Saltar para: Posts [1], Pesquisa [2]

Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

Ítalo Calvino: a pulsão da vida.

 

Há bastantes anos a esta parte que, antes das férias da Páscoa, levo aos ouvidos dos meus alunos, os resumos possíveis da trilogia de Calvino: “O visconde cortado ao meio”, “O barão trepador” e “O cavaleiro inexistente”. Antecipo algum estranhar no auditório, pois, como pode uma aula de Finanças Públicas, transformar-se num tempo que lhe supera o limite do tempo que tem e do território que domina e do mundo que se lhe não resigna?

 

Contudo, é meu o projecto bem definido e calculado, quando, recorrendo à visibilidade da palavra, à capacidade possível de desenvolver a imaginação dos meus ouvintes, sigo e arrisco propor-lhes o que significam as propostas de Calvino e o que têm significado na minha vida também como docente.

 

Não lhes escondo que pretendo estimular projectos de leitura, reflexões ao conhecimento de cada um e dos outros, inquietar e criar leitores autónomos que nunca mais dispensem livros e leitura, e acrescento que é sonho meu!

 

Tem acontecido sempre, nestas transmissões de palavras com as quais vou relatando a trilogia,  devo mencioná-lo, tem acontecido até hoje, resultarem como momentos extremamente poéticos, momentos de algo profundamente novo, de essências escutada no silêncio total do auditório, de concertos com a realidade que me cerca e que rompe, naquela meia hora, um inovar do não aprisionamento.

 

Já senti, no final destas minhas tentativas de comunicação do conteúdo da trilogia, o quanto o paraíso que não nos prometeram era ali.

 

Afinal o cavaleiro inexistente, que para mim sempre se sentaria à cabeceira de cada interrogação por responder, existia e existe assim, de jeito impossível quando dele se faz vida.

E falo de vida irreversível, de vida que sem reservas e a cada um, se entrega sua.

 

E vou procurando a luz mais viva com o decorrer dos minutos que passam no relatar. E levo o barão agora aborígene, a fazer amor num socalco de quase-leito que uma árvore lhe reservara à noite de núpcias, pelo mesmo fio condutor que um dia lhe fez surgir o balão, e nele partiu sem volta ao mundo que o amara e não o compreendera ou que ele compreendera e não amara.

 

E o quarto de hora final chega com uma especial atenção pelos olhares que me dirigem os alunos, e já procuro a multiplicidade de conhecimentos e de recursos, que me ajudem à articulação encadeada, que me faz ter numa mão aberta, a parcela do mal intenso, do mal total do visconde cortado, e na outra, na outra mão, o bem também total do visconde que, no sossego benzido, não atribui voz a expoentes mudos que se queriam tanto fazer-se ouvir.

 

E vou expondo a elaboração rigorosa de um plano de trabalho deste escritor: a escrita dos seus livros, a escrita consistente, com uma definição precisa de objectivos, até ou para lá da exactidão de Ítalo Calvino quando nos disse:

«Um clássico é um livro que nunca acabou de dizer o que tem a dizer».

 

E quero tanto, naquele momento e que ao longo dos anos, os meus discentes lhe possam retribuir noutras leituras a abertura de janelas aos princípios, e quero tanto, dizia, que no final quase sussurro

 

«E para as vossas férias grandes se vos disser que una notte d’inverno un viaggiatore vos aguarda, é pois, por vos espreitar uma outra capacidade de “ver” para lá dos inícios.»

 

No ano passado terminei a aula - a tal, anterior às férias da Páscoa -, ainda acrescentando mais ou menos isto:

 

«Pois meus senhores, a importância do orçamento de base zero é essa mesma. Da base branca, ao seu conteúdo, o percurso de me fazerem sentir a professora medular da aula de hoje, far-nos-á a todos justificar, o quanto a receita da alma é meio e fonte 

única, que justifica a despesa que a bem sustente.»

 

Enfim, a pulsão da vida que Ítalo Calvino me faz sentir, também tem passado por tudo isto, e por em cada mês poder ser Abril.

 


Teresa Vieira