Saltar para: Posts [1], Pesquisa [2]

Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

O Conde de Vimioso

 

O Conde de Vimioso, defendendo a doutrina platónica e tradicional do amor, afirma:

 

Quem d’amores tem o cume

que vyve vyda acabada

este nam deseja nada:

nam se julga por costume

cousa desacostumada.

Quem ousa de desejar,

cuyda o contentamento,

se o cuydo, logo o sendo,

e em meu mal nam pod’ estar

prazer, nem por pensamento.

 

Por outro lado, Aires de Teles, baseando-se na imperfeição do ser humano opina:

 

Desejar e bem querer

sam, senhora, tam parçeyro,

c’os amores verdadeyros

sem ambos nam podem ser,

porqu’a causa he querer bem,

o desejar o afeyto.

Amores qu’este nam tem,

nam me negara ninguém,

que nam tem o ser perfeyto.

 

 

Em Camões encontramos as duas teses na sua lírica o que tem dificultado o trabalho de exegese da faceta amorosa de Luís Vaz de Camões, é o «contentamento descontente»,  e porque « transforma-se o amador na coisa amada, por virtude do muito imaginar» e sempre

 

Amor é fogo que arde sem se ver,

é ferida que dói e não se sente;

é um contentamento descontente;

é dor que desatina sem doer.

 

É um querer mais que bem-querer;

é solitário andar por entre a gente;

é um não contentar-se de contente;

é cuidar que se ganha em se perder.

 

É um estar-se preso por vontade,

é servir quem vence o vencedor

é ter com quem nos mata lealdade.

 

Mas como causar pode o seu favor

nos mortais corações conformidade,

sendo a si tão contrário o mesmo Amor?

 

 

M. Teresa Bracinha Vieira

Julho 14

 

Obs:  Uma tese apresentada também nos sugere que o grande Amor  de Camões teria sido a Infanta D. Maria. A ela se referia o poeta com o seu « sonho suave e soberano» num sentido de realidade , vincadamente renascentista. Tempos de verdades puras e de raríssimas firmezas, de traços platónicos embebidos de insatisfação perante os males que constantemente assediavam Luis Vaz: fusão de sentimentos de cultura clássica e nacional e vibrante de humanismo.

TEMPO DE FÉRIAS…

Praia das Maçãs, de José Malhoa
 

O CNC reserva para os seus amigos e sócios neste verão de 2014, em que iniciamos as celebrações dos nossos 70 anos, um conjunto de textos e imagens nos quais se recorda a produção artística, em especial portuguesa, ligada aos tempos estivais. Publicaremos uma ilustração e um breve comentário, correspondendo às múltiplas solicitações que temos tido. Hoje, para começar a série, invocamos um dos quadros mais célebres sobre o tema. Da autoria de José Malhoa, apresentamos a Praia das Maçãs de outrora, mas podia ser nos dias de hoje. Trata-se de uma amena conversa, à beira-mar. É o mar e o lirismo português que aqui se encontram. O quadro pintado sobre madeira é do Museu Nacional de Arte Contemporânea, o nosso Museu do Chiado, e é datado de 1918. O tempo é aparentemente plácido e sereno, mas em toda a Europa é de guerra, que só terminará no armistício de novembro. Voltaremos, aliás, ao tema, mas hoje fica sobretudo a recordação da beleza da Praia das Maçãs e da costa portuguesa. Sophia poderia dizer: «Há muito que deixei aquela praia / De grandes areais e grandes vagas / Mas sou eu ainda que na brisa respiro / E é por mim que espera cintilando a maré vasa…». Tudo aí está! E uma curiosidade. Sabem que o Rio das Maçãs ou de Colares nasce no Lourel e é alimentado pelos ribeiros Almagre, Morelinho, Nafarros, Mucifal, Mata, Valente e Janas?… Lembro-me como hoje o tilintar da campainha do elétrico, quando ele era a única maneira de chegar à praia, com o pic-nic em malas de verga. 

 

