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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

MANIFESTAR-TE-ÁS ENTRE DOIS ANIMAIS...

 

Num pequeno painel de 16x26cm, em ouro e têmpera sobre madeira, Fra Angelico representa, por volta de 1430, a Natividade de Jesus. Curiosamente, o Deus Menino, deitado sobre um chão de palhas, entre a Virgem Maria e S. José ajoelhados, tem outros dois adoradores: um burro cuja cabeça surge de trás de Nossa Senhora, e um boi corpulento com os membros anteriores claramente dobrados em genuflexão. Os anjos estão lá fora, em coro circular sobre o telhado. Esta cena não vem descrita em qualquer dos quatro evangelhos canónicos. Mas o apócrifo evangelho do Pseudo-Mateus reza assim: "Ora,dois dias depois do nascimento do Senhor, Maria deixou a gruta, entrou num estábulo e depôs a criança numa mangedoura, e o boi e o burro, dobrando os joelhos, adoraram-no. Então se cumpriram as palavras do profeta Isaías dizendo: "O boi conheceu o seu dono e o burro a mangedoura do seu senhor", e esses animais, rodeando-o, adoravam-no sem cessar. Então se cumpriram as palavras do profeta Habacuc dizendo: "Manifestar-te-ás entre dois animais". E José e Maria,com o Menino, permaneceram no mesmo local por mais três dias". Frei Tiago Voragino, na sua "Legenda Aurea", oferece-nos um texto composto com a retórica de um sermão,em que apresenta a manifestação da natividade do Senhor por cinco ordens de seres ou criaturas: os que são puramente materiais (corpos opacos, transparentes ou translúcidos, e corpos luminosos como as estrelas), que só têm existência; em seguida, por criaturas que têm existência e vida, como as plantas e as árvores; depois, por seres com existência, vida e sensações, como os animais; e ainda pelos que, além da existência, da vida e das sensações, são dotados de razão, como os seres humanos; finalmente, a incarnação de Deus foi proclamada pelos anjos, que,além dessas quatro qualidades dos homens, receberam também o intelecto. A descrição desse presépio cósmico é um exercício teológico que arranca da narrativa do "Liber Nativitatis Domini", como era chamado o "Evangelho de Pseudo Mateus" derivado de uma versão latina do "Proto-Evangelho de S.Tiago". Por ser um testemunho documental importante da procura de ordem e rigor do pensamento medieval em meados do sec.XIII (que é o tempo da "Summa" de S.Tomás de Aquino), valerá a pena irmos procedendo à sua análise neste período anterior ao Natal. Hoje, ficaremos pelo nosso boi e o nosso burro. Conta o Voragino, inspirado em fonte desconhecida,que, "partindo para Belém com Maria grávida, José levou com ele um boi, sem dúvida para o vender, para poder liquidar o imposto per capita (exigido no recenseamento romano) por si e pela Virgem, e para poder viver com o resto da soma; também levou um burro, certamente para transportar a Virgem. Ora, de modo sobrenatural, o boi e o burro reconheceram o Senhor e adoraram-no,flectindo os joelhos. E mesmo antes da Natividade, como relata Eusébio na sua crónica, os bois que lavravam disseram aos lavradores: "Os homens faltarão e as ceifas serão proveitosas."
 
Camilo Martins de Oliveira

PÄR LAGERKVIST: Tobias, o Peregrino

 

 

Aos 19 anos recebi a edição de 1965 da Estúdios Cor deste excelente livro de Pärlagerkvist , “Tobias, o Peregrino “ e ainda hoje o retenho em lugar de destaque no caos organizado da minha biblioteca.

Este autor, nascido na Suécia, recebeu o prémio Nobel em 1951 com o magnifico livro “O Barrabás”, mas cheguei ao seu encontro através de “Tobias, o Peregrino”, lendo de seguida “O anão” e mais tarde “O Barrabás”, a figura marginal nos Evangelhos condenado à morte e inesperadamente libertado pelo clamor popular, que o preferiu a Jesus.

Pareceu-me sempre que Lagerkvist era um desses vencedores do Nobel de que poucos falam. Pelo menos registei muitas omissões nas conferências de literatura estrangeira que percorri durante anos. Contudo, Pär Fabian Lagerkvist é um dos escritores que sempre preencherá espessamente o espaço que lhe guardou a história.

 

Quando a vida é um processo de desordem permanente, este escritor não a tenta ordenar, nem a enfeita, antes acredita que a liberdade e a criatividade são incessantemente compensadas pela recriação, e esta, é a desintegração inseparável do que é uno e único.

 

Assumir o risco das potencialidades do pensar e em consequência, da própria existência, é construir uma concepção de que se deve romper com a visão burocrática da vida, e aceitar a oportunidade de criar, de nos expandirmos e nos perguntarmos e de nos amarmos como uma cultura escrita, também pela mão do coração.

 

(…) esta é a cruz do ladrão! A minha cruz. Esta ouso eu tocar, porque não está limpa (…) esta é a minha cruz. Nesta podia eu mesmo ser crucificado. Desceu para outro lugar (…)aquele desconhecido que estava de costas com a cara voltada para o rio (…) era a sua própria cara (…)que mais ninguém ali se encontrava a não ser ele. Que o desconhecido era ele próprio. Continuou, e chegou a um lugar (…) precisamente aí encontrava-se uma pequena imagem de mulher(…) o vestido azul…E o sorriso…aquele sorriso bom, um pouco pálido (…) e contemplou o seu rosto enquanto adormecia (…) afundando-se na terra, onde ele ficou e morreu. E o rosto do homem parecia cheio de uma enorme paz (…) e tão vulgar na Terra, sobre si, separou-se da vida.

