história, se aceitarem mulheres em todas as disciplinas desportivas. − Hmm, well, why not? Já a atmosfera londrina deste Verão é indelevelmente vibrante e a corrente dos acontecimentos fez dos ‘London 2012’ senão o melhor, pelo menos um dos mais memoráveis Jogos Olímpicos da contemporaneidade. A XXX Olimpíada é um troante hino ao lado positivo do multiculturalismo e ao British way de estar no mundo: serious, but not too serious.

 

Que a coligação dos conservadores com os lib-dem não funciona, as simpatias pelo continente soam a singularidades financeiras da City ou Nick Clegg e o Labour andam desaparecidos em combate, são meros detalhes na big picture que é a Grã-Bretanha elisabethana dos tempos modernos. O PR style de David Cameron em Downing Street pouco denota de uma conjuntura económica com traços da austeridade envolvente dos anteriores jogos olímpicos na London de 1948. No Outono desse ano, mas na cidade de Zurich, Mr. Winston Churchill proferia um discurso a apelar aos ‘United States of Europe’. Usando do poder tribunício entre “a babel of jarring voices” dos vencedores e “the sullen silence” dos vencidos da II Guerra Mundial (1939-1945), o líder do free World defendia então o impensável sob o imperativo da necessidade: “If Europe is to be saved from infinite misery, and indeed from final doom, there must be an act of faith in the European family and an act of oblivion against all the crimes and follies of the past”.

 

Os ‘London 2012 Olympic Games’ trully, a fantastic job – contêm muitíssimo da fé britânica acolhida na ‘Commonwealth of Nations’, cujo testemunho Harry of Wales descontraidamente entregou a Usain Bolt durante a sua visita de Março à Jamaica. O sprinter ganhou o que havia a ganhar no olimpismo; um win-win gold acompanha agora a bandeira viajada para o Rio de Janeiro, com “aquele abraço”. À celebração do Queen’s Diamond Jubilee no Thames seguiu-se o entusiasmo das ruas e jardins, de St. James a Hyde Park até ao verde regressado a Stratford, tudo a emoldurar a paixão desportiva nos estádios e a estimular um vivo debate sobre the legacy. O projeto iniciado há sete anos pelo Governo de Tony Blair reconfigurou East London e re-instilou os valores individuais da comunitária visão olímpica. Assim se semeia futuro, sob a ambição de inspirar uma nova geração de elite pautada pelo fair-play.

 

Os sports and games são aqui uma instituição social: afirmam a busca da excelência, estruturam o contacto interclassista e estabelecem os padrões da corrida ao ouro. Feliz estará o barão Pierre de Coubertin quanto ao sotaque britânico do faster–higher-stronger recuperado nos ‘Jeux Olympiques’ de 1896. A arena londrina tem os seus heróis e nem faltaram as lágrimas de um dopado logo até pelos media esquecido. Prova após prova, verdadeiramente glorificando o motto olímpico do citius-altius-fortius, atletas do mundo inteiro emocionaram na competição pelo better and better dos resultados. Mas o registo dos National Archives tem uma outra heritage: Londres comemora condignamente os 400 anos dos “Cotswold Games” e da decisão de Robert Dover erguer, em 1612, “an annual sporting fair that honoured the ancient Games of Greece”. Se falta ainda a Mrs. Hilary Clinton reeditar o aviso de os seus compatriotas por vezes deverem abster-se de viajar para o exterior, de averbar é também que, em 1648, observando Charles I, o Long Parliament e a alva da primeira revolução atlântica (1647-49), as gentes locais aprendiam a importância de “how to keep your head in a crisis”.

 

 

St James, 14th August

 

Yours very sincerely,


V.

A VIDA DOS LIVROS


de 20 a 26 de agosto de 2012

A edição pela D. Quixote das Obras Completas de Urbano Tavares Rodrigues constitui um acontecimento importante, que permite ao leitor português ter contacto com a obra de um autor multifacetado, representativo de uma corrente de pensamento e de escrita que se insere na convergência complexa do melhor naturalismo português, mas que compreende ainda o neorrealismo, um certo existencialismo, além da influência de Fernando Pessoa, sobretudo no caso de Álvaro de Campos. Não podemos esquecer, contudo, uma relação muito especial que existe entre o autor de «Bastardos do Sol» (1959) e o extraordinário escritor de «Gente Singular», Manuel Teixeira Gomes, que Urbano Tavares Rodrigues tem persistentemente procurado resgatar de um injusto esquecimento.

