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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

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O ESQUECIMENTO DO OUTRO…

 

"Quem se diminuir crescerá; quem se engandecer diminuirá". Estas palavras têm para nós uma ressonância evangélica. Tal como são de indiscutível atualidade as seguintes: "Há três espécies de perigos no mundo dos homens: o primeiro, ser pouco virtuoso mas receber muitos favores; o segundo, ser pouco competente mas ocupar um posto bastante elevado; o terceiro, não ter realizado nada de extraordinário mas serem-lhe atribuídos chorudos emolumentos". Estes pensamentos são retirados do capítulo XVIII ("Do mundo dos homens") do Huainan zi, tratado de filosofia taoísta e forte influência confucionista, elaborado, no sul da China, na segunda metade do sec. II antes de Cristo, sob a égide de Liu An, príncipe de Huainan e neto do imperador Liu Bang, fundador da dinastia Han. Esta obra revela, subjacentes aos ensaios que a constituem, ou à preocupação de síntese entre o pragmatismo político de Lao Zi e o individualismo místico de Zhuang zi, um conhecimento enciclopédico das lendas e narrativas, tradições religiosas e filosóficas, ciências e técnicas, eventos políticos e outros, dos tempos iniciais da era Han, como de outras anteriores. A ilustração ou fundamentação dos pensamentos expressos no Huainan zi é feita pela referência a textos e memórias de antanho (e não foi este também o método que Frei Tiago Voragino usou, quinze séculos mais tarde, para a sua Legenda Aurea?). A título de exemplo, transcrevo este passo: "Que quer dizer: quem se engrandecer diminuirá? Outrora, o duque Li de Jin declarou a guerra, no sul, a Chu, a leste, a Qi, a oeste, a Qin e, no norte, a Yan. Por todo o lado, o seu exército fazia lei e impunha, sem hesitar, o seu poder. Conseguiu assim concluir uma aliança em Jialing,"o belo outeiro", com senhores feudatários. Então, ufano das suas vitórias e cheio de arrogância, levou uma vida de deboche e tiranisou os dez mil povos, de tal modo que nenhum ministro o quis assistir, nem senhor algum dos outros principados quis prestar-lhe o seu apoio. Mandou executar um dos seus principais ministros e tornou obsequiosos os seus íntimos. No ano seguinte, aquando da sua incursão em terras do clã Jiangli, Luang Shu e Zhonghang, raptaram-no à força e prenderam-no. Nenhum senhor feudatário o quis socorrer, nem as cem famílias se afligiram. Sofreu portanto a morte, ao terceiro mês. Com efeito, numerosos eram os príncipes que alimentavam a ambição de aumentarem os seus territórios e imporem ao respeito os seus nomes por vitórias militares e ganhos de guerras ofensivas, mas o duque Li de Jin acabou por perder a vida e o principado. Eis um exemplo do que dissémos acima: quem se engrandecer diminuirá". Liu An, apesar de neto, primo e tio de imperadores - e ele mesmo ter sido considerado para o efeito - foi liquidado "por razões de Estado". Como, aliás, uns séculos depois, numa Palestina fora da órbitra do Império do Meio, o seria Jesus Cristo... Os demónios que nos habitam não gostam da verdade que nos obriga a ser humildes e generosos. E tem sido enorme, monstruoso, o mal que o orgulho e a ganância têm trazido, por milénios e séculos, à história dos homens. "A essência do pecado --- dizia o dominicano francês Jean Cardonnel --- é a estupidez". A prepotência e o egoísmo são o esquecimento do outro e, por aí, a afirmação de um vazio. Pois nada somos sem os outros connosco: o ser humano é, ontologicamente um ser em relação. A crise das sociedades hodiernas é a do pronunciamento humano - desde logo necessariamente solidário - da globalização que queremos. Se esta for a da imposição de leis ditas "do mercado", que são simplesmente a aposta dos actuais detentores do poder financeiro num jogo que lhes parece convir-lhes,talvez nos enganemos e perdamos o futuro. Não sei se iremos ainda a tempo de corrigir o rumo, mas sejamos, pelo menos, fiéis ao nosso princípio: o Homem como medida de todas as coisas. Porque nas guerras que já se adivinham num horizonte cada vez mais negro, seremos nós os duques Li de Jin.

 

Camilo Martins de Oliveira