Saltar para: Posts [1], Pesquisa [2]

Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

A força do ato criador

 

A Presença do Corpo na tela.

Helena Almeida e a Tela Rosa para Vestir.

 

‘Olhamos para o corpo e o corpo termina de repente nos pés, nas mãos. Acaba ali. Porque é que estou cingida a esta forma?’, Helena Almeida, 2006

 

Helena Almeida (1934), em 1967, apresentou na Galeria Buchholz um conjunto de trabalhos, que apesar de serem expostos como pinturas, porque penduradas na parede, davam a ver aquilo que tradicionalmente não se vê: o lado de trás, as costas da tela.

Helena Almeida questionou desde cedo, o espaço da pintura e denunciou uma preocupação em transcender a fisicalidade da superfície/espaço da pintura. É um percurso que aqui se inicia: a tela torna-se primeiro objeto manipulável até se tornar corpo – uma tela habitada.

Assim, as primeiras obras de Helena Almeida, 1967-1968 procuram expor uma tactilidade e interioridade da pintura – características afastadas do olhar. A pintura, como matéria e suporte é tratada em si mesma na sua dimensão objetual. Helena Almeida desconstrói e repensa a pintura a partir dos seus elementos estruturais e materiais. O suporte da pintura é transposto, até dá mesmo para vestir. O suporte e a tela tradicionais já nesta altura (finais dos anos sessenta) são tratados por Helena Almeida como se fosse um corpo. Helena Almeida interessa-se, em especial, pela lógica do movimento interior/exterior da tela – mais tarde emprestando-lhes as suas pernas, os seus braços, a sua face e todo o seu corpo.

Nesta procura pela transcendência do suporte da tela foi muito importante a herança de Lucio Fontana (1899-1968). Sobretudo pela possibilidade de explorar uma nova dimensão da tela, que ao ser rasgada, criou uma ideia de infinito. Ao cortar a tela Fontana permitiu o acesso a uma porosidade, a uma interioridade e a uma penetrabilidade.

Também nos anos sessenta Gotthard Graubner (1930-2013) explorou a presença de corpos atrás da superfície da tela, como se de almofadas se tratassem. E Graubner criou Farbraumkörper – Cor-Espaço-Corpo, numa intenção de tornar a cor que se dilui numa esponja, num corpo (mais propriamente num torso). As esponjas são cobertas por um tecido transparente (Perlon) que aumenta o efeito especial da cor. Por isso, Graubner criou a palavra Farbleib – corpo cor – que representa a transferência entre o elemento (corpo) que é utilizado para produzir o trabalho e o trabalho em si (cor). Ele designa os seus Körperbilder por retratos. Embora os trabalhos possam ser colocados horizontalmente, Graubner sempre decidiu mostrá-los na vertical, porque penduradas as almofadas têm uma relação direta com a energia central do fruidor – o solar plexus.

É igualmente importante lembrar o trabalho de João Vieira (1934-2009) que também, por no final dos anos sessenta, questionou o espaço da tela, através das suas letras-gesto-corpo. Na sua pintura, a letra não é escrita como signo, mas é gesto e ação do corpo. Em 1970, ao criar um alfabeto vivo no ‘Espírito da Letra’, abre-se a possibilidade das letras serem corpos vestidos.

 

Quando faço pintura, a tela sou eu e é ela que me permite ultrapassar esse limite do corpo, de trabalhar a minha solidão feliz.’ (Helena Almeida em conversa com Isabel Carlos, 2006)

 

Em ‘Tela Rosa para Vestir’ (1969), o corpo de Almeida aparece envergando uma tela com mangas como se de uma camisola se tratasse e por isso evidencia uma luta constante entre a pintura e os seus limites.

‘Tela Rosa para Vestir’ mostra a importância do corpo e de toda a sua vida na atividade criadora. Corpo e tela coincidem. Pela primeira vez Helena Almeida faz-se fotografar de corpo inteiro, agarrando a tela rosa sobre o peito. Tentar abrir um espaço, colocar-se atrás da tela, romper a tela, atravessar a superfície da tela e dar conteúdo e densidade à obra – e a fotografia representa isso mesmo. Almeida ao atravessar para o lado de lá, torna-se real, torna-se corpo/imagem na tela. Está interessada em revelar o eu material que se desenvolve numa superfície, que se define no plano/pele da tela. Helena Almeida afirma constantemente através do seu trabalho: a pintura é o meu corpo, a minha obra é o meu corpo.

Torna-se evidente, assim, o desejo de que a pintura e o desenho se transformem no seu corpo e de que se anule a distância entre corpo e obra (Carlos: 2006, p.10). Por isso a tela passa a ser, neste trabalho, um objeto que é transposto. Almeida antropomorfiza a tela rosa que passa a ser objeto de metáfora. E o eu, que já por si enche o objeto criado, a partir do interior, é colocado literalmente dentro da tela.

