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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

A CÉSAR O QUE É DE CÉSAR...


Quando por razões ideológicas, se negou a referência ao Cristianismo num projeto de Constituição Europeia, recusaram-se as raízes e cometeu-se um quase-crime de lesa história. Foi algo de mesquinho, na medida em que não se negou apenas a afirmação de uma realidade, mas teimou-se em não a compreender que o Cristianismo é culturalmente multirradical. Também se disse que o nosso reconhecimento nos abre ao conhecimento dos outros. Aliás, um dos obstáculos sérios, por exemplo, ao diálogo islâmico-cristão está no facto de ninguém perceber com clareza quais são os nossos valores, aqueles que deveriam estar na mão que a Cristandade deveria estender ao Islão. Poderá parecer paradoxo, mas é a percepção desapaixonada e serena da nossa identidade, a consciência perspectiva, no tempo e no modo, dos nossos valores, que nos aproxima dos outros e nos permitirá racionalmente interrogar-nos por que não poderá, por exemplo, a Turquia, maioritariamente muçulmana, aceder à União Europeia? Ou, positivamente: como poderá fazê-lo? Não tem, certamente, e sabe-o, que negar a matriz cristã da Europa, com a qual,aliás, lidou durante séculos. Tampouco tem de se converter ao Cristianismo, pois a própria tradição cristã da dignidade da pessoa humana fundou, no Iluminismo e depois dele,o respeito ético e jurídico da liberdade religiosa... Tal como sabemos, uns e outros, cristãos e muçulmanos, que nem sempre os nossos poderes instituídos, políticos e religiosos, respeitaram nos outros a dignidade divina da pessoa humana e a liberdade da sua escolha, também houve, na Cristandade e no Império Otomano, admiráveis excepções de tolerância e acolhimento. Também nestes valores comuns que, em culturas diferentes, traduzem o princípio fundador que é o da misericórdia de Deus, deveremos encontrar um caminho e o seu sentido, de harmonia, não como receita, mas como procura. Há que lembrar ainda, no diálogo com o islamismo, um princípio que se foi afirmando ao longo da história do Cristianismo europeu e, finalmente, conduziu ao Estado laico das democracias actuais: o da distinção entre poder espiritual e temporal, entre a submissão a Deus e o tributo a César. Desde a tentação constantiniana às lutas entre os sacro-impérios e Roma, entre os reis de Portugal e o Papado, passando por guelfos e gibelinos, cismas de Avignon e tratados de Tordesilhas, até à unificação da Itália e às suas sequelas, aprendemos muito. Ao fim e ao cabo, o que Jesus Cristo disse: a César o que é de César, a Deus o que é de Deus. Neste princípio assenta a liberdade religiosa, que o Estado constitucional e democrático deve garantir até como contrapeso à própria tentação totalitária do poder político. Universitário e escritor muçulmano, Abdelwahab Meddeb, no seu livro com um título desafiador, "Pari de Civilisation",  para fundamentar a sua visão cosmopolita da religião cita Kant e a sua proposta "Para a Paz Perpétua": "Diversidade das religiões? - curiosa expressão! Tão singular, como se falássemos de morais diversas. Pode bem haver várias maneiras de crer, por força da história dos meios utilizados para a promover, os quais pertencem ao campo da erudição e dos livros religiosos (o Zendavesta, os Vedas, o Corão, p.ex.). Mas só pode haver uma religião valendo para todos os homens e todos os rempos. Assim, os modos de crer só podem conter o veículo da religião, o que é contingente e pode variar segundo a diversidade dos tempos e dos lugares". Muito interessante é ainda verificar que Abelwahab Meddeb refere que a expressão "paz perpétua" surge, pela primeira vez em Nicolau de Cusa (herdeiro espiritual do místico dominicano medievo Mestre Eckhart), na sua obra "De Pace Fidei", escrito durante a guerra com os turcos, que conduziu à tomada de Constantinopla em 1453. Em tempos tão conturbados, Nicolau de Cusa, respeitado homem de Igreja e amigo de Papas, procurou como que "estabelecer uma paz perpétua em religião": "Apesar da diversidade dos ritos, a paz da fé permanece todavia inviolada". Proximamente regressaremos ao tema das fronteiras da Europa e do desafio da definição geográfica,política e cultural da União Europeia, bem como à análise dos critérios que, para o efeito, têm sido propostos. Por agora, interroguemo-nos apenas sobre se serão suficientes os princípios definidos no Conselho de Copenhague em 1993: o Estado de direito, a estabilidade das instituições, a democracia pluralista, o respeito das minorias, a economia de mercado e a incorporação nas diferentes esferas jurídicas nacionais, do "acquis communautaire"... Pois tudo se constitui com objectivos inspirados pelo desejo de realização de valores fundadores. A falta de visão a prazo e a ausência de profundidade de reflexão são, no momento em que escrevo estas linhas, fustigadas por Fernando Henrique Cardoso, contestando o consumismo como guia. Por aí me ocorrem estas palavras de Zigmunt Bauman: "O modelo de PNB que domina (monopoliza) a maneira como os habitantes da líquida,consumista e individualizada sociedade moderna pensam o bem-estar ou imaginam o ´bem social´ (...) é mais notável, não pelo que classifica de modo equivocado ou claramente erróneo, mas por aquilo que nem chega a classificar, que deixa totalmente fora do cálculo, negando qualquer relevância típica à questão da saúde nacional e do conforto individual e colectivo". No presente debate sobre a "crise financeira" na Europa, é evidente a preocupação de cada um com o que pode consumir, dos políticos com as suas obsessões, e das nações europeias com o seu egoísmo nacional. Falta-nos espírito. O que nos fará sair da " crise" não será o debate de modelos econométricos e contabilísticos impostos, sem outra razão que a das previsões matemáticas (que vão falhando), e muito menos a exigência infantil do consumismo misturado com "direitos adquiridos". Temos, no fundo, de repensar o sentido da vida e o valor (esquecido) da pessoa humana.