 

Dordio Gomes, Sem título, CAM, F. C. Gulbenkian


DIÁLOGO COM A LITERATURA

Urbano Tavares Rodrigues representa na literatura portuguesa a compreensão da importância de uma renovação baseada na necessidade de atualização do naturalismo e do simbolismo pela compreensão inovadora do modernismo. Preocupado com os temas sociais e declarando expressamente as influências ideológicas do marxismo, o escritor procura, porém, abrir novas perspetivas, que ultrapassam as fronteiras de escola. E é o seu conhecimento da melhor literatura portuguesa do início do século XX, pela qual alimenta uma evidente afeição, que lhe favorece um reconhecimento próprio e um lugar especial na contemporaneidade. Em «Os Cadernos Secretos do Prior do Crato» (2007) escolhe um herói de causas perdidas, mas que não quer desistir, apesar de todos os impedimentos e dificuldades. E aí encontra um ideal que permanentemente choca com a realidade. A obra é, a um tempo, autobiográfica e de reflexão sobre a mudança do mundo e sobre a procura de um ideal. O heroísmo e a sensualidade encontram-se e completam-se. O autor e a personagem misturam-se na dialética da narrativa, mas é o tempo presente que vem à tona. Um país em crise reclama a descoberta de saídas – e D. António é a referência, no entrecruzar de experiências pessoais e de apelos contraditórios. Os amores do protagonista representam a vida do dia a dia, enquanto a procura do absoluto significa a força da transcendência perante o que é comum. Estamos em presença de quem Jorge de Sena designou como «O Indesejado», que procura suceder ao «desejado», desaparecido nas areias de Alcácer Quibir. Para Urbano Tavares Rodrigues, no entanto, o desejo da transformação do mundo não é suficiente, é preciso «lutar no concreto por cada ser humano», daí haver uma preocupação especial com a misericórdia, com a compaixão e com a entreajuda, para além dos sistemas e das abstrações. É este sentido humano e literário que torna a arte de Urbano como algo perene e forte, insuscetível de se deixar aprisionar. A fraternidade e a dignidade são, assim, marcas da obrigação humana de emancipação e de autonomia. E é esse paradoxal caminho que encontramos no símbolo de D. António, Prior do Crato, entre a compaixão e o apelo à redenção da pátria e a um mundo melhor. Estamos, pois, ante uma paradoxal via, onde sentimos a presença de um herói misterioso e mítico. Fiel a uma antiga matriz marxista, que não renega, apesar da preocupação crítica, Urbano Tavares Rodrigues admira em Karl Marx, não o estudioso do socialismo científico e da sua necessidade, mas o crítico das condições que conduzem à exploração e à escravatura de muitos seres humanos. Por isso, afirma não haver dúvida de que «o desaparecimento da antiga União Soviética veio demonstrar que havia certos erros que não podem ser cometidos». E o certo é que se nota nas preocupações espelhadas nos seus textos a preocupação de ter presente uma componente crítica, mitigada pelo ideal.

 

