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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

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A VIDA DOS LIVROS

Guilherme d'Oliveira Martins 
de 2 a 8 de setembro de 2013

 

«Henrique, o Infante» de João Paulo Oliveira e Costa (Esfera dos Livros, 2012) e «1394-1494 – Do Infante a Tordesilhas» de João Silva de Sousa (1995) são duas obras que permitem conhecer e compreender melhor o lugar do Infante D. Henrique no seu tempo e na história dos Descobrimentos portugueses – para além das simplificações e dos mitos…

 

 

UMA FIGURA RODEADA DE MISTÉRIO

Se há figura na história portuguesa rodeada de mistério, essa é a do Infante D. Henrique (1394-1460). Muitas são as dúvidas sobre quem foi, mas é riquíssima a sua experiência e a influência que exerceu no seu tempo e no século seguinte. Uns glorificam-no, outros apoucam-no e talvez todos estes estejam algo fora da verdadeira consideração. No caso das duas obras em referência, há o cuidado de analisar os claros e os escuros, procurando abranger a totalidade de uma vida, influente como muito poucas. Sobre os mistérios, basta lembrarmo-nos do debate sobre a vera efígie do Infante. A mais próxima imagem de quem teria sido Henrique é a que está no pórtico do Mosteiro dos Jerónimos, no entanto são as representações da «Crónica dos Feitos da Guiné» de Zurara, guardada em Paris, e a dos Painéis ditos de S. Vicente, de Nuno Gonçalves, que nos permitem identificar mais facilmente Henrique, o Navegador. De facto, o Infante tornou-se um mito, apesar de ser uma das figuras históricas portuguesas sobre quem é possível definir com rigor um percurso de coerência e de vontade. A decisão da exploração da costa de África, e tudo o que se lhe seguiu, é algo que merece cuidada análise – correspondente à ponderação de decisões e acontecimentos que têm tudo menos de acaso. A conquista de Ceuta (1415) permitiu a compreensão das dificuldades colocadas, a Portugal e à Península Ibérica, na entrada do Mediterrâneo e no comércio com o Levante. As cinco razões aduzidas por Gomes Eanes de Zurara têm de ser lidas em estreita ligação com as fortes condicionantes económicas, políticas e territoriais: (a) a vontade de conhecer as novas terras; (b) as razões comerciais para a troca de produtos; (c) o poderio dos “mouros daquela terra d’África”, muito maior do que comummente se pensava”; (d) saber se haveria rei cristão naquelas paragens; (e) a expansão da fé cristã. Sobretudo, pouco se entenderá se não invocarmos a profunda crise económica e social sentida em Portugal e na Europa no último quartel do século XIV, que obrigou à procura de alternativas. Se o Infante não é uma figura isolada, o certo é que tem uma quota-parte fundamental no planeamento e na administração de um reino que não poderia nem queria ficar confinado ao território peninsular, às limitações mediterrânicas e às ameaças dos mouros, árabes e otomanos.

 

