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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

Sylvia Plath

Em quanto mar de Hiroshima?  

Em quantas viagens por livros de inícios de guerra perpétua?

Decididamente, nos momentos mais raros estava sozinha

e a certa altura as tulipas vermelhas  e Sylvia

 

I didn't want any flowers, I only wanted

To lie with my hands(…)

 

Pois todos se passeiam por corredores sob cujas pedras me ofereço, parecia dizê-lo pelo poema

 “As Pedras”

Esta é a cidade onde os homens se consertam. Repouso num grande leito.

 

 

 Afinal, ninguém diz:

A perfeição é horrível, ela não pode ter filhos.

( Perfection is terrible, it cannot have children.)

 

 

 


«Ted? Ted Hughes meu poeta, meu marido tão amado, vou assim muito depressa para te dizer que “a poesia ensina a cair”. Saberás que assim dirá um dia Luiza Jorge pelas páginas de Prado Coelho?

 

Vou depressa sim que morro jovem. Ted?, minha ausência, meu canteiro. De muitos infelizes modos me sinto sagrada, ridícula e amo-te. Aluguei a casa que me escreve para a morada de onde nunca consegui sair. Eis.»

 

Estas as palavras que tinha anotado para um dia dizer de Sylvia Plath.

 

Dentro de uma esfera  auto-interpretativa e muito íntima , bem lá fundo, reside a escrita, a poesia de Sylvia, às vezes, menos analisada do que o culto vertido à sua vida.

 

Sempre senti que o mistério que me trouxe Sylvia Plath passaria pela evasão de um conflito tão redondo que nunca a harmonia sossegaria. Nenhuma camisa de noite lhe cobrira corpo ou alma. A trincheira era aberta por dividir irremediáveis compartimentos estanques: para mim deste modo, ela, Sylvia, seria sempre uma e outra ao mesmo tempo, sem cessar de nascer e de morrer.

 

E tudo nos aproxima do aprender que do tempo, da família, do mundo, do escuro e da claridade nos vamos libertando, como quem se afasta salutarmente das invenções extenuantes.

 

Enfim, falaremos até que a simplicidade mágica nos escute.

 

Teresa Vieira

 

  • Hoje, dia 15 de Fevereiro, na TSF, Carlos Vaz Marques falará deste livro.

LONDON LETTERS

The Dardanelles campaign, 1915

 

As perdas humanas são brutais. A First World War (1914-8) sacrifica toda uma geração europeia nas trincheiras de um ao outro lado do continente. Quase um milhão de jovens britânicos morre em combate ou de ferimentos aí sofridos. Chérie, Charles Darwin était en visite à Flandre.

Cerca de metade das baixas é identificada e sepultada (in named graves), mas só as famílias reconhecem o desaparecimento dos demais. A iliteracia cobra bárbaro preço. Se o soldado caído amiúde não possui nome, o seu tributo de sangue tinge de vermelho as papoilas que massivamente invadem os campos de batalha entre France e Belgium. O horror envolve outros 2,27 milhões com traumatismos vários e 8% de combatentes inválidos. Some called it the modern warfare, others the loss of innocence! Mesmo com London transformada num misto de aquartelamento e de enfermaria na retaguarda, Westminster tarda a entender a dimensão das estatísticas de morte. Já uma fatídica operação militar obriga a revisão política do modo como se desenrola o conflito. A tragédia da Mediterranean Expeditionary Force em Gallipoli causa também baixas em Whitehall.

Em 19 February 1914 arranca a Dardanelles Campaign. A estratégia é abrir nova linha da frente numa guerra que sempre clona as trincheiras sem outro ganho senão multiplicar a carnificina. Pela primeira vez envolvendo tropas australianas e neo-zelandesas, assim globalizando o conflito a longínquas latitudes, as forças britânicas lançam uma invasão anfíbia contra os turcos a oeste da Gallipoli Peninsula. Objetivo: conquistar Constantinople e atacar Germany by the back door. Se a ideia é boa, no terreno corre muito mal. A ofensiva naval começa sob mau tempo, o inacreditável acontece e o desembarque só se efetiva em 25 April, com o atraso a facilitar organizada resistência otomana. Os atacantes perdem 214 mil vidas.

 

A batalha turca é um mega desastre militar. Em dado momento ocupa um décimo do total dos combatentes ocidentais, cerca de 470 mil homens, comprometendo recursos superiores aos dos combates em Italy e idênticos aos afetos na Mesopotamia, Egypt e Palestine ou Salonika. Mas novo impossível nela acontece. À catástrofe no teatro de operações acresce insólita rixa no War Council, com divisão das águas entre Winston Churchill, First Lord of the Admiralty e paladino da causa, e John Fisher, o First Sea Lord que se lhe opõe e quer a sua descontinuidade. Após meses de desgaste e a também inconcebível substituição do comandante Sir Ian Hamilton, a força expedicionária retira em December 1915 – January 1916.

O fiasco suscita pronta comissão parlamentar. As conclusões saem antes do conflito terminar e mais cabeças rolam nas hierarquias. A operação fora fatalmente comprometida por vários fatores, entre os quais uma débil avaliação das dificuldades previsíveis no ataque e a global insuficiência de recursos a tal necessários. Sem fulanizar o cargo é também mencionado que tudo isto era “the duty of the Secretary of State for War,” nenhum outro senão Mr Churchill.

Anos depois, aos microfones da BBC no 1940 Bastille Day, o Premier ecoa as lições de Gallipoli quando paira a ameaça da invasão alemã. E é um aristocrático aprendizado do filho de Blenheim: "This is no war of chieftains or of princes, of dynasties or national ambition; it is a war of peoples and of causes. There are vast numbers, not only in this Island but in every land, who will render faithful service in this war, but whose names will never be known, whose deeds will never be recorded. This is a War of the Unknown Warriors.”