Camilo Martins de Oliveira

Frank Lloyd Wright: quando a arquitectura pode glosar a poesia em lúcida unidade

 

Um dia escrevi que não poderia existir uma criatividade rigorosa sem se ser infiel a uma qualquer estrela fixa. E pensei em ti Frank, que serás sempre uma verdade tão distinta quanto aquela que só nasce e se recria, por ter vindo por dentro, na margem de segurança do passaporte que se não espuma nem se achega a qualquer grade.

 

Recordo “So long, Frank Lloyd Wright”, canção a ti por Paul Simon no álbum Bridge Over Ttroubled Water num original de Simon & Garfunkel , e também eu

 

I barely learned the tune

 

quando tu já abriras o segredo da arquitectura orgânica, tão bela e necessária à vida! E que bem a descreveste através da Casa da Cascata (também conhecida por Casa Kaufman)e por ela também eu abri o armário dos vestidos de cerejas e os combinei gota a gota, reconhecíveis ao teu lápis e ao que a minha mão direita não descurava. E eis outro livro.

 

 

E eis outra organização de espaços interiores, residenciais, e simultaneamente expostos por pérgulas e intrincadas treliças de madeira que seguram o corpo principal da casa onde se apoia o poema.

 

A disposição das aberturas é também nossa comum preocupação: o material estrutural e de acabamento do criar pode ter terraços, telhados inclinados, chaminés com algum disfarce, mas sempre terá de surgir uma liberdade de paredes simples e limpa.

 

Afinal todas as peças diversas que tento combinar por óbvia e necessária clareza, devem entender que, umas dependem das outras, e que todas unidas serão ou foram a oração do caminho. E outro livro. E outro lápis teu Frank Lloyd Wright!

 

Enfim, colocámos o remo tão fundo que o próprio era e é uma lasca de visão total.

 

 

E eis que guardaria neste teu sideboard os mistérios macios, aqueles que são como o pó do marfim.

 

 

 

E são femininos esses mistérios, e teus, os traços que os acolhem.

So long Frank Lloyd Wrigth!

So soon!

I barely learned the tune!

 


Teresa Vieira

LONDON LETTERS

The British spirit

 

Setembro contém memórias especiais para os Londoners. Cerca de 13% da população abandona a cidade só em 1940, rumo ao countryside, na sequência do acentuar da II Guerra Mundial (1939-45). Children and women first, como comanda a pauta da gentlemanship − a code-word inglesa para a pauta universal da dignidade humana (basicamente: respeito por si e pelos outros, em quaisquer circunstâncias). – Et voilà! London é bombardeada durante 57 noites consecutivas; a Luftwaffe lança 100 toneladas de explosivos nos major raids. Cerca de um milhão de casas são destruídas e mais de 43,000 civis são mortos, metade dos quais na capital. – Good Lord! A long and rocky road só terminará com a rendição germânica, a derrota das potências do Eixo e o julgamento da elite nazi por crimes contra a Humanidade.

 

 

 

Herr Adolph Hitler e um glorioso estado-maior, onde pontuam nomes da geopolítica como o general Karl Hausoffer, cedo ordenam o bombardeamento estratégico sustentado contra o United Kingdom. As hostilidades deflagram em Setembro de 1939 e Mr Winston Churchill assume a premiership em Maio seguinte, liderando an all-party government entre conservadores, trabalhistas e liberais. "I have nothing to offer but blood, toil, tears and sweat," afirma na House of Commons. Outras grandes cidades como Birmingham, Liverpool e Plymouth ou Bristol, Glasgow, Southampton e Portsmouth são massacradas. Coventry vê a antiga cathedral arruinada. Se ambos os lados rezam ao mesmo Deus, há, porém, um mundo de diferença entre as partes beligerantes. Assim: as crianças são enviadas para a retaguarda quando as bombas caem sobre London, mas, quando baixam sobre Berlin, é a juventude de fardeta mandada combater com armas que desconhece. Esta é uma linha crucial que separa a civilização da barbárie.

 

 

 

A proteção das pessoas alia-se à defesa do território e à estratégia de vitória. Os petty politicians de ontem emergem já, senão como great men, pelo menos como great examples. A estratificada sociedade britânica – e é preciso conhecê-la – apresenta-se como one nation. Sob os bombardeamentos, “people die randomly.” Muitos dos que haviam contendido na Guerra de 1914-19 regressam às armas, ora auxiliados por uma nova geração de combatentes. A decência, consciência, inteligência, coragem e grandeza das elites e das gentes inspiram ainda em todos os tempos e lugares. É a resposta inteira à selvajaria do paradigma da atrocidade. Esta é uma outra linha fundamental que separa a razão da desrazão. Setembro rememora a formidável objeção do British spirit ao "fire and forget" do German blitz. As bombas visam alvos civis e económicos para semear o caos e quebrar o morale na home front. Private and public narrative forms dizem da finest hour. “It was Hitler’s belief that the war from the air would terrorise London into defeat,” escreve Jon E Lewis. – The Nazi leader was wrong.

 

 

St James, 18th September

 

Very sincerely yours,

 

V.

A VIDA DOS LIVROS

 


de 24 a 30 de setembro de 2012



«No meio do caminho tinha uma pedra / tinha uma pedra no meio do caminho / tinha uma pedra / no meio do caminho tinha uma pedra. // Nunca me esquecerei desse acontecimento / na vida de minhas retinas tão fatigadas. / Nunca me esquecerei que no meio do caminho / tinha uma pedra / tinha uma pedra no meio do caminho / no meio do caminho tinha uma pedra». Carlos Drummond de Andrade (1902-1987) deixou-nos há vinte e cinco anos, e teria hoje se vivesse 110 anos. Em Itabira celebrámo-lo, lendo-o, lembrando-o, poeta maior da nossa língua comum!