NOTÁVEL COMPLEMENTARIDADE

D. Henrique foi profundamente marcante e cioso dos seus domínios, era duque de Viseu, senhor da Covilhã, governador da Ordem de Cristo, senhor dos arquipélagos da Madeira e dos Açores e do barlavento algarvio, mas também detentor do monopólio das saboarias, da pesca do atum, da produção do pastel ou da pesca do coral. Há, no entanto, uma notável complementaridade no seio da chamada Ínclita Geração, os Altos Infantes, devendo salientar-se a figura de D. João I, que aparece, por vezes, algo apagada, mas que se revela como um autêntico refundador do Reino, na sequência de D. Afonso Henriques e D. Dinis, cada um a seu modo criador de uma realidade política nova ligada à grande frente marítima atlântica, mas também às suas projeções mediterrânicas. Se cuidarmos bem da análise dos acontecimentos, depressa descobrimos que D. Duarte, D. Henrique e D. Pedro articulam inteligentemente ações. A leitura da célebre carta de Bruges, enviada por D. Pedro a D. Duarte, ainda príncipe herdeiro, além de nos revelar a defesa do que mais tarde se designaria como «fixação e transporte», apresenta-nos o que poderíamos designar como um projeto nacional – com um Administração moderna, uma economia adequada à inovação, uma universidade capaz de seguir o que de mais avançado outras faziam e uma procura de novos modos de funcionar e agir. Está, aliás, por esclarecer inteiramente qual a influência das informações de D. Pedro, recolhidas nesses périplo europeu, nas navegações promovidas por D. Henrique na costa africana. O certo é que quer o Livro de Marco Polo quer o misterioso mapa de Fra Mauro devem ser referidos – não que tenham definido um plano da Índia, que só o Príncipe Perfeito assumirá, mas como a necessidade de procurar, como diz Zurara, uma aliança estável para favorecer o comércio com o Levante. Não seria ainda a Índia o objetivo, mas D. Henrique estaria a pensar na Terra Santa, preocupado com o seu poderio e a sua influência, mas também com a sua vocação de cruzado do novo tempo, pensando na libertação da Terra Santa. A atitude perante o desastre de Tânger deve ser lida a esta luz. E, se dúvidas houvesse, basta lembrarmo-nos que Afonso de Albuquerque não esqueceu a ideia. Dotado de uma inteligência superior, D. Henrique ligava razões diversas – políticas, económicas, políticas e religiosas. Não por acaso, Oliveira Martins falou de «Os Filhos de D. João I». Importa, pois, reconhecer o significado da articulação de vontades e inteligências e da sua extraordinária capacidade para seduzir e para convencer. Devemos, pois, envolver na compreensão desta história o Pai, o velho Mestre de Avis, e os irmãos, a começar em D. Duarte, a continuar em D. Pedro, sem esquecer D. Isabel de Borgonha, casada com Filipe, o Bom, e mãe de Carlos o Temerário.

 

A FORÇA E A DIPLOMACIA

Segundo Oliveira e Costa, despojado do mito, D. Henrique não é apenas o Navegador, mas é um príncipe preocupado com o seu senhorio e com a sua influência política e um cortesão que sabia influenciar e enlear as demais figuras da corte, através de uma simpatia que o colocou sempre acima das divergências que dividiam os membros da família real. A título de exemplo, veja-se a lista de circunstâncias acompanhadas de intenso labor de nomeações e regalias: em 1416, após a tomada de Ceuta; em 1419, no reforço de efetivos nesta praça; em 1433, na sequência da morte de D. João e da passagem do cabo Bojador; em 1438, depois da empresa de Tânger, por ocasião do falecimento de D. Duarte e no começo da regência; em 1441-1442, quando foram atingidos o rio do Ouro e a meta da Guiné e na chegada dos primeiros escravos, ouro e malagueta; e em anos posteriores com o reinado de D. Afonso V e o Perdão Geral de 1453… O Infante moveu-se intensamente em todo o reino, e os períodos de maior frequência nas deslocações, «coincidem com a sua mais intensa ação expansionista: 1437-1441 e 1443-1445. Em ambos os períodos, correu de Lagos a Viseu, cidades gémeas no seu entender. Na primeira, assistia à partida e chegada das embarcações e à repartição das mercadorias; em Viseu, de ordinário, arrecadava o quinto e demais frações que lhe cabiam» (J. Silva de Sousa, p. 23). Aquando do conflito trágico, que culminou em Alfarrobeira, D. Henrique procura contemporizar, sem sucesso, mas é sob a sua influência que o corpo de D. Pedro irá para a Batalha, não podendo esquecer-se que, com interferência do Rei, ver-se-á reconhecido pelo Papa como diretor das navegações, conquistas, ocupações e apropriações de todas as terras, portos, ilhas e mares do continente africano e mesmo dos ainda a ocupar da Guiné para sul sem fixação de quaisquer limites («per totam Guineam et ultra»). 

Guilherme d'Oliveira Martins