 

St James, 19th February

 

Very sincerely yours,

 

V.

A VIDA DOS LIVROS


de 25 de fevereiro a 3 de março 2013

 

Na passagem dos cinquenta anos da morte de Aquilino Ribeiro (1885-1963) merece evocação uma das suas obras mais influentes e atuais. «A Casa Grande de Romarigães»(1957) é um livro de maturidade e de referência. O grande cultor da língua portuguesa manifesta-se em toda a sua riqueza, indo ao encontro das raízes da identidade e da língua.

 


Óleo de Maluda.

 

CASO SIGNIFICATIVO…
«A Casa Grande de Romarigães» é na literatura portuguesa e europeia um dos casos mais significativos de reflexão, defesa e salvaguarda do património histórico e cultural como realidade viva. Está ao lado, com uma identidade irrepetível, das sagas britânicas ou nórdicas. Como um dos grandes autores da literatura portuguesa do século XX, com um vocabulário riquíssimo, que é, ele mesmo, depositário de uma simbiose fecunda entre a língua erudita e popular, Aquilino Ribeiro é em «A Casa Grande» um escritor na maturidade – que nos oferece uma obra-prima, que vai ao encontro do que é a conceção moderna de «património cultural», confluência do tempo, entre o passado, o presente e o futuro. Não há património sem a criatividade das pessoas, sem pedras mortas e pedras vivas, sem a alma perene das casas e das referências materiais, as marcas e as coisas, em diálogo com a natureza. Foi com emoção que, há cerca de um ano, a convite do meu amigo Mário Cláudio, revisitei esse fantástico universo rural do Alto Minho, e senti os fantasmas de Romarigães a tocarem-me no ombro, com hospitalidade e boa cara… Emocionadamente, revisitei Paredes de Coura, e lembrei, por insistência do escritor de «Camilo Broca», as referências das minhas próprias raízes antigas. Como é extraordinário recordar o velho couto de Fraião e olhar as cumeeiras da Serra de Agra, o monte Calvário e os penhascos de Rubiães. E como são acolhedores a «gente de velha cepa» e o «sangue retinto suevo». O velho solar dos Menezes e Montenegros, a memória de um amigo do meu tio Joaquim Pedro, o Conselheiro Miguel Dantas, avô da mulher de Aquilino, D. Jerónima, e sogro de Bernardino Machado. E com que entusiasmo genuíno, de grande artista, Mário Cláudio me recordou com amizade essa encruzilhada de referências. E não podemos esquecer as magníficas trutas, belas e saborosas, cujos viveiros foram criados pelo remoto D. Telmo: «cultivava-os para que aquela água fosse mais um poceirão cristalino, inane e deserto, uma rã coaxava, soberana e reinante. Para que se tornasse um mundo vivo, colorido e na escala de seu fausto senhorial. Havia deleite maior que contemplar as trutas do deflúvio matutino, com a água do córrego a cair do batedoiro dos seixos, oxigenada da frescura do orvalho e do azul do céu?!». Mas na manhã fria, quando nos aprestávamos a deixar Paredes, vimos, em imaginação e lembrança literária, multiplicarem-se «as rolas nas corutas dos pinheiros», e as lebres corriam «nas circunvoluções dos outeiros debaixo do céu lavado». E ali, ao lado, na quinta onde dormimos, com o testemunho do Manuel Villaverde Cabral, depois do frugal dejejum, víamos «os contornos do regadio», com «a vinha de espaldeira e enforcado». Ler «A Casa Grande» é fazer uma imersão total na terra acolhedora e rica, do verde escuro minhoto de que fala o conde de Ficalho, para diferenciar a terra pátria. E Romarigães? Eis a «facúndia tropical», a «efabulação pícara» (de que fala António Valdemar) e a «inspiração luxuriosa, tipo indiático dos templos consagrados a deusas que tinham infinitos braços para abraçar voluptuosamente o mundo e infinitas tetas para darem de mar o leite da paz e conformidades. Dominava todo este espaço uma fertilidade extraordinária. Ao pé da casa, o fidalgo galego renovou o espigueiro, lauto e garboso, verdadeiro templo de Ceres».

 

A BELA RUÍNA DO AMPARO
Hilário Barrelas, entusiasmado com Romarigães, não esconde as fraquezas, mas deixa-se animar pelas memórias. Ler interminavelmente o romance, a saga, é um prazer extraordinário. «Fica em Romarigães, na bela ruína do Amparo. Tinha caído o telhado na linda capela, os caseiros queimaram as portas, a talha do altar e do coro, e deixaram desaparecer imagens e painéis. No solar uma das paredes da construção filipina esbarrigara e acabou por dar em terra. Pelos telhados entrava água como por cestos rotos e as tábuas do soalho, se lhes punham um pé em cima, rangiam e estalavam, escancarando-se em precipícios traiçoeiros para as lojas. Para cúmulo, o Estado tomara conta do salão principal para aula de primeiras letras, o salão onde D. Telmo de Montenegro, o verdadeiro, o espanhol, o quixotesco, dera festas de truz às duas fidalguias de Minho e Galiza. Não restavam alizar direito nem uma janela intacta. Os móveis que eram de estilo carregara-os um ferro velho para o Porto por tuta e meia. De gorra com um caseiro ladro e tramposo, os netos do Conselheiro haviam alienado águas que pertenciam às quintas e procederam a derrubadas consecutivas na mata, em cujas brenhas se caçara o javali, sempre que tinham necessidade de dinheiro para as suas pândegas, encalvecendo-a miseravelmente. De modo que o homem dos espaços abstratos, o sonhador, o Hilário Barrelas das “midnettes” da Rue Gay Lussac, só encontrou verdadeiramente incólume o olhar de Nossa Senhora do Amparo. Mas tanto bastou, ajudado duma mirada angustiosa do Cristo setecentista, que assistira na fumareda da casa dos caseiros a suas rixas e bodeganas, para se declarar rendido».