 

Enfim,

Quem seria, Quem fora? Que pensamento próximo tivera antes do momento em que em si acordara o homem do futuro, e enfim a pedra fria reclamara? Pensei eu.

Talvez que o encanto que este livro me aportou tenha vindo muito pela coincidência das viagens dos homens que peregrinam. Pelo abrandar e pela corrida que, de um jeito ou de outro, muito os faz atirar ao ar confettis e conselhos, jóias e bijuterias, malvas na direcção dos lotes de esperança que acumulam e depois, coincidência ou viagem, é seu dever testar o desastradamente nu que vai à agua, bem como, o vir dar à costa pois meu amor.

E muito em consequência de tudo isto, um dia, timidamente, ao dar a mão às palavras de Pär Fabian Lagerkvist entendi o quanto somos nesta terra tão novos que poucas são as vezes que nos pedimos proximidade.

 


Teresa Vieira

LONDON LETTERS

The Suffragettes, 1897

 

Shocking times se iniciam quando as senhoras embarcam em tão peculiar entrepreneurs’ utopia. Reivindicam o direito ao voto, representação parlamentar e liberdade político-social. O pasmo em Westminster é à dimensão da ousadia: not knowing and not keeping their place é grave. Ignoram-se; repete-se-lhes até o no/no-no-no/not at all/nope/no way/not yet institucional durante 60 anos. – J’adore l'angle de chat-souris! Mas teimosamente insistem, persistem e perseveram em levar a água a tal moinho. Dizem-se discriminadas. Organizam-se para a mudança. Defendem o poder da diversidade. – Oohh! Those terrible ladies. E em 1897, November 15, sob a batuta de Dame Millicent Fawcett, criam a National Union of Women’s Suffrage Societies que persuade o Stanley Baldwin Government a passar o 1928 Equal Franchise Act na House that man built.

O Daily Mail logo as cognomina como suffragettes. Gerações várias agradecem e assumem a etiqueta de Fleet Street com galhardia desusada. As origens do women's suffrage movement in Britain datam de 1866, quando surge “The Humble Petition” com a exigência do voto “To the Honourable the Commons of the United Kingdom of Great Britain and Ireland”. No ano seguinte, lê-se no Hansard, Mr John Stuart Mill put the case to Parliament: “[T]he time is now come when, unless women are raised to the level of men, men will be pulled down to theirs."

As reivindicantes mulheres permanecem sob sujeição dos homens e das regras da domesticidade by law and custom. Mas as ladies induzem já a new disorder of things. Radicalizam a defesa da sua causa. Bordam bandeiras, pintam cartazes, promovem colóquios, imprimem jornais e panfletos, aderem a arrojadas coreografias. Infernizam a vida de todos um pouco, em crescendo, no espaço público, mediático e até num ou noutro privado. Nem palavras, polícias ou aprisionamentos (with soup force-feeding) param os protestos de London a Birmingham ou Manchester & elsewhere. Simplesmente não atingem o sentido do Stop it!

Num sad moment envolvem mesmo uma figura icónica da nação. − No, not The Queen! Em 1908, November 15th, o Rt Hon Home Secretary visita Gloucestershire. Chega de comboio a Bristol e troca ainda amenidades na estação local quando se aproxima a sweet lady. Ora, nada na Sandhurst Academy preparara o cadete para tal, o mesmo sucedera ao oficial de cavalaria dos Queen's Hussars e até ao Empire hero de três das Queen Victoria’s wars, igual também para o correspondente do Morning Post que escapara dos Boers via Transvaal até Mozambique, na Portuguese East Africa. O registo judicial inscreve que Mrs Theresa Garnett “repeatedly struck” um atónito Mr Winston Churchill, “screaming «Take that in the name of the insulted women of England!».”

O female suffrage sempre inspira, qual musa de Athens, a fine art que é a political wit, tal qual adianta a marcha democrática da complex equality e avança contra quanto seja visto como economic tyranny. Um absurdo otimismo escolta o processo libertário, sob a eccentricity do “Women, use your vote,” embora a aquisição dos direitos políticos não obtenha equivalência no acesso às posições de poder. Mrs Virginia Woolf esgrime um colorido argumento final no aceso debate entre Suff-rage-ttes e Antis: "the history of men's opposition to women's emancipation is more interesting perhaps than the story of that emancipation itself” (A Room of One's Own, 1929). − In short, an embarrassment.

 

St James, 20th November

 

Very sincerely yours,

 

V.

A VIDA DOS LIVROS


de 26 de Novembro a 2 de Dezembro de 2012

 

«Brèsil Baroque – Entre Ciel et Terre» é o catálogo da exposição promovida pela União Latina no Petit Palais de Paris, em 1999-2000, quando o Secretário-Geral da União Latina era o Embaixador Geraldo Cavalcanti, que encontrámos na visita que fizemos à Academia Brasileira de Letras. É uma peça fundamental para o conhecimento do Barroco de Minas Gerais, a que regressamos, na sequência da nossa viagem de Setembro passado.