 

 

QUANDO SE PREPARAM AS MALAS…
Quando se preparam as malas para uma viagem fica sempre a sensação de que algo falta. E quando se trata de um périplo literário e artístico, há o constrangimento inexorável do excesso de peso. Muito vai na memória, outro tanto num pequeno carregamento de cadernos de apontamentos e depois há o essencial. Foi para que esse essencial fosse mesmo essencial que se inventaram os roteiros. Encontramos sempre nas antigas viagens a referência aos Baedekers e a todos os sucedâneos que a imaginação e a informação foram inventando. Hoje há os recursos informáticos, a informação instantânea, mas diz-me a experiência de algumas voltas ao mundo, que só uma preparação cuidada e a reunião da informação certa permitem olhar como deve ser o que procuramos. Já aqui disse há algumas semanas que Minas Gerais é o nosso destino, em busca do especialíssimo Barroco luso-brasileiro – desse de que, melhor que ninguém, disse Germain Bazin: «a religião foi o grande princípio de unidade no Brasil. Ela impôs às diversas raças aqui misturadas, trazendo cada uma um universo psíquico diferente, um mundo de representações mentais básico, que facilmente se sobrepôs ao mundo pagão, no caso dos índios e dos negros, através da hagiografia, tão adequada para abrir caminho ao cristianismo para os oriundos do politeísmo». E não diz ainda Bazin, que «para o homem desse tempo tudo era espetáculo»? Compreende-se que esse barroco, para muitos algo ilusoriamente pobre, é uma manifestação exuberante do encontro de muitas pedras inesperadas no meio dos caminhos, como nos avisou Drummond («tinha uma pedra no meio do caminho / no meio do caminho tinha uma pedra»).

 

O BARROCO FASCINANTE
Esse barroco fascinante leva-nos a um Brasil fantástico, paraíso e utopia, que Vitorino Nemésio encontrou como familiar e diferente, paradoxalmente: «os sinos de Ouro Preto soam-me como timbre de menino do outro lado da vida (…) Estou em Minas Gerais e é como se estivesse num Portugal caldeado de vilas do Norte e do Sul. A ponte, à Casa dos Contos, parece estender-se sobre o Tâmega e colocar-nos na vila de Amarante. A rua do conde de Bobadela, que trepa ao largo do Paço (Tiradentes), parece de Montemor-o-Novo, quando se vai para Évora. Não fora este ar de Calvário abolido e sentia-me no Minho e no Alentejo». Mas Nemésio, andarilho da cultura, ilhéu com olhos despertos para diferenças e proximidades, sabia como era outra coisa aquilo que lhe parecia tão familiar. Por isso, tem outra visão do cemitério de Santa Engrácia, também de Ouro Preto: «Sumido o oiro das catas, / Brilham janelas perdidas, / Torna-se a alma um segredo; / O Curral d’El-Rei cerrou-se, / Os matos ardem de medo. / (…) Ó céu de Belo Horizonte / Que futuro me daria / Teu movimento secreto?». E não era açoriana a adorável avó de Cecília Meireles, D. Jacinta Garcia Benevides, boquinha de doce, que lhe deixou a semente indelével da poesia, onde o sentimento da identidade brasileira está patente no bem mineiro «Romanceiro da Inconfidência»? Mas ir ao encontro desse barroco tão especial é ir na senda do encontro tenso que criou o Brasil de sempre. Aí está a «Prosopopeia» de Bento Teixeira (1601), a poesia de Gregório Matos, a genialidade de António Francisco Lisboa, o Aleijadinho, e ainda a importância do Mestre Manuel da Costa Ataíde, de Mariana, com influência decisiva na personalidade artística do Brasil colonial. E, sobressaindo na literatura, representando a maturidade da prosa portuguesa, o Padre António Vieira, clama pelo dom do verbo com a força luxuriante das palavras: «Os caminhos são os corações inquietos e perturbados com a passagem e tropel das coisas do Mundo, umas que vão, outras que vêm, outras que atravessam, e todas passam; e nestes é pisada a palavra de Deus, porque a desatendem ou a desprezam». O barroco entrelaça a sociedade e a economia, a escultura, a pintura, a arquitetura, a poesia, a literatura, a oratória e até a música e o teatro, e como salientou Roger Bastide nas memoráveis lições que ministrou na Universidade de S. Paulo, a partir de final dos anos trinta, que tiveram influência decisiva na geração de António Cândido, devemos falar num Brasil de contrastes, de uma identidade própria que se vai afirmando e que leva ao «Barroco brasileiro». E falando de Bastide, nestas embaixadas culturais do Centro Nacional de Cultura, reencontramo-lo depois de nos ter acompanhado na nossa viagem desde o vudu do Benim até ao Candomblé da Bahia. E neste ano do centenário de Jorge Amado não podemos esquecer essa busca da idiossincrasia social brasileira, tão historicamente enraizada…

 

UMA SÍNTESE FECUNDA
É a complexa síntese do Brasil moderno que se sente a cada passo, com profundas raízes históricas. Terra de jesuítas e de bandeirantes, de gente de cá e de fora, de povos e culturas em ebulição. E a personalidade própria afirma-se. Afonso Arinos lembra o seu caso: «Era, autenticamente, uma família senhoril; de senhores mineiros, bem entendido, modestos, sem luxos nem riquezas, mas senhores, isto é, gente simples mas altiva, incapaz de sofrer qualquer humilhação para subir na vida. O que os diferenciava, talvez, de outros grupos familiares do mesmo género, existentes no Estado, era a ininterrupta tradição intelectual que fazia da literatura na nossa casa, uma coisa comum, uma conversa de todo o dia. A literatura nos acompanhava desde a colónia». Uma personalidade própria, um sentido cultural intenso, uma perspetiva crítica feita de uma ciosa autonomia de espírito e de ação, que bem se sente no «Romanceiro» de Cecília. E há ainda o fascínio de João Guimarães Rosa e de «Grande Sertão – Veredas». Aí estamos perante a linguagem rural dos sertanejos, um barroco vivo, que o autor maneja com mestria perturbadora. Contudo, como diz António Cândido: “tudo se transformou em significado universal graças à invenção, que subtrai o livro da matriz regional”. Ali estão “os grandes lugares-comuns, sem os quais a arte não sobrevive: dor, júbilo, ódio, amor, morte, para cuja órbita nos arrasta a cada instante, mostrando que o pitoresco é acessório e, na verdade, o Sertão é o mundo”. Riobaldo conta, de modo caótico, a sua experiência pessoal – e no fim, quando sobrevive, revelado o enigma de Diadorim, acaba a gozar a vida e a lembrar o pacto que um dia celebrou com o diabo, mas a concluir que o que verdadeiramente “existe é o homem humano”… Porque afinal “sertão é dentro da gente”. Nesta antemanhã brasileira, importa dizer que há uma cultura moderna e futurante que se desenha neste diálogo atlântico. Esse barroco irrequieto é uma espécie de matriz, que revive no humanismo universalista que Cortesão viu melhor que todos. E a chave chama-se diálogo e presença, a força da Europa fora da Europa - «Por muito tempo achei que a ausência é falta / E lastimava, ignorante, a falta. / Hoje não a lastimo. / Não há falta na ausência. / A ausência é um estar em mim». Carlos Drummond de Andrade define o diálogo.