UMA ESCRITA ATENTA AO MUNDO
Escritor atento ao mundo que o rodeia, como no recente «Escutando o rumor da vida» (2012), Urbano não esconde um sentido eclético, fruto de diversas influências, desde o naturalismo tardio ao modernismo, passando por um existencialismo decantado pela atenção às pessoas concretas (notando-se uma natural e serena proximidade de Maria Judite de Carvalho) – no entanto é essencialmente um cultor exigente da língua portuguesa. Não podemos, de facto, compreender o romancista sem chegarmos a Manuel Teixeira Gomes e à sua influência. Sobre a obra do autor de «agosto Azul» afirma: «são conjuntos de crónicas e cartas, de apontamentos paisagísticos perfeitos, de contarelos onde o desejo estua, esbocetos tão harmoniosos e irónicos que só poderia colori-los uma arte tão visual e experiente como a sua, que mergulhando no naturalismo e no decadentismo, recupera ao mesmo tempo as graças verbais de um Frei Manuel Bernardes, de um Francisco Manuel de Melo e a elegância de Garrett, o domínio da língua de um Camilo Castelo Branco». Esta ligação de Urbano Tavares Rodrigues a Teixeira Gomes é dos aspetos mais ricos entre os diálogos literários da nossa língua. Encontramos um cosmopolitismo e um amor à plasticidade da língua, que nos permitem também dar um especial valor a Fialho de Almeida e até compreender melhor Afonso Lopes Vieira e António Patrício. É deliciosa a invocação de «Gente Singular»: «um prodígio de graça vocabular, de capacidade descritiva, tão à vontade a revelar-nos os recessos eróticos de Amesterdão e o mistério das suas mulheres como a satirizar os podres e as vanglórias do Algarve abastado e as suas pendurezas, ou o próprio clero, em sua banda de um cómico delirante, que gira em torno do cónego Simas e suas manas no conto epónimo». Sente-se em Urbano Tavares Rodrigues, sem cedência fácil e com originalidade, a influência da verve e do talento do escritor algarvio, infelizmente não suficientemente valorizado na nossa literatura por razões talvez circunstanciais e de um moralismo fechado e rígido. Deve-se, contudo, ao escritor e ao estudioso de «Teixeira Gomes: o discurso do desejo» uma persistente ação no sentido de pôr o grande artífice da língua no lugar que, por certo, o futuro lhe reservará. Por outro lado, não esqueçamos ainda que Urbano Tavares Rodrigues afirma que não teria sido o escritor que é se não tivesse lido Fernando Pessoa – que «estilhaça a língua portuguesa, sobretudo com Álvaro de Campos». É esta ponte que enriquece a criação literária do autor de «Uma Pedrada no Charco», para além de qualquer receita. Devemos, assim, referir que a obra e o magistério cultural e literário de Urbano têm de ser devidamente postos em destaque, para além de circunstanciais e respeitáveis razões ideológicas. Sente-se o forte amor à grande literatura. Nesse sentido, como o demonstrou, de modo pioneiro, com Teixeira Gomes (por razões outras), o culto da língua e da literatura têm necessariamente de se libertar de preconceitos e outras menoridades, deixando de ver o naturalismo português como um condomínio exclusivo das celebridades consagradas.

Guilherme d'Oliveira Martins

O AMOR DAS TRÊS LARANJAS...


Sergei Prokofiev

 

"O Amor das Três Laranjas", ópera em 4 actos de Sergei Prokofiev, é mais conhecida e escutada, na forma da suite sinfónica, do que outras raras produções teatrais e escassa discografia operática do mesmo autor. Subiu pela primeira vez à cena em Chicago,a 30 de Dezembro de 1921,sendo o libreto da autoria do mesmo Prokofiev,escrito em francês com a ajuda de Vera Janocopoulos,a partir da fábula "L´Amore delle Tre Melarance" que o nobre Carlo Gozzi escrevera para o carnaval de Veneza de 1761. A fantástica história passa-se num imaginário reino de cartas de jogar, cujo soberano, o Rei de Paus, se vê impotente para travar o definhamento do seu único filho e herdeiro do trono, que padece de destruidora hipocondria... Na verdade, Leandro, primeiro-ministro (e Rei de espadas), deseja o trono e pensa obtê-lo, com a morte do principe herdeiro, pelo casamento com Clarissa, sobrinha do Monarca e segunda na ordem de sucessão.


Entretanto,como se crê que só o divertimento e o riso poderão curar o príncipe e salvar o Estado, cómicos, trágicos, líricos, excêntricos e tolos, todos concorrem com a oferta dos seus estilos e formas de distracção, mas com a sistemática contestação dos ridículos... Finalmente, será uma maldição da fada Morgana, protectora de Leandro, condenando o principe e amar três laranjas, que irá salvá-lo. Do corte de duas laranjas que os homens fazem para matar a sede, saem duas princesas que de sede morrem; mas do terceiro e último fruto surge uma jovem linda, que Morgana ainda tenta transformar em rato, mas que  é restituída ao esplendor da sua graça e casará com o herdeiro do trono, assim o curando e salvando o trono e o país.