 

 

CONTINUANDO A DEAMBULAÇÃO
Voltamos a Vitorino Nemésio na sua deambulação de há sessenta anos no Brasil. E relemo-lo, sentindo a força das suas palavras: «Viajar pelo Brasil não é só conhecer a maior fundação de Portugal a distância e um país novo e imenso que originalmente se afirma sem renegar tais raízes: é criar uma nova perspetiva da pátria no regresso. A afinidade e o paralelo orientam-nos a visão transatlântica de uma realidade histórica solidária» («O Segredo de Ouro Preto e Outros Caminhos», IV). De um lado e de outro do Atlântico, há um diálogo complexo que se estabelece, de encontro e desencontro – sim, porque é natural que haja igualmente desencontro quando falamos de realidades irmãs. Senti-o intensamente quando falei com António Cândido (com o meu querido amigo Celso Lafer) – nesta relação há sempre a afinidade e a distância de quem se emancipa. É isso que encontramos em Sérgio Buarque de Holanda («Raízes do Brasil»), em Caio Prado (na «Formação do Brasil Contemporâneo»), ou, antes, em Gilberto Freyre (de «Casa Grande e Senzala»). Aliás, Fernando Henrique Cardoso, analista fino da modernidade brasileira, faz a síntese dessa encruzilhada riquíssima, considerando o que nos une e nos distingue, que Nemésio bem antevê na sua impressão final, após a viagem iniciática de 1952. Notei isso mesmo há dias, num encontro fraterno na Cidade da Praia com Corsino Fortes, Fátima Bettencourt, Vera Duarte, Filinto Elísio e Eileen Barbosa – num ágape frugal em que falámos da cultura como um domínio onde as diferenças se reforçam mutuamente, na procura do que é comum. E se referimos uma língua de várias culturas, também lembrámos (e sem contradição) uma cultura de várias línguas. Assim ocorre na complexa relação luso-brasileira, e Cabo Verde é um caso bem interessante, a meio da ponte, como placa giratória no Atlântico Sul e no sul da Macaronésia…

 

ENCONTRO DO BRASIL E PORTUGAL
Mas regressemos ao escritor do «Paço do Milhafre»: «Onde a terra e o clima resistiram à vontade uniformizadora do colono, onde o aborígene e o brasileiro histórico chegaram a formas de uma civilização espontânea e própria, as diferenças robusteceram a consciência do idêntico, e Brasil e Portugal gravitam na imaginação do reinol num milagroso equilíbrio de ajustes e contrastes». Aqui estará, de modo evidente, a chave desta relação manifestada no que dizíamos nesse grupo de amigos em Cabo Verde (onde, além dos crioulos e da morna, não poderia ter faltado a reflexão sobre as crises que nos assolam). De facto, «uma língua de várias culturas» realiza-se através de ajustes e contrastes, e nunca de quaisquer tentações uniformizadoras ou paternalistas. É uma história «antológica e ontologicamente» cruzada entre a Europa e o Brasil, como nos diz Filinto Elísio. E foi isso mesmo que também se debateu, ao fim de uma amena tarde de Setembro, em Ouro Preto, na mágica Vila Rica, com Ângelo Oswaldo, prefeito da cidade, e Leonor Xavier, no velho Bar Toffolo, sobre a relação luso-brasileira - «um rio que corre sem parar». Falamos de Nemésio (naturalmente), mas também de José Aparecido de Oliveira e da sua paixão lusófila, de Agostinho da Silva, de Saudade e de seu pai Jaime Cortesão, de Murilo Mendes, de Carlos Drummond, de Manuel Bandeira, de Cecília Meireles, de Vinicius de Moraes, e igualmente do nosso querido António Alçada Baptista, de Jorge de Sena e de Odylo Costa Filho. Discretear sobre uma amizade em dois sentidos é sempre apaixonante. E tudo isso depois de lembrarmos o ouvidor Tomás António Gonzaga, o inconfidente Dirceu de Marília, de irmos ao Museu da Inconfidência (relendo de memória Cecília Meireles) e de invocarmos o barroco em todo seu esplendor – o primado do movimento e da curva, que os modernos seguiram com paixão - na Igreja de S. Francisco de Assis da Penitência (uma das sete maravilhas de origem portuguesa no mundo), onde começamos a sentir a força do genial António Francisco Lisboa e de seu pai, Manuel, mas também na Ordem Terceira do Carmo (com risco inconfundível do Aleijadinho e pinturas de Athayde).

 

NO TOFFOLO, ENTRE MEMÓRIAS
Na manhã seguinte, a névoa rodeava o Itacalomi (ou Itakurumi), lá no alto da montanha, a rocha que permitiu aos bandeirantes encontrar o lugar onde tinha sido descoberto o ouro paladiado, enegrecido pelo óxido de ferro. Mas essa neblina dissipou-se por completo até ao momento em que deixámos Ouro Preto, lembrando-nos Carlos Drummond de Andrade a parodiar o dia em que se esqueceu de marcar a refeição no Hotel Toffolo: «tudo se come, tudo se comunica, tudo no coração é ceia». Vila Rica fica-nos no coração. Lembramo-nos da tarde memorável: o estilo joanino de Nossa Senhora do Pilar, a segunda igreja mais rica em talha dourada do Brasil, depois do Convento S. Francisco e Ordem Terceira em Salvador da Bahia (outra das sete maravilhas), a Igreja Matriz de Nossa Senhora da Conceição, outro projeto de Manuel Francisco Lisboa, com o Museu do Aleijadinho (apoiado por técnicos portugueses, com o empenhamento de Maria João Bustorff), além da Fonte de Marília, a jovem Maria Doroteia Joaquina Seixas, e do Museu das Minas. E como esquecer o Museu do Oratório, com os diversos e preciosos oratórios de alcova, de algibeira, de viagem, de bala, de conchas, as lapinhas, além da imponência dos conventuais?