 

HOMENAGEAR UM ESCRITOR É TORNÁ-LO VIVO
A melhor homenagem a Aquilino é lê-lo, sempre, e lembrá-lo. Português difícil? Talvez. Mas genuíno e saboroso. Como dissemos, aqui encontramos o melhor da defesa do património e da identidade. E em «A Casa Grande de Romarigães» tudo se soma, num resultado positivo: o património material, as tradições e os costumes, bem como o trabalho aturado e moroso da língua-mátria. As pedras encontram-se com o linguajar. As plantas, os vinhedos, o milho nos espigueiros, as aves, as trutas, as lebres – tudo se funde numa descrição magnífica do que temos para ver. Romarigães é o símbolo da memória viva. E o certo é que a ruína depressa pôde tornar-se lugar de imaginação, acordando a história viva… Como quis Aquilino.


Guilherme d'Oliveira Martins

LEMBRANDO TRISTÃO E ISOLDA.

 

Escrevo em noite tranquila de sábado de Carnaval. Vi TV e jornais, surpreendeu-me a insistência publicitária na promoção do "Dia dos Namorados" que, por coincidência com o calendário do tempo litúrgico  -  o qual, curiosamente, assemelha a perspetiva escatológica do ocidente cristão à noção cíclica do tempo circular dos orientais -  com a celebração adventícia e, para nós, pós-modernista, da "festa" de S. Valentim, apaga da "comunicação social" a nossa "Quarta-Feira de Cinzas"... A fé é  -  ou melhor deve ser, para os crentes de qualquer religião que acreditem que Deus não é a minha verdade nem o meu código, mas o Senhor da minha libertação  -  motivo de esperança e vocação de amor. O propósito do ciclo quaresmal, que esta 4ª feira anualmente inicia, é lembrar-nos o paradoxo da condição humana: a morte que não é fim,mas regresso ao estado inicial, onde somos recriados. Memento homo quia pulvis es et in pulverem reverteris. Aqui, mutatis mutandis, também não estamos longe de filosofias orientais.... Com a diferença de que acreditamos que a nova criação resulta do envolvimento histórico de Deus na condição do mundo e das pessoas que criou. Esta fé, ou simples crença, ou mesmo só um mito fundador da nossa cultura, torna a memória das nossas cinzas uma celebração bem mais vital para a sociedade hodierna do que o festejo comercial de entusiasmos efémeros. O amor  -  e penso no amor humano, de corpo e alma  -  mesmo esse pode, e deve, ser celebrado na consciência da nossa precaridade, mas também no conforto "terreal" que nos oferece a promessa da plenitude por vir. A moral cristã não é maniqueísta. E, por isso mesmo, não pode ser leviana. O funcionamento da consciência cristã é como o aparelho digestivo. Já Jesus dizia, que não é o que entra em nós que nos torna impuros, mas o que de nós sai. Será, quiçá, "nosso dever e nossa salvação" rever uma qualquer insistência mórbida num cristianismo contrito, que nos leva a esquecer a alegria natural da promessa que é a vivência do amor em cada dia, em cada um de nós segundo a sua vocação e a circunstância da sua vida. Até na celebração eucarística, a postura sofredora dos comungantes lembra, a quem de fora assista, mais uma condenação do que a libertação dos filhos de Deus. Por outro lado, sou negativamente sensível a essoutra manifestação de precaridade, a tal a que Zigmunt Bauman chamou "amor líquido", como a vemos no "Dia dos Namorados". Revela, afinal, o apego contemporâneo à aparência agradável das coisas, que determina, precisamente ao invés das "Cinzas", o esquecimento ou o disfarce da morte. Assim regresso a uma carta que Camilo Maria me escreveu: "Os quatro primeiros "Essais sur l´histoire de la mort en Occident" são os textos das quatro conferências que Phillipe Ariès proferiu, no início desta década (1970) na John Hopkins University, nos EUA. O primeiro tem por título "La mort apprivoisée" e cobre mil anos de uma mesma atitude perante a morte, tal como a encontramos desde a "Chanson de Roland" (em Roncesvales, Rolando, Olivier e o arcebispo Turpin, todos sentem que a morte se aproxima e os vai tomando), ou nos romances da "Távola Redonda" (a morte de Lancelote, p. ex.) e de "Tristão e Isolda" (esta, vendo Tristão morto, sabe que morrerá também e a seu lado se deita, virada para o Oriente), até, séculos mais tarde no "Dom Quixote": ´minha sobrinha, diz ele, muito serenamente, sinto-me perto da morte´. Esta anuncia-se sem sinais sobrenaturais ou mágicos, mas simplesmente por circunstâncias naturais e uma convicção íntima. Como nos "Três mortos" de Tolstoi  -  que Ariès refere  -  quando um velho cocheiro agoniza e uma mulherzinha lhe pergunta ´como vai isso?´ e ele responde ´a morte está aí, eis o que é´. Da sua convivência com os mujiks, gente do campo, aprendeu o grande escritor russo a resposta natural à pergunta que ele mesmo formularia, na hora da sua morte, numa estação de província: ´E os mujiks? Como morrem os mujiks?. Cada um aceita a sua morte e todos convivem com a morte dos outros. Saltarei agora as conferências sobre a "Mort de soi" e a "Mort de toi", muito embora, meu caro Camilo Lusitano, ainda tenhamos de debater  -  pese a nossa diferença de idades  -  essa questão da aproximação de Eros e Thanatos que atraiu tantas atenções místicas, literárias e artísticas, sobretudo no século XVI... Pois quero hoje chegar à contraposição da morte domesticada (apprivoisée) com a morte interdita,ou tabú. Mas não me esqueço daquele jantar que tivémos (foi no "Le Muniche" ou no "Le Diplomate"?) em que, dessa tua sageza juvenil que sempre me "iscou", me atiraste a afirmação lapidar de Georges Bataille: ´L´érotisme c´est l´affirmation de la vie jusque dans la mort"... Sabes bem  - e o que agora pronuncio será, talvez, mais do que um laço de sangue, ou uma pertença de classe, contigo, uma atitude cultural comum  -  que, sobretudo para um aristocrata, já não é afirmar ou impor. Importante, sim, é partilhar o gosto e o conhecimento que, por privilégio de nascimento ou condição, nos foi dado, de modo a que a partilha possa despertar noutros espíritos a ousadia de novas descobertas. Um aristocrata que só olha para trás é um idiota... Não vou, portanto, formatar ideias. Vou simplesmente deixar-te para reflexão, dois passos dos tais "Essais" do Ariès: "Hoje, a iniciativa passou da família, tão alienada como o moribundo, para o médico e para o hospital. São eles os patrões da morte, e, também, do momento e das circunstâncias da morte, e verificámos que se esforçam por obter do seu paciente um "acceptable style of living while dying", um"acceptable style of facing death". A tónica cai no "acceptable". Lendo isto, receio perceber que o aceitável é hoje o que nos convém, e não o como e o para que fomos feitos... Mas volto a Philippe Ariés, quando cita o sociólogo inglês Geoffrey Gorer que, num artigo publicado em 1955, sob o título "The Pornography of Death", afirmava que, no sec. XX, a morte substituiu o sexo como principal tabu ou interdito. Traduzo do Ariès: "Dantes, dizia-se às crianças que tinham vindo ao mundo numa couve. Mas elas assistiam à grande cena do adeus, à cabeceira do moribundo. Hoje, são iniciadas, desde tenra idade, na fisiologia do amor, mas quando já não vêem o avô e perguntam por ele, dizem-lhes que está a descansar num jardim, entre flores."