 

Ana Ruepp

QUE COMIGO FIQUE A PERMANÊNCIA…

 

Minha Princesa de mim:

 

Em Quinta Feira Santa, ao cair do dia, celebramos uma festa de despedida que, como um adeus verdadeiramente sentido, não é abandono, mas partilha; não é partida, mas permanência. Ou, como diz um fado português: A saudade é como a luz / que o sol já morto deixou: /  é presença, embora cruz, / na alma de quem ficou... Lembrei-te, noutro dia, o Wittgenstein, agnóstico e lógico, a invocar o dito de Kierkegaard: A fé é paixão! Há paixões que nos ganharam o inefável espaço interior, tão profundamente nosso que mal o conhecemos e nunca o sabemos definir. Delas, é certamente a fé a mais temível. Porque nos agarra e toma, e nos faz rever a vida toda. Como Mateus, Paulo, Charles de Foucauld ou Paul Claudel, muitos de nós, inesperadamente tocados por uma evidência imperiosa, apaixonamo-nos.  Apaixonamo-nos por um mistério que, no meu encontro com os passos da minha vida, tem o rosto humano de Deus, esse a quem chamo Jesus. E um mandamento companheiro de mim, que nunca me condena quando falho, mas simplesmente insiste comigo: ama os outros teus iguais na condição humana,sobretudo aqueles que são menos amados, com a mesma paixão com que amarias Deus se lá chegasses já! A fé não é uma ideia brilhante, privilégio meu, nem um compêndio de dogmas ou código de condutas para serem universalmente impostos pelos crentes... A minha fé não me pertence, é só dádiva recebida, graça que poderei transmitir apenas pela transparência com que eu for permitindo que ela me trespasse... Nesta noite, acredito que um Deus humano, na véspera da sua morte, ciente da proximidade dessa hora, reuniu os seus amigos e partilhou com eles o seu corpo e sangue, mais do que como sacrifício em holocausto,  como compaixão na misericórdia.

      Afundas-te, sol,

      afunda-te em paz, ó sol!

      Sereno e tácito é o teu adeus,

      comovente e grave o seu silêncio.

      Sonhador e triste o teu olhar amigo,

      com lágrimas cintilando em pestanas de ouro;

      sobre a fragrância da terra lanças as tuas bênçãos.

      E sempre mais profundamente,

      cada vez mais meigamente,

      sempre mais grave e majestoso,

      te afundas no íntimo do éter.

      Afundas-te, sol,

      afunda-te em paz, ó sol! 

      Abençoam-te as gentes,

      murmura a brisa

      e do vapor das medas sobe até ti a bruma;

      ondula-te o vento a cabeleira,

      e as vagas te refrescam o rosto ardente,

      e  um leito de água se abre para ti.

      Descansa em paz,

      repousa em graças!

      O rouxinol canta-te sono bom.

      Afundas-te, sol,

      afunda-te em paz!

Afinal, nunca nos despedimos do sol. Passamos, no escuro, cada noite com ele. E voltamos a acordar juntos. Se assim não fosse, porque me ocorreria esta noite esse poema ao sol poente (An die untergehende Sonne) ,de Ludwig Kosegarten, de que Franz Schubert fez um lied tão bonito: Sonne, du sinkst, sink in Frieden, o Sonne! ? Podia ter-te traduzido sink por mergulha, mas afunda evoca melhor a densidade dessa tragédia que é a incerteza da vida, donde saíremos com o sol, com Cristo que mergulhou connosco no mar escuro e frio da morte. Ao contemplar, na tarde quieta, o sol que se esconde, o lied de Schubert aproxima-me do canto do salmista: Meu Deus, meu Deus, porque me abandonaste? Porque te sinto longe da minha oração, da expressão do meu lamento? Por ti, Deus meu, grito de dia e não me respondes, chamo-te de noite e não me atendes... Mas habitas o santo dos santos, em ti esperaram os nossos pais e, pela sua confiança, os libertaste.

   O mistério de Deus é permanente, não se explica, respira-se. A presença inefável de Deus connosco é a sua memória, que repetimos no amor fraterno, na partilha do pão: Jesus tomou o pão, partiu-o e deu-o, dizendo isto é o meu corpo, tomou o cálice do vinho, abençoou-o e deu-o, dizendo isto é o meu sangue. Corpo e sangue dados por vós: fazei isto em memória de mim. Deus não existe para explicar, existe pelo amor connosco. Sobretudo a partir do século das "Luzes", procurou-se retirar Deus da revelação religiosa, colocando-o na perspectiva da especulação filosófica. Voltaire era feroz adversário da Igreja, mas concluía por um Deus necessário à explicação de tudo: 

      L´univers m´embarasse et je ne puis songer

      Que cette horloge existe et n´ait point  d´horloger.

Mas já com Feuerbach, Marx e Nietzsche, se proclama a morte de Deus, pois poderá a ciência tudo explicar, e a Deus só recorrem os impotentes humilhados. Com Darwin que, pela própria formulação da sua teoria da evolução, vai perder a fé, o materialismo, como já Diderot suspeitava, parece uma explicação suficiente do nascimento e desenvolvimento do mundo: a matéria inicial, semente  única, já potencia a diversificação das espécies. E com a hipótese de um big bang a desencadear a expansão infinita do universo e o afastamento progressivo das galáxias, voltamos a pasmar para o que a nossa razão não sabe explicar: cientistas pensam que o big bang  iniciou a marcha do relógio, outros que ele já terá acontecido no tempo. Nas suas Confissões, Santo Agostinho responde, no livro XI, a várias questões sobre a criação e o tempo, algumas delas, aliás, já levantadas,  muito antes desse longínquo sec.IV, na Grécia de Plotino ou Platão: Supondo que, desde toda a eternidade, Deus quis que houvesse criação, então porque não será a criatura, ela própria, eterna também? Para o Bispo de Hipona que, aliás, também confessa que continua sem saber bem o que é o tempo, este é criado, concomitantemente ao universo, por Deus: 

Não é no tempo que Tu precedes os tempos; se assim não fosse, não precederias todos os tempos. Não, não é no tempo, mas é,sim, da altura da tua eternidade sempre presente, que Tu precedes os tempos passados e que dominas os tempos por vir; pois estão por vir, e, uma vez chegados, tornar-se-ão passado. Tu, pelo contrário, Tu és idêntico a ti mesmo... E neste pôr de sol ardente, eu contemplo, no ocaso do meu tempo, a permanência. Dou-te a mão,

 