A CIDADE DE MARIANA…
A viagem, contudo, tem de prosseguir e dirigimo-nos, nessa manhã do dia da Independência para cidade de Mariana, não sem que nos detivéssemos na Mina de Passagem, que esteve em atividade de 1819 a 1985. Descemos no pequeno trem até às galerias, que ainda se podem visitar. Ficámos a 150 metros de profundidade, com uma leve sensação de claustrofobia, recordando a vida curta dos mineiros, sujeitos a graves doenças profissionais pelo efeito tremendo do pó de quartzo. Já chegados à primeira cidade de Minas Gerais, dirigimo-nos à Sé, onde ouvimos um divinal concerto de órgão de Josinéia Godinho, a tocar Cabanillas, Pablo Bruna, Dietricht Buxtehude, George Böhm e Albinoni no órgão único de Arp Schnitger, instalado em 1753 na catedral. Tudo leva a crer que este teria sido destinado a Mafra, mas o som foi considerado menos adequado para um convento franciscano. A origem da cidade remonta aos primórdios, à época em que os bandeirantes chegaram em busca de ouro no fim do século XVII. Inicialmente o governador António Albuquerque criou o arraial de Ribeirão do Carmo, que se tornou Vila Real de Nossa Senhora do Carmo, tendo a designação de Mariana sido adotada só em 1745, em homenagem à Rainha D. Maria Ana de Áustria, casada com D. João V. Na Praça principal, deparamo-nos com as imponentes Igrejas de Nossa Senhora do Carmo e de S. Francisco de Assis, em frente aos Paços do Concelho e à cadeia, tendo no centro o Pelourinho identificado com as armas do Império – a esfera armilar, as estrelas e a cruz de Cristo. Mas, dileto, o tempo urge e ainda temos de chegar a Congonhas com a luz do dia, para a justíssima homenagem a António Francisco Lisboa…


Guilherme d'Oliveira Martins

A PROPÓSTO DE «DESTE LADO DA RESSURREIÇÃO»

 

Entre a primeira e a segunda cenas do segundo acto da sua ópera Thaïs, Jules Massenet introduz um "intermezzo" musical que intitulou "Méditation Religieuse": é nesse momento que se dá a conversão da prostituta em santa nascente, enquanto Athanaël, o monge que a motivou ao arrependimento e à busca do amor espiritual de Deus,começa a sofrer a fortíssima tentação de Eros. A "Méditation" soa-nos aí como o fluir sereno de uma alma que, renunciando aos prazeres ruidosos do mundo, se vai refugiando na doçura silenciosa do misterioso amor de Deus. Mas o mesmo tema musical se repetirá, primeiro, na cena inicial do terceiro acto, quando Thaïs, ingressando no mosteiro do deserto, diz para sempre adeus a Athanaël e este, ao som da "Méditation", dolorosamente compreende que jamais voltará a vê-la. E, depois, já no fim desse terceiro e último acto da ópera, no dueto final, quando Thaïs entra na morte e na visão de Deus, Athanaël mais não pode do que gritar o amor erótico que apaixonadamente o submergiu. Assim, da novela homónima e intencionalmente anticlerical de Gustave Flaubert, mais do que o libreto que dela Louis Gallet escreveu para a ópera, é a música de Massenet que nos encaminha para uma meditação sobre a condição humana, dividida entre "La Pesanteur et la Grâce" como a definiu Simone Weil. Nesta história, há duas pessoas que se encontram e seguem em direcções opostas, mas o mesmo mistério marca o destino dos seus percursos.


Afinal,estamos,como no filme de Joaquim Sapinho,"Deste lado da Ressurreição". Aqui, entre a terra e o céu, entre o amor humano e a força telúrica do Guincho, que conduz ao silêncio sombrio, à austeridade acolhedora para além de qualquer acolhimento sensível de uma serrs de Sintra enclausurada no Convento dos Capuchos, também não é a flagelação castigadora do corpo de Rafael que o libertará. Frente à tentação da transcendência, e no silêncio de Deus sobre a terra, as águas iniciais, o espírito também chama ao Agapè, ao amor dos outros, em que incarnou o que era o Outro absoluto, para ser tudo em todos. "Deste lado da Ressurreição" é uma Peregrinação Interior"  -  diria o nosso António Alçada Baptista  -  contada com um pudor manso e secreto: entre a gravidade e a graça, sentimos,misteriosamente, como Bernanos, que "tudo é graça". Os vislumbres de amores humanos são, uns, superficiais e fugitivos, enamoramentos sem mais; mas outros, consubstanciados nas relações familiares, ganham a densidade (que é outra "pesanteur") que o amor, a única virtude intemporal, tem de aguentar do lado de cá do Apocalipse. Lembro-me dessa imagem de S.Tomás de Aquino, aureolado de sabedoria e santidade, mas com o indicador sobre os lábios, impondo à boca o silêncio da contemplação. A história de Santa Thaïs é recolhida das "Vitae Patrum" pelo dominicano genovês Tiago Voragino, que a inclui na sua "Legenda Aurea". Aí, Athanaël chama-se Padre Panúcio que, contrariamente ao monge de Flaubert, se mantém fiel à sua vocação e votos.Mas a versão mais antiga que dela se conhece é em grego do sec.V, em que o nosso monge se chama Serapião. Esta "vida" pode ser facilmente comparada a outra, cuja versão mais antiga, em grego também, data do sec.VII: a de Santa Maria Egipcíaca, cortesã que se converte e vai viver 47 anos no deserto. Esta hagiografia inscreve-se na tradição de Maria Madalena, pecadora arrependida, que data dos primeiros séculos do cristianismo e tem a ver com a conversão pela função salvífica da penitência. Curiosamente, nas histórias de que falamos, à luxúria da carne associa-se a acumulação de riquezas, fruto daquela.Todavia,porque é que a fraqueza carnal será, ao longo da vida bimilenária da Igreja, mais estigmatizada como pecado do que a ganância ou a injustiça social? Haverá algum paganismo nessa demonização de Eros? "O pagão  -  diz Denis de Rougemont em "O Amor e o Ocidente" na belíssima tradução do saudoso João Bénard da Costa  -  não podia deixar de fazer de Eros um deus: era o seu poder mais forte, o mais perigoso e o mais misterioso, o mais profundamente ligado ao facto de viver." (Ocorre-me aqui essa definição de Georges Bataille: "L´érotisme c´est l´afirmation de la vie jusque dans la mort"...). E,depois de dizer de Agapé,do amor cristão, que ele é "a afirmação do ser em acto", Rougemont escreve: «Foi Eros, o amor-paixão, o amor pagão, quem espalhou no nosso mundo ocidental o veneno da ascese idealista  -  tudo o que um Nietzsche injustamente censura ao cristianismo. Foi Eros e não Agapè que glorificou o nosso instinto de morte e quis "idealizá-lo". Mas Agapè vinga-se de Eros salvando-o. Porque Agapè não sabe destruir e não quer destruir nem sequer aquilo que destroi. Não quero a morte do pecador,mas a sua vida».
   