É curioso observar como o libreto e a composição musical da ópera se processam a partir de Maio de 1918, quando Prokofiev deixa Petrogrado para seguir para os EUA, via Vladivostock e Japão, após ter obtido do comissário do povo Lunatcharski autorização para deixar o país. A razão da partida é a necessidade de trabalhar em sossego. Ao compositor, eram-lhe indiferentes a revolução e a contra-revolução: "A mim.não me interessa a política, a arte nada tem a ver com isso. Evito pensar na política quando trabalho". Seria sincero, mas o certo é que regressaria à URSS, em 1936, ao que parece por razões de interesse próprio. "O Amor das Três Laranjas" é uma sublimação da dura realidade política e social através de uma fantasia irónica: afinal, o poder procura a sua continuidade, mas quem encontra solução é um hipocondríaco, rodeado de conspiradores, que pede propostas e iniciativas a uns quantos cómicos, trágicos, líricos e cabeças vazias, que os ridículos ora aprovam ora desaprovam, pois no fundo tudo querem, tal como nós, rindo de tudo... Nesta história, a salvação chega pelo amor de uma princesa surgida de uma laranja, que a sede desenfreada dos homens não chegou a destruir. E na nossa história real? A ironia vivaz, da suite sinfónica, que agora escutámos, aponta para esse incansável e insaciável "marketing" político que, todos os dias, nos coloca no meio de uma barafunda de pregões, de promessas e de protestos... Não sei porquê,ocorre-me o conselho de S. Domingos, fundador de uma ordem de pregadores, aos seus irmãos: que me apague, me tape, me esconda, para não esconder a voz do meu Senhor. Antes de falar, precisamos de silêncio. Fala-se demais, esquecemos que a agitação das palavras no frenesi dos discursos foi já sinal de grandes tragédias.
 

Camilo Martins de Oliveira

Nicanor Parra: uma vida à poesia.

 

 

Aos 97 anos Nicanor Parra recebe o prémio Cervantes por toda uma vida dedicada à poesia e ao que ficou conhecido por “antipoesia”.

 

O poeta chileno de há muito que era uma das constelações da arte poética.

Quantas vezes entendi que nos encontrámos ? quando nele também procurava as pégadas-cerne das sandálias das palavras-porcelana que só a poesia conhece?

 

Em Parra sempre encontrei um lugar para apertar as mãos e nunca para as prender.

Em Parra a ideia de estar de frente para a barca dos dias. E dele estes dois momentos e o meu bem-haja!

 

 

Cartas a una desconocida

Cuando pasen los años, cuando pasen 
los años y el aire haya cavado un foso 
entre tu alma y la mía; cuando pasen los años 
y yo sólo sea un hombre que amó, 
un ser que se detuvo un instante frente a tus labios, 
un pobre hombre cansado de andar por los jardines, 
¿dónde estarás tú? ¡Dónde 
estarás, oh hija de mis besos!

   


Último Brindis

Lo queramos o no 
sólo tenemos tres alternativas: 
el ayer, el presente y el mañana.

Y ni siquiera tres 
porque como dice el filósofo 
el ayer es ayer 
nos pertenece sólo en el recuerdo: 
a la rosa que ya se deshojó 
no se le puede sacar otro pétalo.

Las cartas por jugar 
son solamente dos: 
el presente y el día de mañana.

Y ni siquiera dos 
porque es un hecho bien establecido 
que el presente no existe 
sino en la medida en que se hace pasado 
y ya pasó... 
como la juventud.

En resumidas cuentas 
sólo nos va quedando el mañana: 
yo levanto mi copa 
por ese día que no llega nunca 
pero que es lo único 
de lo que realmente disponemos.

 

 

Teresa Vieira

Pág. 1/2