Guilherme d’Oliveira Martins

PENSAR UMA EUROPA PACÍFICA


Por volta de 1715, um padre francês, o abade de Saint-Pierre, publicava uma obra intitulada "Projecto para tornar a paz perpétua na Europa", em que defendia a criação de uma instância europeia política, acima das nações, que asseguraria o governo da paz entre elas e uma sociedade europeia harmonizada. Oitenta anos mais tarde, Immanuel Kant retoma o propósito e o título de "Projecto para a paz perpétua", para adiantar a ideia de que os governos dos povos devem assentar num sistema representativo e com separação de poderes, e as nações formarem uma aliança federal. Surge esta proposta em contraponto à vocação hegemónica da revolução francesa, que Napoleão viria a incarnar. Curiosamente, é depois da derrota do imperador francês, antes e depois de Waterloo que, no Congresso de Viena (1814-15), as quatro potências vencedoras (Rússia, Prússia, Áustria e Reino Unido) discutirão o projeto... Até ao Congresso de Berlim (1878), e deste até à Conferência de Londres (de Dezembro de 1912 a Agosto de 1913) o Concerto Europeu discutirá e procurará resolver pacificamente questões que vão da vigilância sobre a França à sua integração no grupo, da revolta liberal em Nápoles à independência da Grécia e constituição da Bélgica, do comércio de escravos à repartição colonial da África (situações estas em que Portugal estará directamente envolvido)...  É também a era da constituição da super-Alemanha de Bismarck, do Risorgimento italiano e da redução dos Estados Pontifícios ao Vaticano, do definhamento do império otomano, e a anexação da Bósnia-Herzegóvina pela Áustria-Hungria, da oposição entre esta e Napoleão III, da derrota deste (em 1870) no conflito franco-alemão precedendo a IIIª República e prenunciando a 1ª Grande Guerra. Esta,cujos motivos Barbara Tuchman tão bem explanou em "The Tower of Proud", marca o fim do sec.XIX e de "uma certa Europa". No seu "Le Concert Européen -- aux origines de l´Europe (1814-1914)", Jacques Alain de Sédouy encontra nesse tempo uma consciência de comunidade europeia como cultura e civilização comuns e garante da paz. É curioso ver como foi Alexandre I da Rússia um dos seus mentores, e aquele que mais acreditava na cristandade como fundamento da Europa. Interessante também, ver-se como já então se considerava a hipótese da participação turca. A revolução bolchevique, cem anos depois de Alexandre I, implantando a União Soviética e dividindo, na sequência da 2ª Grande Guerra, a Europa em dois blocos, exclui (até quando?) a Rússia do projeto comunitário,  enquanto a preocupação em opor, ao fundamentalismo islâmico, um estado muçulmano democrático abre a perspetiva da inclusão europeia da Turquia hodierna. Citando Sédouy, vamos então ao sec. XIX: "É Castlereagh, ministro britânico dos negócios estrangeiros, que correntemente fala de ´commonwealth of Europe´. É Alexandre I que evoca ´a grande aliança´ dos Estados europeus. É Metternich que, referindo-se à ´aliança´, fala do «grande sistema pacífico da Europa» e escreve a Wellington em 1824: «Desde há muito que a Europa tem, para mim, o valor de Pátria». São os negociadores do tratado que funda a independência da Bélgica que declaram em Fevereiro de 1831: «Cada nação tem os seus direitos próprios; mas a Europa também tem o seu, foi a ordem social que lho deu´. É Guizot que, diante da Câmara, a 18 de Novembro de 1840, distinguindo claramente a Europa das potências que a constituem, declara: ´A grande política e o interesse superior da Europa e de todas as potências na Europa é a manutenção da paz em toda a parte, sempre´. É o Congresso de Paris de 1856 que declara a Turquia «admitida a participar nas vantagens do direito público e do concerto europeus». São os participantes no Congresso de Berlim m 1878 que se dizem,no preâmbulo do tratado que assinam,animados de ´um pensamento de ordem europeia´. São os embaixadores das potências em Constantinopla que, nas diligências feitas por ocasião das crises que sacodem o Império Otomano, entre 1880 e 1912/13, falam sempre «em nome da Europa». Outro paralelismo curioso entre aspectos do Concerto Europeu e a presente União Europeia é o da "hierarquia" de Estados. Leia-se esta carta de Frederico de Gentz, braço direito de Metternich, ao príncipe Karadja, em 1818: «O sistema político que se estabeleceu na Europa desde 1814 e 1815 é um fenómeno inédito na história do mundo. Ao princípio do equilíbrio ou, melhor dizendo, dos contrapesos formados pelas alianças particulares, princípio que governou e, por demasiadas vezes, também perturbou e ensanguentou a Europa durante três séculos,sucedeu um princípio de união geral,reunindo a totalidade dos Estados por um laço federativo, sob a direção das principais potências... Os Estados de segunda, terceira e quarta ordem submetem-se tacitamente, e sem que nada jamais tenha sido estipulado a esse respeito, às decisões tomadas em comum pelas potências preponderantes; e a Europa parece enfim não formar senão uma grande família política, reunida sob um aerópago de sua própria criação, cujos membros se garantem, a si mesmos e a cada uma das partes interessadas, o gozo tranquilo dos seus direitos respectivos. Esta ordem de coisas tem os seus inconvenientes. Mas é certo que, se a pudermos tornar duradoura,seria a melhor combinação possível para assegurar a prosperidade dos povos e a manutenção da paz que é uma das suas primeiras condições". Proximamente reflectiremos sobre esta questão da organização política da Europa e, antes ainda, na definição do próprio conceito de Europa: como será possível abrir um projecto europeu que traduz uma herança cultural própria da cristandade europeia,mas também se inspira no ideal da paz, a outras nações dispostas a partilhar politicamente aquilo a que Bourlanges chamou «a afirmação organizada de uma interdependência de valores escolhidos»?