Camilo Martins de Oliveira

To be or not to be



To be or not to be: that's the question

William Shakespeare (1564)


A sua identidade?

 


Hamlet: a peça, situada na Dinamarca. Os solilóquios que embelezam e interrompem a linearidade de um personagem-vida, concordando e discordando de si mesmo. O relativismo, o existencialismo e a companhia do eu-céptico. 
 

 


Sonho de uma noite de Verão amores, fadas e humanos e elfos belos e luminosos que orientam o amor.

 

 

Romeu e Julieta :  ó meu lábio, peregrino e solitário…

 

 

Estavam os artistas em pé e por entre nós declamavam, do soneto, as palavras que na folha anunciavam a abertura da estação deste teatro construído a céu aberto e que tão generosamente nos aguarda em cada Maio.

 

Sempre antes de ir releio justas traduções que me não trazem a música da escrita que a cada um soa por florestas, antes me sugerem caminhos adentro das pinhas mais fechadas, e aceito.

 

De que poder tens força tão temível,
(…)

jurar que a luz não favorece o dia?

(…) de onde tens tal fazer, de mal, agrado,

(…) em força e garantia tão dotado

Que o teu pior, em mim, é sumo bem?

 

 

Também Love’s Labour’s Lost (Trabalhos de amor perdidos): num afinal jurar conhecer o que está proibido à mente, num mergulhamos nos livros em busca da luz que nos cega, e desse facto se não importa.

 

O despertar do poder do destino quando tudo permanece tão vivo até aos nossos dias que revisitar todas estas obras é reconhecer que nunca fora delas se viveu.

 

E como os sentires por indícios têm o mérito de operar sondagens em profundidade, aqui deixo outro “iceberg” de Shakespeare, claro!

 

Blow, blow, thou winter wind

Thou art not so unkind

As man´s ingratitude

Freeze, freeze thou bitter sky,
That does not bite so nigh
As benefits forgot

(…)

Thy sting is not so sharp
As a friend remembered not.

 


TERESA VIEIRA

LONDON LETTERS

The Fabian Society, 1884



Um dos enigmas da política britânica é a persistência secular do fabianismo. Este é o rótulo para an old victorian wine que os continentais denominam socialismo, mas cuja produção insular deve menos às teses marxistas e mais ao humor, aos ensinamentos estratégicos do general romano Quintvs Fabivs Maximvs e às ideias, práticas e políticas públicas geradas na Fabian Society. ‒ Le votre industrieuse voisin à St James. O grupo navega diversas vagas radicais, financia-se saborosamente com dinheiro de Tories e Liberals, institui a London School of Economics e ajuda a erguer o old e o new Labour Party. – Well, well. Britain’s oldest, leftist and brightest political think tank! A 27 February 1900, em reunião entre ativistas e sindicalistas, no Memorial Hall de Farrington, co-decide a criação de "a distinct Labour group in Parliament,” que cooperará com qualquer partido para promover legislação favorável aos interesses trabalhistas. Como o legado da representação em Westminster não bastasse, com promulgação do horário laboral ou da educação universal, abre ao patriotismo internacionalista e é contribuinte líquido do projeto europeu.