                             Camilo Maria

   
Camilo Martins de Oliveira 

QUINTA-FEIRA DA ESPIGA…



Na tradição portuguesa a Quinta-feira da Espiga era o dia de ir aos campos para colher as primícias da Primavera. Subia-se às colinas, invocando a Ascensão de Jesus Cristo aos céus, quarenta dias depois da Ressurreição. Assim se recordava a última aparição aos discípulos. O ramo das espigas juntava o trigo para que houvesse fartura de pão, as folhas de oliveira para que prevalecesse a paz e entendimento, flores para que houvesse alegria, malmequeres simbolizando o ouro e a prata, papoilas em nome do amor e da vida e alecrim para que o ano fosse de saúde e força. O ramo era guardado na porta de casa, até ao ano seguinte e assim haveria prosperidade, abastança, afeto e amizade. Era, pois, o dia de louvar e de esperar!

Maria Judite de Carvalho : «E o tempo foi passando. Seta despedida não volta ao arco.»



Sempre pressenti, ao ler Maria Judite de Carvalho, a transmissão de uma solidão profunda, tão faúlha queimada que só o vento conhecia. Sem barulho, o ar mais forte da cidade levantava uma cinza que lhe passava pelos belíssimos olhos sentados no rosto que, cedo, se não se diziam breves a nada.

O desencanto fora um lugar que acabaria por conquistar sem que para ele tivesse dado um passo. E escrevia, mesmo insegura, escrevia sempre, ensinando as palavras a insinuarem-se ao leitor, a sugerirem que o leitor fosse parte activa das personagens e do lugar onde caminhavam.

Quando a reli, julgo ter entendido a dor de uma incompreensão selada. A dor de constantes monólogos que de tão surdos se tornariam mudos também, e, por esta razão, me surgia o silêncio agora tão forte na obra de Maria Judite. Horas antes – quando? - fora-lhe amargamente consolador saber que o seu companheiro, um dia, concordara com a sua escrita. E de novo o silêncio.

Este silêncio total que vinha de muito fundo, julgo. Interpretei-o com o viver numa casa vazia de estrelas que aquecessem aquele frio imolado pelo dia-a-dia. E a idade vinha vindo. Chegava tão imperdoável que nunca lhe diria quem fora ou quem seria ou o que levaria com ela.

Já doente pareceu-me que não chamaria nunca uma ambulância inútil. Ali, sentada num dos quartos da velha casa, a Maria Judite de Carvalho seria uma lição. Uma ave que bebia uma alegria que já secara, e ainda assim peregrina, no erguer de palavras exactas, objectivas, pois que nelas descansaria, em breves tréguas, as suas ideias, no tudo quanto perseguisse.

Desconheço se soube a Maria Judite, que por ela também aceitámos e acolhemos manhãs que, a pouco e pouco nos ajudaram e ajudam a vermos melhor onde moramos. Que a negatividade e a depressão também se aternuram como bem dizia  António Alçada. Que morrer longe de Jerusalém é difícil, ó anjos, que os homens se organizaram para se afastarem uns dos outros, não sabendo que cada um morre por sua conta, não carecendo de prévio desamor.

Porque há gente que acerta e há gente que erra mesmo que, tal como na realidade de Sartre em Les Mots,  à falta de gostar o bastante de mim, fugi para a frente; resultado, ainda gosto menos de mim, esta inexorável progressão vai-me desqualificando aos meus próprios olhos.

E chamei Sartre pois que Maria Judite de Carvalho é associada à herança do existencialismo e do chamado “novo romance” , na sua obra  de escritora de actualidade renovada , tão difícil de catalogar.

Mas perto de ti, Maria Judite, a verdade será sempre a de que, o tempo que passa e seta despedida não voltam ao arco.

Em 1998, ano em que faleceu Maria Judite de Carvalho, talvez tenha compreendido melhor que o sofrimento surge também como coração de mudança, quando aduba, merecidamente a alma que pede o sonho em casamento.

 

M. Teresa Bracinha Vieira

Maio 2014

O ENSINO DO TEATRO EM PORTUGAL 6 – GINO SAVIOTTI, DA TEORIA À PRÁTICA TEATRAL

 

 

Neste conjunto de evocações da minha passagem e formação teórica no Conservatório Nacional é altura de recordar as aulas de Gino Saviotti na cadeira de Filosofia do Teatro, e lembrar a sua atuação e criação no meio teatral português da época, através designadamente da Companhia de Teatro de Sempre, que dirigiu no Teatro Avenida, precisamente na temporada a de 1958-1959: e foi nesse anos letivo que me matriculei na Faculdade de Direito e no Conservatório Nacional, aqui, mais uma vez o refiro, como aluno - ouvinte nas cadeiras de Arte de Representar e Encenação e de Filosofia do Teatro, esta, como já escrevi, ministrada por Saviotti.

 

Refiro pois nesta evocação, simultaneamente a docência no Conservatório e a docência, digamos assim, na arte do espetáculo, através da Companhia e do repertório selecionado. E até posso começar por aí, pois deveu-se a Saviotti a estreia em cena de peças fundamentais da moderna dramaturgia.

 

Cito duas: “O Gebo e a Sombra”, de Raul Brandão, e as “Seis Personagens à Procura de Autor” de Pirandello. E repare-se que foi preciso esperar pelos finais da década de 50 para que estes dois textos, relevantíssimos numa linha de renovação do teatro português e do teatro europeu, subissem à cena em Portugal, aliás primorosamente encenados e representados por uma companhia em que se destacavam os então jovens Carmen Dolores e Rogério Paulo.