 

Camilo Martins de Oliveira                                        

Sophia de Mello Breyner Andresen: a densa lucidez é também sinal de ti

 

E deixa que o diga ainda de outro modo:

 

Voltaste vezes sem conta ao verso- núcleo de onde partiste, e nunca o abandonaste.

 

Acompanho Eduardo Lourenço

«Sophia, longínqua filha de Rousseau (…) aquém ou além da História, inteiramente imersa na Natureza»

Assim me acompanhas, devo dizê-lo, e também muito pelo mar. Pelo mar já que por ele faço caminho e assim te abraço no "Vemos, Ouvimos e Lemos. Não podemos ignorar!".

 

Em 1999 foste a primeira mulher portuguesa a receber o Prémio Camões ainda que bem soubesses a pertinência da frase de Augustina a teu respeito

"Há mulheres que têm virtudes de rainha e por isso são mal compreendidas».


E na faina dos actuais tempos, convoco-te

 

Vimos o mundo aceso nos seus olhos,

E por os ter olhado nós ficámos

Penetrados de força e de destino.

 

Ele deu carne àquilo que sonhámos,

E a nossa vida abriu-se, iluminada

Pelas paisagens de oiro que ele vira,

 

Veio dizer-nos qual a nossa raça,

Anunciou-nos a pátria nunca vista,

E a sua profissão era o sinal

De que as coisas sonhadas existiam.

 

Vimo-lo voltar das multidões

Com o olhar azulado de visões

Como se tivesse ido sempre só.

 

Tinha a face orientada para a luz,

Intacto caminhava entre os horrores,

Interior à alma como um conto.

 

E ei-lo caído à beira do caminho,

Ele – o que partira com mais força

Ele – o que partira pra mais longe.

 

Porque o ergueste assim como um sinal?

Pusemos tantos sonhos em seu nome!

Como iremos além da encruzilhada

Onde os seus olhos de astro se quebraram?

 

Como um dia disseste, encontraste a poesia antes de saberes que existia a literatura. Agora eu e este teu Vidente – e que bem nos sentimos neste entender-te! – não aboliremos nunca os dias luminosos, ou o meio-dia não fosse a hora da próxima brisa.


A hora dos remos !

 

Teresa Vieira

LONDON LETTERS

IV. Back to Parliament


O cínico teria talvez reagido de uma outra maneira. E o político de tempos mais honestos também. − Mais non, la barbe! Sabendo do iceberg económico que por aí anda, as Tory hard lines exigem ao Premier a true sense of purpose e mais que uma regeneração nacional à moda de Vichy France. Logo, hélas: querem um PM com big policy decisions e em funções diversas das de chambermaid da coligação bipartidária. O desafio é feio – como que entre Mrs Thatcher e o Maréchal Pétain. Ao tremor da English country house, porém, responde Mr David Cameron com ameaça de fogo posto nos negócios aeroportuários de West London. − Hmm, nice. Uma remodelação governamental disputa as atenções em concurso com os esplendorosos K blade runners nos Paralympics Games. A Imprensa tonifica a dinâmica ins & outs. A natureza do algoritmo aclara: ambiguity + friends & patrons. Timoratos, descontentes e apoiantes silenciam-se. The showbiz must go on. 


Muito obrigada pelas roldana petasitis, que formoseiam o little garden. Os London days estão já outonais. Por isso, inelutavelmente, mais curtos e imprevisíveis. Sun here, rain there and, a little bit foggy everywhere! Um susto acompanha as leituras da manhã. Tories at war over Heathrow! No continente, com os inspetores a rondar a dieta espartana das periferias, Frau Merkel recria a pilotagem evasiva no Eurozone Draghi-deciding game. Duvidando do quão débil está a economia e mal a vida das gentes, algumas elites discutem o MO e lembram malfeitores antes de assaltar o banco em filme de Woody Allen. Além Atlântico, going, going, gone... to Pennsylvania Avenue. O LRB informa da convenção republicana: “Poor Mitt.” Anne Romney esteve bem no apoio ao marido, apesar do ‘Isaac W. Bush;’ mas o milionário viu-se embrulhado entre o hawky speech de Condoleezza Rize e a mumbled sitcom de Clint Eastwood. Já a well-oiled Democratic machine mostra o good William e o friendly Joey a par da volcanic Michelle e do cool Barack Obama. A Siriana prossegue desalmada no Norte de África. Nos Alpes mata-se.

 


Now, framing the Nation. Na land of opportunity disse um dia Martin Luther King: “I am a man.” Na land of hope, Mr Cameron propõe tristíssima versão alternativa: “I am not a mouse.” É de chamar Emily Dickinson, senão Primo Levy, let it be admitted! Dave, trato que prefere para exasperação do Standpoint, incomoda – na dignitas, gravitas e auctoritas. Salvo a Philippe Pétain, decerto, cuja chère France dispensava intelecto. Pois o Premier é abrasivamente confrontado nas páginas do Telegraph sobre a sua decisiveness. Pergunta Rt Hon Tim Yeo MP: “[T]he Prime Minister must ask himself whether he is man or mouse. His place in history is assured as the leader who made the Tories (nearly) electable again (…). But does he want to be another Harold Macmillan, presiding over a dignified slide towards insignificance?” O Rt Hon Brian Binley MP aprofunda o debate: "It is time for the PM to put the country before the political needs of the coalition, and deliver policies that will create prosperity". O Treasurer of the 1922 Committee (for Tory members of parliament outside government) especifica os termos: "The country needs a full-time Prime Minister and not a chambermaid for a marginal, irrelevant pressure group."