A moral tale, indeed. Em tempos de razão para a Rome global, com histórica resignação do Pope Benedict XVI do Petrine ministry, e de emoção para a Rome imperial, com o popular 4th State of Union Adress do President Barack Obama, a tradição progressista irrompe na cena mundial. Ora, sempre o fabianismo revela fé nas pessoas e nos povos. The Fabian Society surge em 1884, na melhor esteira da London club land e do Third Reform Act em torno do alargamento eleitoral. A exemplo dos clubes Constitutional e National Liberal, adota a politics como ementa principal no programa das festas, mas corta com a participação elitista do modelo aristocrata e ergue o que o Dr Seth Thevoz, da University of Warwick, classifica como "the first of a new breed of palatial late Victorian establishments." Se a ideologia é uma Labour’s utopia, assume-se como espaço de debate entre livres-pensadores e viveiro de ideias, quadros e métodos práticos para a gestão local, o governo central e o concerto europeu. A galeria de fundadores desta power house está gravada em curioso vitral de 1910 dependurado na LSE e inclui quota da inteligência social-democrata como Sidney e Beatrice Webb, Edward R. Pease, H. G. Wells, Leonard e Virginia Woolf, Emmeline Pankhurst, Graham Wallas ou George Bernard Shaw.

Os fabianos surgem com o propósito de aperfeiçoar a sociedade. Tudo começa quando o jovem corretor Mr Pease reúne amigos para debater "a moral awakening as the foundation for social and political reform." Concebem um clube democrático de elite, "whose ultimate aim should be the reconstruction of Society in accordance with the highest moral possibities." O encanto inicial é percetível em carta de Mrs Edith Nesbit a Ada Breakell datada de February, 1884: “On Friday we went to Mr. Pease's to tea, and afterwards, a Fabian meeting was held. The meeting was over at 10 ‒ but some of us stayed till 11.30 talking. The talks after the Fabian meeting are very jolly. I do think the Fabians are quite the nicest set of people I ever knew.” Já Mr Shaw regista dilemáticas decisões no grupo: “It is hard to say which cut the more foolish figure, the Tories who had spent their money for nothing, or the Socialists who had sacrificed their reputation for worse than nothing.”
“Educate, agitate, organize” é a fórmula que ecoa numa casa onde debateram Clement Attlee, J. M. Keynes e William H. Beveridge. The Fabians é a "fact-finding and fact-dispensing body," assente na persuasão em variado formato sobre questões políticas e socioeconómicas. Não por acaso climático, a British Nation dispõe de um governo misto aberto ao melhorismo progressista. Afinal, como nota Walter Bagehot, o conservadorismo é doutrina própria de “happy States.”

 

St James, 14th February

 

Very sincerely yours,

 

V.

A VIDA DOS LIVROS


de 18 a 24 de fevereiro de 2013

  

«Governação Inteligente para o Século XXI – Uma Via intermédia entre Ocidente e Oriente» de Nicolas Berggruen e Nathan Gardels (Objectiva, 2013) é uma reflexão estimulante e discutível, como tudo o que vale a pena, que não apresenta receitas ou programas, mas sim valiosas pistas para debate.

 

 

UM FENÓMENO DURÁVEL
A crise financeira, cujos efeitos continuamos a sentir, não é uma circunstância que possa ser vista como um mero fenómeno conjuntural e passageiro. Estamos, como aliás em 1929, perante uma manifestação de contradições insanáveis que têm a ver com uma profunda transformação do sistema económico. Não se trata propriamente do fim do capitalismo, mas sim da demonstração, mais uma vez, de que o mercado, só por si, não pode responder integralmente às exigências de regulação económica, do mesmo modo que o Estado também não tem capacidade para solucionar os problemas novos da globalização. Já sabíamos que o mercado obriga à existência de instrumentos independentes de regulação, da mesma maneira que se foi tornando evidente que o Estado tradicional precisaria de partilhar a sua soberania com outros Estados no sentido de coordenar ações de estabilização da economia e de coesão social, no entanto, tal como aconteceu nos anos trinta, com a ação de Franklin D. Roosevelt no «New Deal», torna-se indispensável encontrar as bases de um contrato social, capaz de harmonizar as potencialidades da iniciativa individual e as virtualidades de uma programação racionalizadora. Como salienta Felipe Gonzalez, no prefácio ao livro, há que considerar a emergência do fenómeno supranacional, a implosão do sistema financeiro em 2008, a adoção da moeda única europeia, a nova lógica da democracia representativa, perante a circulação mais rápida da informação e a emergência das redes sociais, a evolução das democracias industriais e de consumo num contexto da globalização assente na incerteza, além do facto de o G-20 se ter tornado o único embrião possível de regras de governação global, no âmbito de uma realidade cada vez mais interdependente, em campos tão decisivos como o mundo económico e financeiro e o meio ambiente. O Estado-nação deixou, assim, de ser a esfera de realização por excelência da soberania representativa e até da identidade como sentimento de pertença. Não perdeu atualidade, mas está em profunda transformação, tornando-se uma instância mediadora entre a lógica supranacional (cada vez mais decisiva, como a crise atual tem revelado, designadamente pelo papel desempenhado pelo Governador do BCE no aliviar de tensões no ano de 2012) e a lógica regional e local (bem patente na afirmação da autonomia das regiões no seio dos Estados). O papel das redes sociais, os efeitos da urbanização acelerada, a dispersão das capacidades produtivas, a mudança no relacionamento entre governantes e governados – tudo obriga a repensar a organização das sociedades num contexto global, em que as influências heterogéneas se chocam e complementam. E o certo é que os autores consideram que o diálogo entre Ocidente e Oriente é, e será, significativamente importante. E notam hoje um certo fascínio pelo pensamento oriental e de algum modo pelo mandarinato – pela capacidade de olhar mais longe em termos de interesses gerais, sem prescindir de um elemento legitimador, que para o mundo ocidental tem de se ligar às eleições livres e ao pluralismo político. E o tema europeu deu uma nova importância a essa necessidade de conciliar o longo prazo e a liberdade política.