Camilo Martins de Oliveira

Marguerite Yourcenar : a morte conduz a carruagem, mas a vida também.

 

Em 1980 Marguerite Yourcenar foi a primeira mulher eleita à Academia Francesa de Letras. Contudo, não vos venho falar das Mémoires d´Hadrien ou da L'Œuvre au Noir e o seu herói Zénon, Sous bénéfice d'inventaire ou sobre os seus poemas, ou mesmo sobre a excepção que constituía Marguerite quando, aos 8 anos de idade lia Jean Racine, e aos 12 anos já lhe ensinava, seu pai, a língua grega.

 

Trago aqui hoje Marguerite, mulher antiquíssima, e o seu conjunto de três novelas que compõem o livro Como A Agua Que Corre.

 

E nada mais existe senão a vida que passa por nós, nos transforma e nos esclarece, assim nestas palavras de Helena Vaz da Silva a este livro, neste dar conta da vida por dentro.

 

De facto, ao reler Como A Agua Que Corre pergunto-me, e levo-vos a pergunta: quantas vezes já chamámos o feiticeiro das descobertas que há nos nossos olhos e logo as lágrimas exorcizaram doenças de alma da ilha que todos somos? Natanael, o personagem de Um Homem Obscuro, uma das novelas deste livro, encontrava clareiras de esclarecimentos vitais espetadas em arame farpado, diria, e depois qual o preço da curiosidade que guarda os segredos da vida?, que guarda os filhos que partem quando lhes dá na real gana?

 

Anna Soror , personagem de uma das outras novelas do livro antevia e via a vida à luz de candeias, numa interpretação desencorajada, como se as intempéries fossem realidades cristalizadas e repetitivas, às quais não há que fazer face, antes poisar sempre os olhos fatigados no irmão amado, breve tempo e único amor que quebra grades.

 

Mais tarde a novela Uma Bela Manhã prossegue o percurso de Natanael que, de alma límpida, não vive apenas a sua vida, mas toda a vida, quer a da mortalha quando faz de toldo sob o sol, quer a de rei ou mendigo, de bobo do príncipe ou do As you Like it, e eis que Marguerite já só acresce, o quanto morte e vida conduzem a carruagem, e tanto é o bastante à essência do que nos esclarece.

 

Teresa Vieira 

LONDON LETTERS

Good morning, Mr President

 

 

Curious pay-back time. A America reelege o seu very first black President para four more years.  Mr Barack Obama regressa ao Oval Office em tempos intensos, com a globalização a acentuar dinâmicas centrífugas do poder no plano externo e o desemprego a vigiar o voto nos 50 estados federados, tudo complementado com a costa doméstica atlântica a gerir uma social catastrophe que testemunhos locais dizem tremenda. – Nous sommes tous New-Yorkais, mais certains plus que d'autres! O exercício na missão quase salvífica com que o democrata foi inicialmente investido na White House adelgaça as expetativas para este mandato, e tal experienciado realismo é benéfico para o Free World. − Personally, I never bet against America. No início da new journey em Washington DC, sem end of history ou clash of civilizations num mundo de multipolaridades, probably com Mrs Hilary Rodham Clinton preparando voos de fôlego fora do State Department, parabenize-se o lance de 300 milhões de US citizens.

 

 

É a conservative moment [so sorry, Mr Rove], a celebrar o Tory credo de Lord Salisbury: "Whatever happens will be for the worse, and therefore it is in our interest that as little should happen as possible." Quatro anos após a Obamania 1.0, pois, na oportunidade soberana do secreto sufrágio, assim o entendem – by design – os jovens, as mulheres e a emergente maioria demográfica hispânica. As relações transatlânticas progrediram justamente em finais de Oitocentos por via da visão de Robert Gascoyne-Cecil. O 3rd Marquess of Salisbury, e derradeiro Premier a governar o executivo from the House of Lords, estreita a Atlantic bridge no grau da vulnerabilidade isolacionista na Pax Britanica and what was coming. Mas é até a subida ao altar que faz a diferença. Os laços bilaterais tornam-se a special relationship quando as Americans debutants casam mais e mais into British aristocracy, para felicidade dos gentry’s sons e delícia dos leitores de Mr Henry James. Se a diplomacia matrimonial abre à união dos patrimónios e harmonia dos interesses, já no mesmo lado das trincheiras, o tributo de sangue nas World wars esvanece os últimos vapores do Boston Tea do King George III no Yankee Doodle de 1776. E a historical counsciousness aí está, heavy, na Afghanistan war, que já soma tempo similar ao conjunto dos conflitos maiores do século passado. Neste domingo 11st se respeitaram dois minutos de silêncio at 11 a.m. para lembrar the fallen British service personnel.

  

A Europa esteve ausente no debate entre democratas e republicanos. Uma omissão sensível quando a pressão política sobe nas margens do Atlantic ocean face ao diminuendo económico que coteja as vagas de deslocalização do power & trade para diversas geografias, e o que se lhes associa em termos do ajustamento. O American friend, e não só, está circunspeto quanto à febre negra da dívida que lavra no old continent.