 

Mas a presença inovadora de Saviotti no teatro português vinha de traz. Na qualidade de diretor do Instituto Italiano de Cultura, ainda hoje situado na Rua do Salitre, fundou e dirigiu, em 1946, com Luís Francisco Rebello e Vasco Mendonça Alves, o Teatro Estúdio do Salitre, companhia iniciática do experimentalismo no teatro português, onde aliás Rebello se estreou como dramaturgo, com “O Mundo Começou às 5 e 47”, e onde, até 1950, seriam representados dramaturgos da relevância e projeção de Almada, David Mourão Ferreira, Branquinho da Fonseca…

 

Cito Luís Francisco Rebello: apesar de “uma certa ambiguidade (…) em grande parte devido ao heterogéneo repertório apresentado nos cinco anos em que a sua atividade durou, (…) não há dúvida de que ao Salitre se ficou a dever a primeira tentativa meditada e consequente de atualização do teatro português, além da revelação de novos autores e atores” (in “Breve História do Teatro Português” pag.140).

 

Não falo aqui nas peças da autoria de Gino Saviotti, numa carreira de dramaturgo iniciada em 1929 “(Il Buon Silvestre”)   e de romancista e de teórico da história e da estética do teatro,  nesta área  com numerosos textos  relevantes editados em Portugal: mas recordo, isso sim, o interesse das suas aulas de Filosofia do Teatro, que valorizavam a Escola e para mim constituíram uma extraordinária iniciação  cultural e cientifica à teoria e à  pratica teatral.

 

As aulas constituíam uma interessantíssima iniciação à estética do texto e do espetáculo, dentro de uma visão também de evolução histórica: e passava-se em revista o que ia ocorrendo no teatro, em Portugal e não só,  com um sentido critico e didático que ainda hoje me apraz recordar.  

 

DUARTE IVO CRUZ      

MEMORIAL À VIDA



O memorial da autoria do Arquiteto Rui Sanches na Ribeira das Naus em Lisboa que homenageia Maria José Nogueira Pinto (1952-2011) é um símbolo que assinala, de um modo inteligente e sensível, o exemplo de quem, ao longo da sua vida, fez da ação e do cuidado dos outros apanágio da compreensão das pessoas e do mundo. Bem-aventurados os que não aceitam a indiferença. O lugar é significativo – perante o Tejo, próximo de onde partiam e chegavam as caravelas e as naus, aqui foi o Paço da Ribeira, a Casa da Índia, onde nos dias gloriosos se sente a perenidade da história, como lembrou Jaime Nogueira Pinto. Há uma janela aberta sobre o magnífico estuário, e uma casa incompleta, a lembrar a obra persistente de quem sonhou com mil coisas, com a reanimação da Baixa-Chiado, com a vida de Lisboa e fez da habitação social uma responsabilidade sempre inacabada. Tendo conhecido a Zezinha desde que entrámos na Faculdade de Direito, sempre encontrei nela o mesmo empenhamento, o gosto de intervir, de fazer, de ajudar, de cuidar. Durante os últimos anos partilhámos algumas ideias, preocupações e projetos. Falámos de tudo, discutimos as questões mais diversas – e o tempo levou-me a admirar-lhe sempre a pertinácia, a inteligência e o rigor. Perante o memorial da autoria de Rui Sanches pude lembrar mais uma vez a Maria José e o seu exemplo. O lugar é ideal, tenho a certeza de que concordaria com a escolha, para lembrar a todos que nunca estamos dispensados de agir e de estar atentos! Esse o grande apelo daquelas paredes de um mundo em construção.

 

Guilherme d'Oliveira Martins

LONDON LETTERS

 

A smart inclusive capitalism, 2014

O golpe foi bem na testa; não comerá mais criancinhas na floresta. Lato modo, assim ia a rhyme. Os termos de terramoto, hecatombe, tempestade and so on rotulam a revolta popular face aos partidos moderados do centro nas 2014 local & european elections. Tudo pré visível.  Comme Madame Lagarde et les Belges dissent, la confiance part à cheval et revient à pied! Os resultados são só veementes. O Ukip vence o sufrágio europeu (27,5%), seguido do Labour (25,4%). Os partidos da coligação governamental submergem. Os Conservatives caem para histórica terceira posição (23,9%) e os Liberal Democrats para a quinta (6,8%), atrás dos Green (7,8%), com um deputado eleito no último minuto e perdendo dez. — Dear, a black hen lays a white egg! Em Brussels, ativados os demónios xenófobos do nacionalismo, a resposta para acomodar a equação da desesperança é — surprise, surprise!business as usual. Em London, sob auspícios de HR Charles of Wales, reúne a Conference on Inclusive Capitalism. No mais, and with a lot of red faces around, estamos ukipassados.

Dias curtos, frios e chuvosos por cá. Também algo tensos no electoral fall out. Os independentistas liderados por Mr Nigel Farage engolem os parties of Westminster e marcam posições nos counties de England a Wales e a Scotland. Ao Labour Party cabe agora bater a purple colour, pois Tories e Lib-Dems enfrentam árdua travessia em mar calmo de sargaços. Há uns séculos atrás, numa das suas mais intensas tragédias, Master William Shakespeare expõe magno diagnóstico sobre a desordem das coisas através de a minor character. No exterior do Castle of Elsinore, a little past midnight, in the cold and dark, esperando pelo fantasma do rei assasinado por um trapaceiro, afirma lapidarmente Marcellus: — “Something is rotten in the state of Denmark” (Hamlet. Act 1, scene 4, 87–91). São depois necessárias muitas linhas para resgatar a honra perdida. Se o mapa dos eurocéticos acentua as cores, a tinta abstencionista é a tela real do estado de uma união europeia  que soube preservar a paz. Mas a Leste progride nova Cold War, à qual só o United Kingdom doa resposta.