 


So, under pressure... create calm! Não, no atual mindset. Sim, reshuffle − que Lampedusa é universal como Shakespeare. A análise dos protagonistas e do papel do Premier no sistema de Westminster revela um peculiar Downing Street Blues. A história destaca os game-changers como Mr Attlee ou Mrs Thatcher, mas são estes quem deixa atrás de si the troubled legacies. Tal como Mr Peel ou Mr Disraeli, mexem na calibragem dos three estates of Crown, Lords and Commons. Isto exige. Ora, any gentleman/gentlewoman knows, a reliable head butler is hard to be made – is intrinsically different of a valet or a chambermaid.

St James, 11th September

Very sincerely yours,

V.

A VIDA DOS LIVROS


de 17 a 23 de setembro de 2012

 

«Primeiras Estórias», de João Guimarães Rosa (Editora Nova Fronteira, 2005) é uma magnífica introdução à poderosa obra de um dos maiores escritores mundiais do século XX. Ao lermos, no regresso de Minas Gerais, estes 21 contos, que nos enchem de humanidade e de encantamento, descobrimos que a vida é um caleidoscópio feito do confronto de forças complementares e contraditórias, insondáveis e acessíveis, inesperadamente presentes.


João Guimarães Rosa e Aracy


UM MINEIRO INESQUECÍVEL
João Guimarães Rosa (1908-1967) é um mineiro de Cordisburgo, filho de um comerciante contador de estórias e caçador de onças, «seu Florduardo», e de D. Chiquinha. A partir dos nove anos foi viver com os avós em Belo Horizonte, tendo passado fugazmente por um internato em S. João del Rei. Os idiomas foram, desde cedo a sua paixão, depois da língua materna, do francês e do holandês, que lhe vieram da infância, aprendeu esperanto, espanhol, italiano e até um pouco de russo; lendo (na sua expressão): «sueco, holandês, latim e grego (mas com o dicionário agarrado)»; entendendo «alguns dialetos alemães»; tendo estudado «a gramática: do húngaro, do árabe, do sânscrito, do lituânio, do polaco, do tupi, do hebraico, do japonês, do checo, do finlandês, do dinamarquês»; e bisbilhotado «um pouco a respeito de outras». E confessava: «acho que estudar o espírito e o mecanismo de outras línguas ajuda muito à compreensão mais profunda do idioma nacional. Principalmente, porém, estudando-se por divertimento, gosto e distração». Com 16 anos matricula-se na Faculdade de Medicina do Estado de Minas Gerais, onde conhece Juscelino Kubitschek, dividindo-se, desde cedo, entre o fascínio da vida e a procura do sonho. Quando tomou posse como membro da Academia Brasileira de Letras, lembrou uma frase que dissera perante um colega morto muito jovem de febre-amarela: «as pessoas não morrem, ficam encantadas». Aliás, quando lemos, por exemplo, o belíssimo conto «A Menina de Lá» sente-se muito claramente essa ligação ao sonho e ao encantamento. Enquanto Nhinhinha vive, é como se flutuasse entre a vida e a ilusão, e quando morre, como que fica mais presente, «pelo milagre, o da filhinha glória, Santa Nhinhinha»… Com apenas vinte e um anos JGR estreia-se na escrita, sendo imediatamente premiado, ainda que confesse estar longe de um estilo próprio e original, que mais tarde buscará com sucesso. Em 1930, casa com Lígia Cabral Penna, de apenas 16 anos, tendo tido dessa breve ligação duas filhas, Vilma e Agnes. Começa a exercer a clínica em Itaguara, no município de Itaúna, onde se inicia na observação dos tipos sertanejos, sendo evidentes os traços de «seu Nequinha», um pobre homem dado a devaneios espíritas na personagem de Quelemém, o autêntico oráculo de «Grande Sertão – Veredas», intérprete fundamental de muitos estranhos acontecimentos do romance. No entanto, o médico sente-se impotente para curar as dores e sarar as feridas de um povo a que faltava o essencial. Vê-se, aliás, em grandes dificuldades quando é obrigado a assistir ao parto de sua própria filha Vilma. Afasta-se então o exercício livre da profissão, que foi fundamental para consolidar a capacidade para ver quem o rodeava como originalíssimo intérprete da sociedade de Minas. Durante a Revolução constitucionalista de 1932, é voluntário na Força Pública e no ano seguinte é oficial médico em Barbacena num batalhão de infantaria. Dedica-se no intervalo dos compromissos ao estudo dos idiomas e à recolha de informação exaustiva sobre os jagunços do Rio S. Francisco. Perante a admiração que a sua perspicácia e cultura causam junto dos seus colegas, é aconselhado a seguir a carreira diplomática, o que se liga com a sua personalidade mais orientada para a reflexão, para a ponderação de interesses e para o jogo do xadrez. E a verdade é que, concorrendo, obtém provimento para o Itamarati. Em 1936, a coletânea de poemas «Magma» obtém o prémio de poesia da Academia Brasileira de Letras. Em 1937, publica a coletânea, que em 1946 será intitulada «Sagarana», o primeiro grande sucesso editorial do escritor. Aí está, em carne viva, a existência das fazendas, dos criadores de gado e os regionalismos, que não poderiam passar despercebidos a um homem apaixonado pelo linguajar dos vilarejos. Em 1938, é nomeado cônsul adjunto em Hamburgo. Na Europa conhece Aracy Moebius de Carvalho, que será a sua segunda mulher, e desempenhará papel fundamental no consulado. Nos prolegómenos da guerra e num lugar de perigo máximo, Guimarães Rosa consegue escapar à morte diversas vezes. Hoje, o conhecimento da história desse período permite saber a atuação de grande coragem e inteligência do casal na defesa e salvação de muitos judeus. E o certo é que Aracy é, sem dúvida, crucial nessa circunstância. Em preito de homenagem relativamente a essa atitude, o diplomata e sua mulher foram homenageados em Israel, em 1985, através da mais alta distinção que os judeus prestam a estrangeiros: o nome de ambos foi dado a um bosque que fica nas encostas que dão acesso a Jerusalém. D. Aracy revelaria, porém, o grande pudor que o escritor tinha em falar desse momento, apenas afirmando: «Se eu não lhes der o visto, vão acabar morrendo; e aí vou ter um peso em minha consciência».