 

  


Do outro lado do planeta, a dia e meio de viagem aérea, também a People’s Republic of China procede à certificação do poder na cúpula do one-party regime. Sai Hu Jintao, entra Xi Jinping. Desta feita, não por eleição popular, mas por seleção partidária do líder para a próxima década, num congresso comunista onde o tema da corrupção domina os trabalhos e invoca agora máxima do Baron Acton. Escreve John Dalberg-Acton em missiva endereçada em 1887 ao Bishop Mandell Creighton: “Power corrupts, absolute power corrupts absolutely”. Em cenário completely different, Mr Bo exalta o electoral noise democrático e vinca que as political differences são “a mark of our liberty.” – They are indeed, Mr President. I hope.


St James, 13th November


Very sincerely yours,


V.

A VIDA DOS LIVROS


de 19 a 25 de Novembro de 2012

 

«O Cardeal D. Henrique – Obra impressa» de João José Alves Dias (Biblioteca Nacional de Portugal, 2012) é mais do que o catálogo da mostra bibliográfica que assinalou o centenário do nascimento do Cardeal Infante, uma vez que nos apresenta um repositório de grande interesse histórico e bibliográfico, com revelações inéditas, reveladoras de elementos até agora desconhecidos e de uma faceta nova da vida, obra e da ação literária, teológica e legislativa do último monarca da dinastia de Avis.

 

 

UM INFANTE VOCACIONADO PARA RELIGIOSO
D. Henrique (1512-1580) era irmão mais novo de D. João III, tendo nascido longe da possibilidade de ser herdeiro da coroa, por ser o quinto filho varão de D. Manuel I e de sua segunda mulher D. Maria de Aragão. Destinado à vida religiosa exerceu, ao longo da sua vida de 68 anos completos, os mais influentes cargos na vida eclesiástica, mas também política. A lista é, aliás, impressiva: Prior Comendatário do Priorado de Santa Cruz de Coimbra (1524-1537), Arcebispo de Braga (1533-1540), Inquisidor Geral do Reino (1539-1579), Arcebispo de Évora (1540-1564), Comendatário e Abade do Mosteiro de Alcobaça (1542-1580), Cardeal (1545), Legado Apostólico (1553-1559 e 1562-1578), Arcebispo de Lisboa (1564-1570), Arcebispo de Évora (1574-1578), Regente do Reino (1562-1568 e 1574) e Rei de Portugal (1578-1580). A Biblioteca Nacional de Portugal acaba de assinalar, essencialmente, a sua ação como autor, dinamizador, patrocinador e mecenas de obras impressas, sendo impressionante o número e a diversidade de espécies bibliográficas, registando-se nesta mostra cerca de setenta e cinco. E o facto é que não se trata apenas do número das obras, mas da sua importância e significado.

 

MEDITAÇÕES E HOMILIAS
Não faremos nesta nota uma análise biográfica do eclesiástico e do político, mas salientaremos as novidades dadas a lume nesta ocasião, demonstrativas da importância do papel desempenhado pelo Cardeal D. Henrique, que não pode hoje ser considerado como uma nota de rodapé na historiografia portuguesa. Antes do mais, importa referir a autoria de D. Henrique das «Meditações sobre a origem do Pater Noster», pequeno livro, impresso em Évora, datado de 1557, sem indicação de autor, que vinha sendo atribuído à autoria de Frei Luís de Granada, O.P. (1504-1588). Aliás, ainda recentemente, o eminente bibliógrafo Alexander Wilkinson, em «Iberian Books», Boston, 2010, dava esta obra como sendo do dominicano. Frei Luís foi confessor do Cardeal D. Henrique, tendo tido um papel muito relevante na obra espiritual do futuro rei. Ora, agora parece não haver dúvidas sobre a autoria destas Meditações, de 1557, (graças a Joãso Alves Dias), até porque surgem publicadas «ipsis verbis» na obra «Meditações e Homilias» do Cardeal, editada em 1577, sendo diferentes das que constam no «Memorial dela Vida Christiana» de Fr. Luís de Granada (1565). Acresce que este religioso da Ordem de S. Domingos, ao apresentar a obra «Meditações e Homilias» afirma: «porque, que cosa mas para maravillar, que ver um Príncipe engolfado en un Reino, así eclesiásticos como seculares, así de guerra como de paz, (el cual apenas tiene una hora que sea suya, para dar audiencia a quantos la piden, así grandes como pequeños) y que com todo esto, entre tantos cuidados y desasosiegos, tuviese el corazón tan libre y tan quieto, que no pueden sentir, ni escribir, si no aquellos, cuya vida no se emplea en outra cosa, que en tratar y comunicar com Dios en soledad. Y donde los otros príncipes cansados de los negócios, toman por refrigerio reír, y passar tiempo en cosas si provecho, aqui se toma por refrigerio, en esse poco espacio que queda de los negócios, ocupar el corazón en estes tan católicas y sanctas consideraciones, de las quales procedió esta escritura». Os textos que constituem a edição de 1577 correspondem, assim, à preocupação pessoal do Cardeal, no sentido de, no espírito de Trento, aproximar mais o ensino da Igreja dos fiéis, ainda que vivessem fora dos centros onde se faziam as grandes pregações.