O painel é de elevado valor, seja qual seja o ângulo. HRH The Prince of Wales, ex US President Bill Clinton, a FMI Director Christine Lagarde ou a CEO Mrs Lynn Forester de Rothschild são presenças na Inclusive Capitalism Initiative acolhida ontem pela Lord Mayor da London City em The Mansion House and Guildhall. A debate apresentam-se desafios como a desigualdadade na distribuição da riqueza e as ideias de Mr Milton Friedman sobre a promoção de fins sociais à luz do ressentimento eleitoral. A senhora de Paris é evidente aposta política deste movimento crítico ao do nothing na imperativa reforma da operação europeia, quando Berlin anda ainda parecida com histórica caraterização da Première Restauration por François Dumouriez. O general aderente do Club des Jacobins, e preso na Bastille, lapidarmente conclui sobre o rei no palácio que "les courtisans qui l’entourent n’ont rien oublié et n’ont rien appris."

Já o guardião de Roma ora no muro das lamentações em visita a Jerusalem, Palestine e Jordan. No manifesto pontíficio alerta o Pope Francis para a economia da exclusão. Aponta o caminho da educação e luta contra a pobreza. Mais: — The legitimate redistribution of economic benefits by the state, as well as indispensable cooperation between the private sector and civil society.

 

St James, 28th May

 

Very sincerely yours,

 

V

A VIDA DOS LIVROS

 

 

de 25 de maio a 1 de junho de 2014

 

 

Almeida Garrett faz uma viagem sentimental em «Viagens na Minha Terra». Aí está a originalidade da obra, bem evidente no tema, na estrutura, na linguagem. Se há uma viagem em sentido literal, há sobretudo uma deambulação, na qual a reflexão individual, a descoberta do caminho seguido e a invocação da humanidade e da natureza se juntam a um enredo romanesco de encontros, mas sobretudo de grandes desencontros… 

 

O INÍCIO DA VIAGEM…
Xavier de Maistre (1763-1852) é invocado no início da viagem. «Que viaje à roda do seu quarto quem está à beira dos Alpes, de inverno, em Turim, que é quase tão frio como S. Petersburgo – entende-se. Mas com este clima, com esse ar que Deus nos deu, onde a laranjeira cresce na horta, e o mato é de murta, o próprio de Maistre, que aqui escrevesse, ao menos ia até ao quintal». É lembrado o livro «Voyage autour de ma chambre» (1795), mas o método seguido por Garrett é outro, porque beneficia do tempo ameno português para ir até Santarém, ao encontro do seu amigo Passos Manuel, rememorando não apenas a história da implantação do liberalismo, e da guerra civil, mas valorizando o próprio ato de viajar, ao encontro da natureza e do que hoje designaríamos como património cultural. Não por acaso, há um momento fundamental nestas «Viagens» que é a paz de Évora-Monte, pela qual o país teoricamente se pacificou, e a verdade é que Carlos simboliza o muito que ficou por fazer para que a paz significasse emancipação nacional. Enquanto Alexandre Herculano mantinha «O Panorama», jornal literário e instrutivo da Sociedade Propagadora de Conhecimentos Úteis, Almeida Garrett faz das suas «Viagens» uma oportunidade para demonstrar que as raízes históricas eram muito mais exigentes do que a resposta dos seus contemporâneos à nova circunstância, aos novos princípios, pelos quais o poeta e dramaturgo tanto se bateu. Herculano assegurou a direção de «O Panorama» até 1839, seguindo-se-lhe António Feliciano de Castilho e António de Oliveira Marreca. Há um sentido pedagógico, de preparar a «Regeneração» da pátria, através da tomada de consciência da necessidade do conhecimento, do uso adequado das liberdades. Como afirma «O Panorama» em 1839: «O homem sincero, alumiado, e bom; o verdadeiro filósofo, isto é, o amigo da sabedoria útil, regerá os passos do seu pensamento, e, se o pudesse, os de todos os seus semelhantes, pelo caminho médio; pedirá e tomará dos arrazoados todas as verdades; porque todas elas são prestadias; pedirá e tomará dos crentes tudo quanto, não contrastando a razão, concorrer de perto ou de longe para amansar os ciúmes feros da nossa natureza: dirá aos primeiros: dai-me, de hora para hora, subidas e melhoradas todas as ciências benfeitoras da terra e aos segundos alegrai-me, no meu caminho, de perigos e tribulações, com os vossos cânticos de esperança e valor». Em 1843, a «Revista Universal Lisbonense», dirigida por Feliciano de Castilho, começa a dar à estampa os primeiros seis capítulos das «Viagens na Minha Terra». Garrett vai ao encontro de seu amigo Passos em Santarém, exilado na pátria, depois do golpe de Estado de Costa Cabral (1842), mas recusa que haja mexeriquice a dominar o desígnio político da visita. A 17 de julho de 1843, uma segunda-feira, o escritor parte, e ouve o bater das seis horas em S. Paulo. Embarca no Terreiro do Paço no vapor para Vila Nova da Rainha, «a um lado, a imensa majestade do Tejo em sua maior extensão e poder, que ali mais parece um pequeno mar mediterrâneo; do outro, a frescura das hortas e a sombra das árvores, palácios, mosteiros, sítios consagrados todos a recordações grandes ou queridas». Depois, sucedem-se os lugares ribatejanos: Alhandra, Vila Franca. Durante a viagem, o autor partilha o prazer do fumo do charuto e assiste ao travar ameno de razões entre dois grupos, os ílhavos e os bordas-d’água, aqueles, varinos, vestidos de saiotes gregos, estes, campinos, de calção amarelo e jaqueta de ramagem. Que se discute? Quem tem mais força, se é um toiro ou se o mar? Parece não haver dúvidas, para quem arbitra a contenda. É o mar, com que se briga oito a dez dias a fio numa tormenta. As valentias tornam-se mais evidentes para essa luta continuada, mais dura do que a pega de caras ou de cernelha, à qual não se nega valor… Os campinos ficam cabisbaixos - o Vouga triunfa do Tejo. Mas a viagem prossegue nesse glorioso dia de verão, e continuam literárias as deambulações. Vêm à baila D. Quixote e Sancho Pança, discute-se economia, fala-se de injustiças, quantos pobres são necessários para fazer um rico, que felicidade faz a riqueza, o escritor sonha acordado e avistam o pinhal de Azambuja. «Então caí completamente em mim e recordei-me, com amargura e desconsolação, dos tremendos sacrifícios a que foi condenada esta geração, Deus sabe para quê – Deus sabe se para expiar as faltas de nossos passados, se para comprar a felicidade de nossos vindouros». Afinal, é uma viagem bela, mas de dolorosas lembranças, de invocação das belas raízes da pátria e das limitações e fraquezas dos dias contemporâneos. «Cá estamos num dos mais lindos e deliciosos sítios da terra: o vale de Santarém, pátria dos rouxinóis e das madressilvas, cinta de faias belas e de loureiros viçosos». É um lugar privilegiado pela natureza. Senti-o, pessoalmente, quando o meu amigo Pedro Canavarro me levou à janela mítica de sua casa, que era a de Passos Manuel, para avistar o panorama descrito pelo poeta de «Folhas Caídas». É algo de sublime que liga uma das grandes descrições da literatura portuguesa a uma das paisagens mais significativas da nossa terra.