 

ENTRE A DIPLOMACIA E A LITERATURA
Com a entrada do Brasil na guerra, Guimarães Rosa é preso em Baden-Baden, com diversos compatriotas, como Cícero Dias, sendo libertado por troca com diplomatas germânicos. Regressado ao Rio de Janeiro, aí está muito pouco tempo, sendo colocado como Secretário de Embaixada em Bogotá – experiência que lhe inspirará o conto «Páramo», sobre a solidão e o pânico. De novo no Brasil, empreende uma viagem mítica às suas origens familiares, fazendo depois parte da delegação brasileira à Conferência de Paz de 1945. Mantém intensa atividade diplomática e é nomeado Embaixador, mas sente-se atraído pelo misterioso «Sertão». Em 1951, realiza uma visita de estudo a Mato Grosso, tirando muitas notas sobre a fauna, a flora, os costumes, as crenças, a linguagem, anedotas, canções e tudo o mais. É o tempo de «Manuelzinho e Miguilim». Como facilmente nos apercebemos, o universo está no sertão e os homens são como que influenciados pelos astros… O regionalismo ganha, assim, uma feição universalista, e é isso mesmo que atrai críticos e escritores, mas também o público apreciador da muito boa literatura. Depois de «Sagarana» e de «Corpo de Baile», é o tempo da obra-prima «Grande Sertão: Veredas». A narrativa é surpreendente, na construção, nos temas, na linguagem, no caráter aforístico fragmentário, na interpretação do fantástico. A relação profunda, misteriosa e inesperada entre Riobaldo e Diadorim, por entre peripécias mil vai prendendo intensamente os leitores, que perante as dificuldades da linguagem vão descobrindo a intensidade das relações entre pessoas, das pessoas com a natureza, da natureza com os mistérios e os encantamentos. Alberto Costa e Silva afirma: «João Guimarães Rosa escreveu um romance, novelas e contos como se fizesse poesia. Sabendo que as palavras, além de significado ‘têm canto e plumagem’, e que as frases não devem ser gaiolas, mas, sim espaço, e, no espaço, voo. Não se quis discursivo, persuasivo, lógico. Preferiu ser expressivo, perscrutador e lúdico. Perseguiu uma prosa permanentemente emocionada, uma prosa que fosse uma sequência de versos de verdade – e não apenas pela marcação do ritmo e pela contagem dos pés -, versos construídos com a força dos substantivos e o matrimónio de palavras que, juntas, se desbanalizam, readquirem a pureza semântica e os timbres primitivos, ou se mostram com novos valores que nelas não sabíamos». Costa e Silva diz tudo. É difícil acrescentar mais alguma coisa. Só alguém sobredotado para a compreensão das palavras e dos sentimentos pode transmitir-nos essa força extraordinária. Quando sai, o livro causa perplexidade, mas ganha diversos prémios nacionais, entre os quais o de Machado de Assis. Os críticos do primeiro momento vêem-se ultrapassados pela força da originalidade e pela fidelidade da interpretação sertaneja. Por um momento, percebe-se o que o escritor quis dizer ao afirmar: «gostaria de ser um crocodilo vivendo no rio São Francisco. Gostaria de ser um crocodilo porque amo os grandes rios, pois são profundos como a alma de um homem. Na superfície são muito vivazes e claros, mas nas profundezas são tranquilos e escuros como o sofrimento dos homens». Quando, em 1962 publica «Primeiras Estórias» compreendemos bem esse desejo de ir às profundezas, e de aí cultivar a beleza. Entende-se a dor e o desamparo (como insiste Alberto Costa e Silva), com o «mel do maravilhoso que cobre o pão de cada dia»

Guilherme d'Oliveira Martins

CONTRA OS FUNDAMENTALISMOS...

 