 

ATIVIDADE MUITO INTENSA
Em todas as ações em que se empenha, vemos uma fibra muito especial, de homem ativo, atento, dotado de sensibilidade ordenadora e rodeado de bons colaboradores. Lembre-se a fundação, em 1559, da Universidade de Évora, a partir do Colégio do Espírito Santo, que seria atribuída à Companhia de Jesus e que correspondeu a uma decisão de grande significado. Após a morte de D. João III, e depois de um período em que a regência coube à Rainha viúva, as Cortes de Lisboa (1562) atribuíram a regência do reino ao Cardeal D. Henrique, como governador do reino de Portugal, em nome de seu sobrinho-neto D. Sebastião, até 1568. É significativo que tenha sido o Cardeal-Infante o escolhido para tal encargo, considerando que a Rainha-viúva poderia ter mais condições, em abstrato, para prosseguir a regência. Há, no entanto, fatores políticos que certamente terão pesado, sobretudo ligados à grande influência política, bem como ao prestígio e legitimidade, que o Cardeal tinha adquirido. Em 1564, tendo renunciado ao arcebispado de Évora, assumiu a arquidiocese de Lisboa, no ano seguinte ao encerramento do Concílio de Trento (1545-1563). Coube-lhe, assim, a tarefa fundamental de adaptar a sua Igreja às profundas alterações operadas pela reforma tridentina. Deste modo, modifica as constituições do arcebispado, tendo lugar duas séries de Extravagantes (1565 e 1568), uniformizando assim as cerimónias religiosas e os atos de culto, estes através do «Cerimonial» (1568). No entanto, desiludido com o curso dos acontecimentos no reino, renunciou ao cargo de Arcebispo de Lisboa (1570), recolhendo-se ao Mosteiro de Alcobaça, de que era comendatário e Abade. Voltaria, porém, a exercer a regência em 1574 por ocasião da primeira viagem de D. Sebastião ao Norte de África, regressando depois a Évora como Arcebispo. Em 1578 com a derrota de Alcácer-Quibir e a morte do jovem Rei, o Cardeal foi aclamado monarca legítimo, segundo as regras gerais de sucessão. Em matéria de publicações, os especialistas são unânimes em considerar este período como o mais difícil de documentar quanto a obras impressas, uma vez que a constituição de Extravagantes em anexo aos cinco volumes das Ordenações Manuelinas levou à destruição de muitos exemplares volantes, como estava determinado em nome da segurança jurídica. O Cardeal preocupou-se, no fundo, em modernizar as leis e em dotar o reino de instrumentos de uma boa e estável governação – na sequência da importante experiência havida como Arcebispo de Lisboa, na transposição das novas normas resultantes de Trento. Fez, deste modo, reimprimir os principais códigos, com especial ênfase para a reedição dos cinco livros das Ordenações (1565). É de salientar o grande rigor que encontramos no labor legislativo e regulamentar – que vem na sequência do que realizou nas responsabilidades episcopais. Destaque-se, aliás, a publicação das Leis Extravagantes (do período de 1521 a 1567), ideia sua concretizada por Duarte Nunes do Leão, um dos mais notáveis legistas do seu tempo. A edição de 1569 é, aliás, dedicada a D. Sebastião, justificando-se, uma vez que se tornava indispensável «ajuntar o que andava espalhado, apartar o que estava em uso do que era revogado, trazer à luz o que estava esquecido, descobrir e desenterrar o que estava oculto, abreviar o que estava comprido, sem mudar o sentido e substância, reduzir a método e ordem o que não tinha, emendar o que por as muitas trasladações andava depravado». E acrescente-se o que ainda Duarte Nunes escreveu na mesma dedicatória ao jovem Rei: «entre muitas cousas dignas de memória, que o Cardeal Infante D. Henrique, vosso tio, fez, no tempo que por Vossa Alteza regeu estes reinos, per que seu nome se perpetuará, não se deve contar por menor a invenção desta compilação. Porque por saber que a principal guarda das leis consiste na notícia delas, e querendo tirar os inconvenientes que antes havia, com tanta eficiência me mandou e encomendou o cargo dela, que pudera ser boa testemunha, do zelo que sempre teve da justiça e bem comum». E, como afirma, o Prof. João Alves Dias estas palavras são de tanto maior significado quanto é certo que foram escritas num momento em que o Cardeal «se encontrava retirado da Corte, em exílio, em Alcobaça, e em rotura com D. Sebastião».


Guilherme d’Oliveira Martins

MEDITAÇÃO JAPONESA

 

A abertura do Japão ao convívio internacional, em meados do sec.XIX e após mais de dois séculos de reclusão imposta pelo shogunato Tokugawa, começou por promover algum comércio e a instalação de pequenas colónias de estrangeiros em Kobe e Yokohama. Mas depressa produziu efeitos de outra ordem de grandeza, quer no tocante à "modernização" tecnológica,económica e social, jurídico-política e administrativa do Japão - que aliás gerou dilemas e crises de identidade cuja "digestão" ainda hoje não está terminada - quer ainda quanto à projecção de representações tradicionais da cultura nipónica sobre o gosto e as artes do ocidente europeu e norte-americano.

Gravuras dos mestres do ukiyo-e, como Hokusai e Hiroshige, quimonos e leques, cerâmicas e lacas, desenho de objectos e arquitectura de edifícios impuseram-se com tal veemência ao gosto europeu, que logo se espalhou uma moda a que, em França, se chamou "japonisme"...

Lembremo-nos da influência daquelas gravuras nos cartazes de Toulouse-Lautrec, da sensualidade e erotismo da "japonaise au bain" de James Tissot e outras cenas de banho do Degas. Sem esquecer a elegância e os cenários nipónicos de tantos quadros do Whistler ou da Mary Cassat, nem o "Portrait du Père Tanguy" do Van Gogh, os guaches de Gauguin sobre papel recortado pele forma de leques japoneses. E há tantos outros motivos nipónicos na pintura de Manet, Pissarro e muitos outros!

Nas artes decorativas, em porcelanas de Worcester, da Minton e da Martin Brothers, em pratas e casquinhas da Christofle e da Tiffanys, em vidros do Daum ou do Gallé. Generalizou-se o uso de biombos e a decoração japonizante de portas, paredes e móveis, e outro jeito de arranjar flores. No vestuário e acessórios, novos padrões de tecidos, quimonos, leques e sombrinhas.