 

NA CASA DE PASSOS MANUEL
«Comemos, conversámos, tomámos chá, tornámos a conversar e tornámos a comer. Vieram visitas, falou-se de política, falou-se de literatura, falou-se de Santarém, sobretudo, das suas ruínas, da sua grandeza antiga, da sua desgraça presente. Enfim, fomo-nos deitar». Neste ponto, devo invocar o zelo fantástico que Pedro Canavarro e a sua Fundação têm posto em garantir que a impressão deixada nas «Viagens» seja uma lição para o presente. Hoje, sentimo-nos muito bem a chegar a Santa Maria da Alcáçova… E podemos compreender melhor que nunca, o que disse o poeta: «Nunca dormi tão regalado em minha vida. Acordei no outro dia ao repicar incessante e apressurado dos sinos da Alcáçova. Saltei da cama, fui á janela, e dei com o mais belo, o mais grandioso e, ao mesmo tempo, mais ameno quadro em que ainda pus meus olhos». A descrição é bem conhecida: «No fundo de um largo vale aprazível e sereno, está o sossegado leito do Tejo, cuja areia ruiva e resplandecente apenas se cobre de água junto às margens, donde se debruçam, verdes e frescos ainda, os salgueiros que as ornam e defendem…». Trata-se de uma autêntica e atualíssima lição sobre o património cultural, feito de pedras mortas e vivas, de tradições e de pessoas, de paisagens e de monumentos, de hábitos e de costumes, de diálogo entre gerações, de ligação entre a herança e a criação cultural. E Garrett apela intensamente para que o património não seja esquecido: «Ergue-te, Santarém, e dize ao ingrato Portugal que te deixe em paz, ao menos nas tuas ruínas, mirrar tranquilamente os teus ossos gloriosos, que te deixe em seus cofres de mármore, sagrados pelos anos e pela veneração antiga, as cinzas dos teus capitães, dos teus letrados e grandes homens. Diz-lhe que não vendam as pedras dos teus templos; que não façam palheiros e estrebarias de tuas igrejas; que não mandem os soldados jogar pela com as caveiras de teus reis, e a bilharda com as canelas dos teus santos»…

 