Valerá a pena debruçarmo-nos sobre a história de Deus nas culturas dos homens antes de Cristo, a saga da Revelação, o percurso a que um agnóstico, Régis Debray, chamou itinerário de Deus. Ou, ainda, procurarmos, noutras tradições do pensamento e da fé, raízes espirituais, frutos e concordâncias do Cristianismo e do Ocidente cristão. Fá-lo-emos, à procura de pilares e pontes para o diálogo entre civilizações e culturas, com que teremos, sob ameaça de confrontos violentos, de responder a um tempo-mundo em que comunicações e migrações nos põem, todos os dias, em casa uns dos outros. Falámos da identidade cristã de Europa, olhemos agora para o enraizamento da cristandade europeia. O Cristianismo, enquanto religião do Deus incarnado no homem e na história, nesta tem as suas múltiplas raizes. Num estudo sucinto,notável pela erudição e pela profundidade da análise ("Jésus l´Héritier -- Histoire d´un métissage culturel"), Christian Elleboode, professor na Universidade Católica de Lille, parte à descoberta das raizes do cristianismo na história dos homens. Do animismo primitivo aos deuses das civilizações da agro-pastorícia, do Egipto e da Mesopotâmia à Pérsia e ao monoteísmo israelita, onde nasce, como herança e antítese, o Deus da misericórdia e do amor universal que Cristo incarna e apregoa, há todo um caminho de revelação da transcendência pela imanência. Ao fim do percurso, uma conclusão: "Crente ou incréu, judeu ou cristão, é fundamental, para que haja diálogo, romper com a obsessão da procura do aspecto original de cada religião, reconhecer as suas dívidas culturais e aceitar finalmente a mestiçagem como um fenómeno que em nada altera a identidade dos indivíduos. Pelo contrário, é a ideia de pureza original que confunde as pistas e se torna fonte de conflitos. Hoje,num mundo mais global,em que os valores cristãos se encontram em diáspora e, simultâneamente, interrogados e contestados em sua casa, quer pela imigração de outras gentes, credos e culturas, na "nossa" Europa, quer sobretudo pelo materialismo e o economicismo consumista e ganancioso que o próprio "Ocidente" gerou,devemos reflectir sobre as raizes espirituais da Europa e sobre a fidelidade como condição do diálogo. Não falamos de negociação nem de relativismo: não se trata de uma possível troca de valores, trata-se de um esforço comum na procura de um sentido da história e para o futuro. Ou do que, para um crente, é a comunhão dos homens no universo de Deus. Quando, ao esbofetearem-me a direita, eu ofereço a esquerda, não me submeto, mas interrogo: se disse ou fiz mal, diz-me o quê; se não, porque me bates? O diálogo e o entendimento são exercícios difíceis, só possíveis a prazo, onde seguem a fé e a esperança, e se constroem, dia a dia, pela fidelidade do amor. Situam-se numa perspectiva diametralmente oposta à das relações "líquidas" que Zygmunt Bauman aponta como causa de precaridade. Interrogar o outro, o diferente, é necessariamente interrogar-me também, e à minha diferença. Para o incréu, é um imperativo da dúvida sistemática. Para o crente, um imperativo da humildade: se Deus me revelou assim a verdade, como e porquê a terá frustrado a outros? Ou será que, no itinerário da sua revelação, Deus foi abrindo outros caminhos, para que os homens de boa vontade, que são a sua glória, na encruzilhada se reconheçam? Afinal,o que nos une? Tudo o que Deus semeou ou só a nossa semente contra a dos outros? A ruptura do Deus de Jesus Cristo com o Deus de Israel antigo é clara: quem são os meus irmãos, o meu pai, a minha mãe? Não é a minha família ou nação que os define, são os que me seguem no amor universal. E S.Paulo dirá que não há escravo nem homem livre, homem nem mulher... Contra todos os fundamentalismos,inclusive os nossos.


Camilo Martins de Oliveira

Guy Goffette: Ce qui manque sans cesse aux mortels, ce trou dans l’air entre les choses

 

Desde 1969 que este poeta trabalhou como editor na Gallimard. É belga e a sua poesia muito tem sido comparada a Verlaine. Recordo que aquando do meu texto a Yves Bonnefoy, bem me acudiram à lembrança as suas palavras a Guy Goffette:

 

«Goffette é um herdeiro de Verlaine (…) ele é maravilhosamente capaz de captar as emoções e desejos comuns a todos nós.»

 

Em 1894 Verlaine  foi eleito o “Príncipe dos Poetas” de França e agora Goffette também escreve:

 

Je me disais aussi : vivre est autre chose

que cet oubli du temps qui passe et des ravages

de l’amour, et de l’usure – ce que nous faisons

du matin à la nuit : fendre la mer,

         

fendre le ciel, la terre, tout à tour oiseau,

poisson, taupe, enfin : jouant à brasser l’air,

l’eau, les fruits, la poussière ; agissant comme,

brûlant pour, marchant vers, récoltant

     

quoi ? le ver dans la pomme, le vent dans les blés

puisque tout retombe toujours, puisque tout recommence et rien n’est jamais pareil

à ce qui fut, ni pire ni meilleur,

      

qui ne cesse de répéter : vivre est autre chose.

 

Ontem mesmo fui reabrindo o seu livro “Le Pêcheur d’eau” numa edição Gallimard de 1995 e as palavras de Guy

 

Le ciel est le plus précieux des biens dans l´ existence. Le seul qu’on puisse perdre le soir et retrouver au matin, à sa place exacte, et lavé de frai.

 

De facto o poeta Goffette sabe espreitar para dentro quando escreve, num mecanismo quase religioso de quem espreita e entra por tranquilidade imaginística, no tratamento afinal objectivo da realidade.

 

Sempre li Guy Goffette como um poeta que nunca fechou os olhos das palavras à intenção do mundo. Na escrita de Guy , encontrei  um lume autónomo e algo casado com o conteúdo da expressão poète maudit, tal como Verlaine se referia a Stéphane Mallarmé ou Rimbaud que haviam lutado contra convenções poéticas, e por esse facto, foram ignorados pelos críticos.

 

Mas Guy recebe o Prémio Mallamé em 1989 e ainda o prémio da Academia Francesa.

 

A Academia é composta por quarenta membros, conhecidos como immortels dando assim inequívoco sinal ao lema à l’ immortalité que, aliás, surge no selo oficial então concedido por Richelieu, fundador da Academia em 1635.

 

A Academia inclui cientistas, advogados, políticos, escritores como o caso de G. d’ Estaing e mesmo um Chefe de Estado estrangeiro como Léopold Sedar Senghor e a primeira mulher Marguerite Yourcenar que foi igualmente acolhida na Academia.

 

Contudo muitos notabilíssimos escritores franceses nunca se tornaram membros da Academia o que suscitou a Arsène Houssaye (conhecido novelista francês do sec. XIX) o levantar da expressão “assento quadragésimo primeiro” , para nele caberem quantos foram rejeitados ou faleceram antes de surgirem vagas.

 

Rousseau, Sartre, Balzac, Zola nunca se tornaram académicos, o mesmo é dizer que não usaram o hábito verde, o chapéu bicorne ou a espada apenas não atribuída a clérigos.

 

Faço esta algo larga referência à Academia, porquanto no nuclear há verdadeiros e falsos problemas, e mesmo um herdeiro de Verlaine é quem não descuida a medicina do inatingível, que se não obtém por prémios, e ainda que se deixe aproximar de certas realidades estas não o despegam de

 

(…) tout ça parce que la nuit

et parce que la mer (…)

corps à corps amarrés,

mais la pensée au large

 

 

Teresa Vieira

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