 

COMO SAIR DESTA CRISE?
Como poderá a União Europeias sair desta crise sem uma melhor capacidade para se inserir na realidade global, recuperando a relevância e salvaguardando a defesa dos legítimos interesses dos cidadãos? A interdependência e a cooperação têm, assim, de tomar o lugar da soberania «westefaliana», incapaz já de responder eficazmente aos novos problemas. Recusando uma perspetiva abstrata ou de meras boas intenções, o que está em causa é perceber que uma civilização global tem de assumir desafios comuns da humanidade, voltando a ouvir Kant. Como? Ligando a sabedoria prática coletiva do Ocidente e do Oriente, com recurso simultâneo às tecnologias da era da informação – assumindo que o conhecimento pode ser partilhado por todos, alargando os diversos horizontes. De facto, não se conseguiu organizar uma sabedoria boa. As desigualdades persistem e agravam-se, afetando a coesão, a confiança, a eficiência e a equidade. Estamos perante um estranho paradoxo: quanto mais rápida e rica, interligada e complexa, é a civilização atual, da ciência e da técnica, menos inteligente se tornou a forma de nos governarmos. Vemos isso no mundo da comunicação, perante a complexidade, prevalecem as simplificações e os «sound-bites», que são o contrário do que precisamos. Uma governação inteligente exige o primado de uma cidadania ativa, crítica e responsável. Precisamos de ligar: orientação, representação, participação, diversidade, informação e pluralismo. Em síntese, exige-se tempo, mediação e reflexão. Tempo para ponderar, mediação para legitimar e reflexão para antecipar. Não podemos governar por sondagens, que dariam lugar à tirania do imediato e da anomia massificada (de que fala Canetti), nem correr atrás de reivindicações ilusórias. Precisamos, sim, de equilíbrio entre escolha pessoal e responsabilidade, indivíduo e comunidade, liberdade e estabilidade, bem-estar e bom consumo, humanidade e natureza, presente e futuro. A cultura uniformizadora da «diet-coke» é pobre e insuficiente. Só a diversidade cultural é fator de progresso. Temos de dar atenção ao «circuito do pensamento global», a partir da partilha de conhecimento entre diferentes identidades. É uma transferência global de genes, uma diferenciação competitiva – que, nas políticas sociais, deve ser diferenciação positiva, em nome da justiça redistributiva e da igualdade. Os autores falam, assim, de «evolução da evolução»: combinando a explosão do conhecimento na ciência e a revolução da informação. Toda a humanidade precisa de trabalhar pela sobrevivência. A governação inteligente é a aplicação prática de uma mundividência evoluída, de modo menos conflituoso, mais sábio e mais cooperativo, elevando-se acima do modo primitivo da evolução humana.

 

UM DIÁLOGO FECUNDO
Um mundo onde Ocidente e Oriente se habitem mutuamente é o que devemos construir – no qual as pessoas e os cidadãos partilhem o mesmo acesso aos meios de poder e onde os governantes possam superar as novas provas. O que está em causa é desenvolver uma democracia informada, uma meritocracia responsável e uma subsidiariedade efetiva, em que a legitimidade se aproxime das pessoas concretas, numa lógica humana. Não se trata de pôr em causa, mas de aperfeiçoar, a democracia representativa – baseada no equilíbrio e separação de poderes, no pluralismo político, no completamento da democracia industrial e do consumo, através da aprendizagem, da educação, da ciência e da cultura. Se a informação circula é essencial articular comunicação e complexidade, legalidade, legitimidade e justiça, transparência e prestação de contas. Há, de facto, uma nova lógica de distribuição de poder no mundo pela dispersão de capacidades produtivas, diversidade das redes sociais, consideração do longo prazo, da duração e da antecipação e pela exigência de prevenção e de pedagogia cívica. No fundo, o bom governo é aquele que for capaz de antecipar. A metamorfose de que fala Edgar Morin liga, por tudo isso, complexidade, tempo e conhecimento. Só assim se pode pôr as pessoas como prioridade, fazendo convergir progresso e sabedoria.


Guilherme d’Oliveira Martins

AVISTANDO AO LONGE AS PIRÂMIDES…

 

 