A NARRATIVA ESSENCIAL
Para o romancista, deveria então começar, na narrativa essencial, numa habitação antiga, entre árvores, com uma misteriosa janela. «Encantava-me, tinha-me ali como num feitiço. Pareceu-me entrever uma cortina branca… e um vulto por detrás». É o enredo que se inicia. E Garrett imagina romanticamente um vulto feminino e lembra o rouxinol de Bernardim Ribeiro, «o que se deixou cair na água de cansaço». E há os olhos verdes, a janela entre as ramagens e uma menina dos rouxinóis. No fundo, é privilégio dos poetas estar enamorados até morrer. E para que o romance se desenvolva parte-se de um momento funesto, dois anos antes da paz, o de 1832. Uma senhora de idade avançada trabalha com a sua dobadoira e chama a neta, que se apronta a responder, para desembaraçar a meada da avó, cega de gota serena, paciente e resignada, sabedora das tragédias que se desenham. O quadro está definido, romanticamente sereno, nas aparências, mas pleno de incertezas dramáticas de um tempo de divisão e de guerra. Conversam a avó e a neta quando chega Frei Dinis, religioso franciscano, austero guardião de S. Francisco de Santarém. Garrett logo nos esclarece não gostar de frades. Moral e socialmente, não os considera, mas «no ponto de vista artístico», o frade faz muita falta. «O frade era, até certo ponto, o contraponto do D. Quixote da sociedade velha, enquanto «o barão é, em quase todos os pontos, o Sancho Pança da sociedade nova». Há uma atmosfera de presságios e previsões. Num ápice, os planos da viagem e da novela fundem-se, como que por encanto. Assim Garrett encontra as personagens romanescas da história misteriosa, a partir do que se vai urdir, tendo como epicentro a «menina dos rouxinóis». É o clima de uma sociedade em guerra civil que toma a ribalta. D. Quixote surge como símbolo do mito, na sua variedade e complexidade. Como lidar, afinal, com a imaginação, sem que tudo não se assemelhe à loucura? Sancho Pança apela a ter os pés firmados na terra. No romance, Carlos está dividido entre sentimentos contraditórios e inconciliáveis. Georgina traz consigo a avidez da conquista do coração de Carlos. É um sentido trágico que se desenha. Carlos, Joaninha e Georgina constituem o triângulo de sentimentos contraditórios que apontam para um fim funesto. Carlos apenas se ama a si mesmo. A lógica individual contrapõe destinos diferentes e contrapostos. Joaninha e a avó integram-se no panorama idílico que atrai o autor a um lugar fadado para o triunfo do amor. Carlos está dilacerado, fazendo coexistir dentro de si sentimentos paradoxais de solução impossível. Afinal, sente-se lançado como instrumento da força do destino. Quando descobre ser filho de Frei Dinis, símbolo da sociedade antiga, tudo se precipita. Dir-se-á que é a tragédia que se consuma, depois de prenunciada em subtis sinais. E a viagem, como uma vida, dissipa-se. Joaninha enlouquece e morre, Georgina professa na vida religiosa, perecendo para o mundo, a avó enlouquece e Frei Dinis prossegue um calvário de expiação das suas faltas. Carlos, esse cai no absoluto indiferentismo. «Fez-se o que chamam cético, (…) morreu-lhe o coração para todo o afeto generoso, e deu em homem político ou em agiota». Assim, engordando e enriquecendo, é barão e vai ser deputado qualquer dia… «Quando vejo os conventos em ruínas, os egressos a pedir esmola e os barões de berlinda, tenho saudades dos frades». Garrett sente-se profundamente desiludido, apesar de ser um dos bravos da vitória liberal. Nessa viagem a Santarém, o dramaturgo sente que os ideais pelos quais combatera estão a desvanecer-se. O progresso é financiado com dinheiro dos barões. E o que ficou? «O materialismo estúpido, alvar, ignorante, devasso e desfaçado, a fazer gala da sua hedionda nudez cínica no meio das ruínas profanadas de tudo o que elevava o espírito»…

Guilherme d'Oliveira Martins 

MORRO LASSO, DE DÓ DE MIM…

 

Minha Princesa de mim:

 

      Morro, lasso, de dó de mim,

      e quem podia dar-me vida,

      ai! me mata sem socorro, assim!

      Ó dolorosa sorte:

      podia dar-me vida,

      mas dá-me morte!

 

É do próprio compositor, Príncipe de Venosa, a letra, que traduzo, deste madrigal de Carlo Gesualdo. Uxoricida, o príncipe assassino matou, com suas mãos e a participação de cúmplices, Maria d´Alvallos, sua prima e mulher, surpreendida in flagrante delicto di fragrante peccato com Fabrizio Carafa, duque de Andria. Este madrigal diz muito do drama obsessivo que o seu autor terá vivido ao longo de muitos dos seus cinquenta e dois anos (1561-1613): teria tendências homossexuais, ele que pertencia à alta nobreza de Nápoles e Duas Sicílias, e era sobrinho de Carlo Borromeo, figura grande na Igreja e,depois, no panteão dos santos... Sentir-se-ia mal na sua pele, mas a motivação do uxoricídio poupou-lhe condenações judiciais, e até lhe permitiu segundas núpcias com Leonora d´Este, da casa de Ferrara. Teve uma relação de ódio mútuo com o seu único filho, cuja morte presenciou. Personagem tenebrosa, encontrava refúgio na música e, apesar de compositor muito conservador, talvez por isso  -  por teimosia obsessiva  -  tenha conseguido atingir uma expressão musical inigualável para textos ou poemas que nos falam de sofrimento, ou do tormento físico do amor. Não escutarei hoje, em Tempo da Paixão, nenhum madrigal de amor humano sofrido. Antes ouvirei os Responsoria dos ofícios das Tenebrae de quinta, sexta e sábado santos. Talvez motivado pelo poema de Paul Celan, que para ti traduzo, a abrir o excelente registo do Hilliard Ensemble: 

      Somos próximos, Senhor,

      próximos e abraçáveis.

      Já presos, Senhor,

      encaixados um no outro, como

      se a carne de cada um de nós fosse

      a tua carne, Senhor.

      Reza, Senhor,

      invoca-nos,

      somos próximos.

      Íamos desviados pelo vento,

      íamo-nos curvar

      ao lamaçal tão oco dos pântanos.

      Íamos à fonte, Senhor.

      Era sangue, era

      o que tinhas derramado, Senhor.

      Brilhava.

      Atirava-nos a tua imagem aos olhos, Senhor.

      Olhos e bocas tão abertos, tão vazias, Senhor.

      E nós bebemos, Senhor,

      O sangue e a imagem que nele estava, Senhor.

      Reza, Senhor. 

      Somos próximos.

Paul Celan (1920-1950) nasceu judeu e romeno, numa cidade que hoje é ucraniana, foi um grande poeta em língua alemã, morreu francês, afogando-se no Sena (suicídio). Tal como Gesualdo, viveu obcecado pela morte e pela culpa: a morte dos pais, assassinados pelos nazis, a culpa de não ter conseguido salvá-los. Todos nós nos embrulhamos com morte e  culpa, mas quase sempre evitamos o brilho do sangue derramado, que nos cega. Gesualdo procurou a harmonia das vozes, só vozes humanas, para cantar serenamente, em sábado santo, o choro do povo, coberto de cinza, ferido pelo cilício: Quia venit dies domini magna et amara valde. Porque chegou o dia do Senhor, dia terrível e cheio de amargura... E eu estou em crer que, na hora da sua morte, o judeu Celan se terá lembrado desses versículos do Miserere, salmo 50 da Bíblia hebraica: 

      Livra-me, Senhor, do sangue derramado,

      Deus meu, Deus meu Salvador.