O ocidente de fim de século descobre, mitifica e imita o gosto japonês. Mas que fazem os japoneses coevos? Mandam políticos e samurais, juristas e médicos, engenheiros e artistas plásticos, à Europa e aos EUA, para conhecerem as nossas constituições e o nosso direito, a nossa medicina e os nossos hospitais, os nossos caminhos de ferro, estradas e pontes, as nossas indústrias, os nossos exércitos, as nossas escolas.

Num esforço de emulação do que entendem ser as melhores realizações do génio ocidental, os japoneses da era Meiji erguem fábricas e estaleiros navais, montam um Estado com imperador, parlamento, constituição e organização política e administrativa. Constroem ferrovias, pontes e telégrafos, organizam o serviço militar obrigatório. Abrem universidades, empresas e bancos. Fazem de Ginza, em Tokyo, uma zona de comércio de luxo, com avenidas largas e grandes armazéns, para suplantar o que de semelhante viram em Londres, Paris, Berlim ou New York.

Mas não se pode falar de ocidentalização do Japão, para além da importação, adaptação, assimilação e eventual melhoramento de técnicas sistemas. A alma nipónica recebe e rejeita tudo isso, serve-se do que é instrumentalizável, mas não se converte. A era Meiji formou a matriz do pensamento e das reacções japonesas no sec. XX até aos nossos dias. Diz-nos um escritor nosso contemporâneo: "Desde essa época e até hoje, a civilização ocidental, pelos nossos contactos e fricções com ela, foi-nos pródiga em benfeitorias e, simultâneamente, fez-nos sofrer. Mais precisamente, os sofrimentos do Japão - ou talvez mesmo da Ásia - começaram quando os ocidentais se tornaram, aos nossos olhos, mais belos do que os asiáticos. E essa mágoa ou, pelo menos, esse mal estar permanece em mim, que aqui vivo, sem conseguir liquidá-la..."

Não resisto a transcrever um trecho de uma entrevista que Shosaku Endo, escritor católico japonês, há anos deu à revista Kumo:

"Fui baptizado em criança,isto é, o meu catolicismo foi um pronto a vestir. Depois, tive de decidir se faria o fato adaptar-se ao meu corpo ou se o deitaria fora, para vestir outro. Muitas vezes senti que queria desfazer-me do meu catolicismo, mas finalmente fui incapaz de o fazer. Não foi só não deitá-lo fora, foi sentir-me incapaz de o deitar fora. A razão disto talvez seja ele ter acabado por se tornar parte de mim. O facto de ter penetrado tão profundamente em mim quando era jovem era um sinal de que, pelo menos em parte, se tornava numa coextensão minha. Mesmo assim, não conseguia desembaraçar-me do sentimento de tratar-se de algo emprestado, e comecei a perguntar-me o que seria o meu "ser eu mesmo"... Penso que isso é o pântano de lama japonês em mim. Desde que comecei a escrever romances até hoje, esta confrontação do meu "ser eu mesmo" católico com o "ser eu mesmo" que lhe está subjacente tem, como refrão repetido por um idiota, ecoado e voltado a ecoar no meu trabalho. Senti que tinha de encontrar maneira de reconciliar ambos." Endo fala de pântano japonês como metáfora de uma condição cultural que suga sentimentos e ideias e dentro de si os transforma.
Qualquer processo de aculturação é necessariamente complexo e demorado. Quando ouço por aí o pregão de receitas de cura socio-económica e financeira "à americana" lembro-me sempre de um chinês famoso que,há poucos anos atrás,respondeu assim à pergunta sobre quais teriam sido os efeitos da Revolução Francesa de 1789 na China: "Ainda é demasiado cedo para o dizer.."

 

Camilo Martins de Oliveira

Tristessa, a obra preferida de Jack Kerouac

 

Nascido numa família franco-americana iniciou um dia uma viagem que continuaria a fazer pelo resto da vida, e assim a «geração Beat» surge de um folego narrativo na conhecida obra “On The Road”.

 

Contudo, Tristessa foi o livro da emoção de Kerouac. Disse um dia ao Eduardo Prado Coelho que Kerouac tinha nesta Tristessa mostrado a noite tranquila e pálida, a noite dos degraus inexplicáveis, e o quanto os gatunos do que não vacila o tinham empurrado a ele, sem asas.

 

O Eduardo acrescentou «e como ele sabe escrever a desolação do mundo tão delicadamente, tão sem vírgula ou ponto final que interfira.»

 

Na minha curiosidade de ler Kerouac encontro razões para a Nossa Senhora azul e mutilada ser em si mesma uma insistência na compaixão pelo sofrimento humano.

 

De braço em volta da cintura de Tristessa, a amargura das vielas de pé de página da vida, são afinal os anjos sem céu que, de compreensão infinita, lhe povoam os sonhos e o fazem ter amado um dia, a prostituta de nome Esperanza.

 

E enlaça-a, enlaçando-se num amarrotado desfalecimento pelo qual não opta, mas pelo qual reconhece o tropeço das mortes. Assim, foge de si para si, querendo dormir na única passagem que o entende. E ei-lo que parte. E ei-lo que fica pela notícia dos seus livros.

 

No caminho, há pelo menos três dias que se pintam de lápis de cor, aguarelas de uma só hora. E pode-se mozartear a vida onde escutamos o nosso trecho, dir-te-ia.

 

E quem te anuncia Jack, ainda hoje, em toda esta distância, e te assegura que tudo está bem, é muitas vezes aquele que te quer livrar de uma parte da tua dor. É aquele mentiroso que te leva um pouco de saibro do céu, tão certo quanto estares nele sentado.

 


Teresa Vieira

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