"Cheguei ao Cairo, instalei-me, escrevo-te da varanda do meu quarto, avistando ao longe as pirâmides de Gizé. Sinto-me um qualquer Professor Mortimer e quero desvendar mistérios, daqueles que se escondem nas grandes pirâmides, por serem túmulos, e se encerram no pensamento imperturbável das esfinges, por serem do outro mundo... Mas outra lembrança me desperta e me enche o coração de ternura e benquerer: leva-me à mesa de um restaurante debruçado sobre um mar que se agita muito, ao princípio de uma tarde de inverno, em que o sol vai surgindo e logo foge, soprado pelo vento e batido pela chuva. Estamos só nós dois, acabámos de almoçar e conversamos com a intimidade e confiança de um convívio antigo e secreto. Não sei porquê, solta-se-me simplesmente o gesto, e acaricio com dois dedos as rugas da pele do teu pescoço... Olhas-me como se esse contacto fosse esperado e habitual desde a antiguidade de ti. E ofereces-me um sorriso leve e breve, tão leve que o trago sempre comigo, tão breve que ainda me dura no coração. Não há discurso nem exaltação do amor que diga tanto como esse reconhecimento íntimo e silencioso da alma a que chamamos irmã, porque estava, quiçá, connosco desde antes da memória. No avião que me trouxe, fui lendo as "Lettres d´Égypte" do Pe. Teilhard de Chardin que, ouvi dizer, serão traduzidas para português por um sobrinho nosso. Endereçadas, entre 1905 e 1908, a seus pais, por Pierre Teilhard, são relatos coloquiais das mil e uma decobertas do Egipto por um jovem de vinte e tal anos. Sobre o Cairo de então, paira o fantasma do império otomano, cujo fim, na Turquia, virá com a proclamação da república: Mustafá Kemal (Atatürk) é eleito presidente em 1923. No Egipto,já os ingleses se lhe substituíram em 1882, tal como o farão, em 1917, na Palestina. Transcrevo-te este trecho de uma das cartas: "Finalmente, visitei as ruínas de uma mesquita muito antiga do Cairo... ...tem-se uma vista magnífica sobre todos os velhos bairros do Cairo, cobertos de minaretes, percorridos por ruas tortuosas, apinhadas de camelos, de melancias, de ovelhas e de árabes. Todo este movimento, visto de cima, longe do cheiro e da curiosidade indígena, era duplamente curioso de observar. Está-se a restaurar esta mesquita, como muitas outras na cidade. É uma boa obra, porque nisso fizeram os turcos coisas muito bonitas. Nestes dias, li um livro cheio de interesse para quem viu um pouco as coisas do Oriente: "Les mémoires du Marquis de  Noinel", por Vandal: a maioria dos aspectos dos costumes observados em Constantinopla, no reinado de Luís XIV, encontram-se ainda hoje por cá...".
Fui a esta carta do Marquês de Sarolea  -  e a esta citação do jovem Teilhard  -  por me ter chegado de Paris, ainda com cheiro a tinta, um livro de Vincent Lemire intitulado "Jérusalem 1900  - La ville sainte à l´âge des possibles", em que se fala do facto e feito histórico que foi o município intercomunitário, como entidade única e partilhada de gestão daquela urbe, de 1860 a 1930. A sua instituição  facultou um período de convívio pacífico e governo comum (de muçulmanos, judeus e cristãos) e ainda se aguentou por mais treze anos, depois da substituição do império otomano pelo mandato britânico. Aquele ocupou Jerusalém durante quatro séculos, de 1517 a 1917. No tempo para que iremos olhar, a tolerância do governo otomano produziu frutos. Personagem central do pensamento fundador e da ação executora desse projeto de coexistência, partilha e identidade na cidadania da Cidade Santa, o palestino jerusalemita Yussuf Ziya al-Khalidi, que foi presidente da Câmara Municipal de Jerusalém e deputado, pelo mesmo círculo, ao Parlamento Otomano em Istambul. Escrevia ele, a 1 de Março de 1899, ao Grande Rabino de França, Zadoc Kahn, este envolvido no crescente movimento sionista: "Gabo-me de não precisar de falar nos meus sentimentos para com o Vosso povo. Todos os que me conhecem sabem bem que não faço qualquer distinção entre Judeus, Cristãos e Muçulmanos. Inspiro-me sempre na sublime palavra do Nosso profeta Maleaqui: "Então não temos um pai comum a todos nós? Não foi o mesmo Deus que nos criou a todos?" E, noutro passo, sobre o Sionismo: "A ideia em si mesma é totalmente natural,bela e justa. Quem pode contestar o direito dos Judeus sobre a Palestina? Deus meu! Historicamente é mesmo o Vosso país! E que maravilhoso espectáculo seria se os Judeus, tão talentosos, fossem novamente reconstituídos numa nação independente, respeitada, feliz, podendo prestar, como outrora, serviços à humanidade!" Mas, com o realismo de um político palestiniano, que viu mundo, fala e escreve francês, alemão e inglês, além de turco otomano e árabe, acrescenta: "Temos de contar com a realidade, com os factos adquiridos, com a força brutal das circunstâncias. Ora a realidade é que a Palestina é agora parte integrante do Império otomano e, mais grave ainda, é habitada por outros além dos israelitas. Esta realidade, estes factos adquiridos, esta brutalidade das circunstâncias não deixam ao Sionismo, geograficamente, qualquer esperança de realização, e é sobretudo uma ameaça para os Judeus da Turquia". Tem razão Vincent Lemire quando considera que as reservas de al-Khalidi ao projecto sionista se fundamentam na sua experiência de gestão da Cidade Santa: "Fui durante dez anos presidente da Câmara de Jerusalém e, depois, deputado desta cidade ao Parlamento imperial, e ainda o sou; estou a trabalhar para o bem da cidade, para lhe levar água potável. Falo-vos pois com conhecimento de causa. Consideramo-nos, nós, Árabes e Turcos, como guardiães dos lugares sagrados para três religiões: o Judaísmo, o Cristianismo e o Islão. Pois bem: como podem os condutores do Sionismo imaginar que poderão arrancar esses lugares sagrados às duas outras religiões que são largamente maioritárias?" Da história dessa teimosia, nem o Tintin se livrou. Em "Au Pays de l´Or Noir", desembarcado em Haïfa, o nosso herói é raptado por terroristas judeus da "Irgoun", que o tomam por Salomão Goldstein. Por aí vai parar ao deserto, depois de um bando árabe ter interceptado o carro em que os seus primeiros raptores o levavam... O primeiro "Tintin" que recebi  -  e li com gosto  -  foi, em 1947, o "Tintin en Amérique". Presente de Camilo Maria. De então em diante, ao ritmo das suas edições, fui recebendo as outras aventuras do jornalista sem idade. Foi outro modo de o Marquês de Sarolea me abrir portas para o mundo...

Camilo Martins de Oliveira

Paul Valéry

 

E te abraço nos livros: lá onde a água não tem limites. Tudo é fonte.

Et je reprends; je modifie, je perfectionne. On ne peut, et donc on ne sait enchaîner les parfums. Quelle musique ! Digo-o baixinho até ti, e por carta.

 

 

Depois, com tapetes macios aguardei e aguardo à tua porta. Não falo: é a tua vez Valéry !