      E a minha língua proclamará a tua justiça.

      Abre,Senhor, os meus lábios.

      E a minha boca anunciará o teu louvor.

      Pois se quisesses sacrifício´

      eu te lo daria.

      Mas não te agrada o holocausto.

      O sacrifício agradável a Deus

      é um coração atribulado:

      Deus não despreza um coração

      contrito e humilhado.

 Afinal, na Paixão de Cristo, é a humanidade toda que pergunta Meu Deus, meu Deus, porque me abandonaste? E que, depois, dirá Nas tuas mãos, Senhor, entrego o meu espírito. Escutando a harmonia serena das Tenebrae do Príncipe de Venosa, já não me lembro do tenebroso assassino, nem do louco solitário. Apenas me maravilho com a paz que um coração contrito pode conseguir. E dou-te uma mão cheia dela.

 

          Camilo Maria

 

 
Camilo Martins de Oliveira 

A INTUIÇÃO MÍSTICA É DA MÃO ESQUERDA…

 

Minha Princesa de mim:

 

Está tão linda a manhã, que quase tenho pena de não poder sair... Mas abri as janelas todas, para que o sol me entre em casa, com o cheiro tónico destes campos que hoje me parecem tão felizes! Aves várias cantam, confortam-se lagartos ao sol e alegra-se a minha esperança de ver andorinhas a dizer promessas... Talvez pela melancolia que tem sido esta lenta primavera, comecei o dia a ouvir Couperin e Rameau, logo me lembraram Ravel, e com Ravel tenho ficado. Vou escutando toda a sua música para piano, interpretada pelo Robert Casadesus, incluindo o concerto para a mão esquerda, com a Philadelphia Orchestra dirigida pelo Eugene Ormandy. Quiçá por ser canhoto, sempre me interessei  -  muito embora não toque  -  por composições para a mão esquerda, da Fantasia nº 1 do Alkan (1838) às Diversions do Britten (1940), passando por Bartok, Saint-Saëns, Korngold e outros. Diz-se que o primeiro concerto para a mão esquerda foi composto em 1895 por um conde húngaro  -   melómano e tocador de piano  -  que perdera o braço direito num acidente de caça. Mas o de Ravel foi encomendado por Paul Wittgenstein, conhecido pianista austríaco, a quem acontecera o mesmo, mas nas trincheiras da guerra de 14-18... Também a Richard Strauss, Korngold, Prokovief e Britten foi este Wittgenstein buscar música para si. Para a sua mão sobreviva, para a única mão ainda cheia da sua alma de artista. Não a que, como norma, define prioridades, simboliza o poder ou a revolução, maneja a pena e a espada, ou leva à boca a colher da sopa. Mas a mão esquerda, a que se usa por intuição ou coragem. O outro Wittgenstein, irmão de Paul, chamava-se Ludwig, era filósofo, e também andou nas trincheiras da guerra... Os livros que então acompanhavam esse soldado austríaco eram dois: o Resumo do Evangelho de Tolstoi e Os Irmãos Karamazov de Dostoievsky, os escritores russos que mais digeriram a mensagem evangélica nas suas obras. Perto do fim desta sua vida, já depois da 2ª guerra, Ludwig Wittgenstein confiava a Maurice Drury, anglicano irlandês e seu aluno (o filósofo austríaco era professor universitário de lógica) que aqueles dois  eram os dois únicos grandes escritores europeus que, recentemente, tinham dito algo importante acerca da religião, e confessava a sua dívida para com eles: posto que  eu não sou um homem religioso, mas não consigo olhar para qualquer problema a não ser desde um ponto de vista religioso... e referia a frase de Tolstoi sobre o Cristianismo: um muito estrito, puro e completo, metafísico e estético ensinamento, acima do qual a razão humana não subiu. E data do seu período de serviço militar durante a 1ª guerra, quando ia relendo as obras citadas, a parte final do seu Tractatus Logico-Philosophicus, e a intuição mística: Nicht wie die Welt ist, ist das Mystiche, sondern dass sie ist! Místico não é como o mundo é, mas só que é! ...Es gibt allerdings Unaussprechliches. Dies zeigt sich, es ist das Mystiche. Há sem dúvida coisas inexprimíveis. Mostram-se a si mesmas, e é isso o místico. E nos Vermischte Bemekungen afirmará: Uma das coisas que, entre outras, o Cristianismo diz, penso eu, é que todas as doutrinas consistentes são inúteis. Temos de mudar a nossa vida (ou a direcção da nossa vida). Diz que todo o saber é frio; e jamais o poderemos utilizar para resolver a nossa vida, tal como não se forja o ferro quando está frio. Certo é que a boa instrução não nos agarra necessariamente; podemos segui-la como receita médica... Mas aí, precisamos de algo que nos agarre e nos dê a volta... (pelo menos é assim que o entendo). E logo que nos tiver dado a volta, assim teremos de ficar. O saber é desapaixonado. Mas a fé, pelo contrário, é o que Kierkegaard chama uma paixão. Sabes bem como penso que há coisas que ainda não sabemos explicar, sendo melhor guardá-las e meditá-las no secreto silêncio do nosso pensarsentir, isso a que chamamos coração. Talvez aí haja uma mão esquerda capaz de tocar um concerto que puristas e sábios julgariam incompleto. Dou-te ambas as mãos: não quero que a minha direita fique ciumenta.

 

                                              Camilo Maria

 

Camilo Martins de Oliveira 

Pág. 1/4