 

O expoente da poesia simbolista, do ensaio, do pensamento filosófico nasce em Sète e estuda Direito na Faculdade de Montpellier. Mallarmé, seu amigo, reconhece-lhe em La Jeune Parque (A Jovem Parca, 1917) a necessidade deste poema ter tido de ser criado durante cinco anos.

 

Acede à Academia de Letras. Responde com tranquilidade à sua época de não produção.

Pensar é resistir, pensar é devir, pensar é metamorfosear, é o direito à diferença. Assim o sinto numa razão que a quero até ele, até Valéry, se possível.

 

André Gide e as portas da Paris literária são-lhe as horas de muitos tempos; o seu amor por Rovira que o transporta ao culto exclusivo da inteligência deixando ou não? , a poesia dormir na sua cama mas a levantar-se antes dele.

E sempre Paul Valéry  foi e será o professor de poética no College de France.

 

Um poema nunca é terminado, apenas abandonado.

 

Charles de Gaulle celebra-lhe honras fúnebres aquando da sua morte em 20 de Junho de 1945. E depois dela, um dia, foi com ele que aprendi a despir-me das minhas verdades e a reconhecer o quanto

 

um grande homem é aquele que morre duas vezes. Primeiro, como homem; e depois, como grande homem.

 

Fausto surge postumamente. Sempre Valéry esteve atento ao quanto é necessário desconfiar dos nossos pensamentos, exactamente por serem nossos, é algo similar ao inicio do compreender o mundo: há que renunciá-lo primeiro e só depois iniciar a viagem.

 

Dizia Ambroise-Paul Valéry que as leituras de histórias e romances serviam para matar o tempo de segunda ou terceira categoria, mas o tempo da primeira categoria não necessita de ser morto: é ele que mata todos os livros, e cria alguns.

 

Também Tel quel

 

Tu m’ appelles doucement (…) ta voix est venue facilement que j´ai cru penser à toi de moi-même.

 

E te abraço pelos livros, como sempre e

Si la «vie» avait un but, elle ne serait plus la vie.

 

TERESA VIEIRA

LONDON LETTERS

The strange return of Richard the Third, 1452-85

 


Mrs Agatha Christie grafa algures que o melhor marido para qualquer senhora é um arqueólogo: quanto mais velho, melhor! Pois desde as aventuras de Indiana Jones que a estimada arqueologia não gerava algo tão estimulante quanto a descoberta ora anunciada pela University of Leicester. Peritos das East Midlands confirmam que o esqueleto descoberto numa escavação local em 2012 pertence ao King Richard the III. ‒ Ah! Le roi de la Guerre des Roses. Se uma deformada espinha logo suscita a hipótese de ser o filho de Richard Plantagenet, anotada que está tal característica física em crónica régia medieval pela idónea pena de Sir Thomas More, a autenticação das ossadas chega por via de modernices forenses ao estilo CSI como sejam testes de DNA cotejado com o código genético dos descendentes. – Well, that was the ruler who lost the country because of a horse! O achado contém singular ressonância política. O último monarca da House of York, que governa entre 1483 e 85, morrendo no campo de batalha com apenas 32 anos de idade, é uma viva expressão da impunidade que ciclicamente tenta os poderosos.

A tirania tem o rosto de Richard the III em terras de Her Majesty. O duke of Gloucester chega ao trono sob as sombras da usurpação e do assassínio do sobrinho Edward IV, com William Shakespeare a gravar tal malvado retrato na literatura (1592-3), William Blake na pintura (1806) ou Laurence Olivier (1955) no cinema. Nenhum historiador até agora afastou a negra leitura da sua ação política, que avança até à derrota na Battle on Bosworth Field, em 1485, face às hostes de Henry Tudor. Quem tudo fizera para obter o cetro, perde-o célere quando contra si simultaneamente se erguem aristocratas e comuns unidos pela House of Lancaster.

Demolidora é a efígie que deste rei cinzela o bardo de Stratford-upon-Avon, há cinco séculos levada à cena. A tragédia de Master Shakespeare foca um sedoso personagem, distorcido por fora e por dentro, em busca do controlo de si e da dominação dos outros. O seu malabarismo verbal não denota grande saber. Tudo nele é movido por avidez do poder, desde o ceticismo dos precavidos no pretendente ao trono até ao naturalismo das feras no monarca. Já as manobras da conquista palaciana são tamanhas, que lhe assombram o sono e assustam a audiência: “Basta de público. Cortai-lhes as cabeças.” Off with his head! é a vociferação avulsa no script. Numa peça talvez exageradamente longa para exemplo da hipocrisia no paço, o diálogo abre com singela apresentação ‒ Richard é um self made villain, um empreendedor político sob o imperativo da necessidade.

A denúncia da opressão é matéria delicada, tal qual a moralidade política ensaiada por protagonistas maiores e menores nos palcos de todos os tempos. Neste capítulo, todavia, mais que o estranho esqueleto em Leicestershire, por aqui perdura ainda a lição de William Pitt The Elder na advertência para as consequências do Stamp Act em vésperas do Boston Tea e ulterior guerra da independência norte-americana. Westminster sabe da violação a princípio vital da Magna Charta, mas alheia-se da olímpica indiferença de George III. Ora, falando na House of Commons, em 1783, o Earl of Chatham aponta a inconstitucionalidade de lançar tributo sobre quem não tem representação parlamentar (logo: não dá consentimento) com decisiva tese quanto ao argumento da inevitabilidade que escolta o paradoxo do despotismo: – Necessity is the plea for every infringement of human freedom. It is the argument of tyrants; it is the creed of slaves.

 

St James, 5th February

 

Very sincerely yours,

 

V.

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