Guilherme d'Oliveira Martins

NA MORTE DE ARIANO SUASSUNA


A morte de Ariano Suassuna, ocorrida há poucos dias, para além da evocação do escritor nas suas abrangências gerais - romancista, dramaturgo, novelista - chama novamente a atenção para uma simbiose entre os grandes criadores literários brasileiros e o desempenho de funções oficiais, ligadas ou não à cultura. Suassuna desempenhou funções de relevo nos governos da Paraíba, seu Estado de origem: mas ao mesmo tempo, marcou todo o ambiente cultural do Brasil com uma poderosa criação abrangendo e percorrendo desde a poesia ao romance, ao teatro e até à adaptação cinematográfica e televisiva.
E tudo isto, curiosamente, numa “irregularidade” cronológica, que o fez estar “ausente” da produção literária e artística com intervalos de anos.
Mas o mais interessante, para lá da qualidade e criatividade propriamente ditas, é a conciliação de um modernismo universal com as raízes locais: ou como escreveu Luciana Stagagno-Picchio,  a propósito especificamente do “Romance da Pedra do Reino” (1971), mas numa abordagem generalizável a toda a obra, “Suassuna constrói um mosaico histórico-poético-folclorístico do sertão do Nordeste aí intercalando (…) os folhetos de cordel dos cantadores nordestinos, guardiões de romances medievais”. E cita especificamente a “dimensão fantástica (que) rompe, transborda todo e género literário, faz-se poema épico, odisseia, apocalipse, sem jamais perder, todavia, o imperturbável sorriso da modernidade”… (in “História da Literatura Brasileira”!997 pag. 636).
Esta análise aplica-se ao conjunto heterogéneo da obra de Ariano Suassuna, e designadamente ao seu teatro, que foi aliás representado em Portugal a partir do início dos anos 60. Recordo aqui o que escrevi em 1961 sobre Suassuna, a propósito do “Auto da Compadecida” e de “O Santo e a Porca”, levadas à cena em Lisboa por companhias brasileiras. “Teatro bastante pessoal, de um ritmo simples, a indicar certas origens, ele passa como um sopro arejado” E noutro texto cito mais peças de Suassuna (“A Pena e a Lei”, “Auto de João da Cruz”), referindo em geral “a religiosidade bem popular e bem telúrica que já encontramos no teatro tardo-medieval português”. E exemplifico com uma fala-síntese do “Auto da Compadecida”: “É preciso levar em conta a pobre e triste condição humana. A Carne implica todas essas coisas turvas e mesquinhas” (in “O Essencial sobre o Teatro Luso- Brasileiro” INCM 2005 pag.88).
Refiro ainda Décio de Almeida Prado sobre o “Auto a Compadecida”, peça que “o celebrizou da noite para o dia (e que) constitui uma síntese do seu teatro, mesclando, à maneira de Gil Vicente, irreverência social e genuína fé religiosa. (…) Quanto ao estilo, é o de um teatro não realista procurando exprimir em linguagem supostamente ingénua, caricatural, os arquétipos sociais da coletividade”. (in “A Literatura no Brasil” vol. VI pág. 30). 
E há aqui também um substrato político direto ou implícito. Alfredo Bosi, escrevendo em 1977, coloca Ariano Suassuna à cabeça de um grupo extremamente relevante de poetas e dramaturgos modernistas que “graças ao novo contexto sociopolítico reserva toda a atenção ao potencial revolucionário da cultura popular”. Além de Suassuna, são citados Gianfrancesco Guarnieri, Augusto Boal e Dias Gomes: do melhor que se escreveu e representou no Brasil. (in “História Concisa da Literatura Brasileira” 1957 pág. 430).
Daí para cá, como sabemos muita coisa mudou no Brasil: mas nestes quase 50 anos, os autores citados, ao longo de vidas que entretanto se extinguiram – e o último é Ariano Suassuna - só reforçaram o seu prestígio e qualidade. 

(cfr. “História do Teatro Brasileiro”, dir. João Roberto de Faria, São Paulo 2012). 

 

DUARTE IVO CRUZ

LONDON LETTERS

That perfect rock, 1937-56

Um dos golpes de génio de Sir Winston S Churchill, e o senhor teve uns quantos durante uma longa vida pública iniciada como Member of Parliament em 1900, é o de unir as nações e culturas do radicalmente plural British Empire sob uma inexaurível trindade política: a lei, a língua e a literatura. O mais daí adviria. — Chérie, c’est l’harmonie des mots qui demande l’ordre et la construction de la phrase. A linguagem como fonte de poder é ilustrada nos seus quatros volumes de A History of the English-Speaking Peoples, obra que inicia na wilderness de 1937, abre à estampa em 1948 quando Leader of The HM Opposition e ultima no definitivo adeus ao No. 10 Downing Street em 1956. A good example is half a sermon! Da importância do quarteto explica o 1953 Nobel Prize in Literature, mas da longevidade da fórmula churchilliana conversam o “A” de Archery e Australia, Antigua & Barbuda ao “W-to-Z” do Weightlifting e Wales, Vanuatu ou Zanzibar nos XX Commonwealth Games a decorrer nas West Central Lowlands de Scotland.

A leitura compassada de The Birth of Britain, The New World, The Age of Revolution e The Great Democracies é a fair companion para este instável Summertime que acolhe os 2014 BC Games na bela Glasgow, até com um quê das far way lands discovered and settled by European adventure. A longa maturação da obra assiste à consistency of a political mind e desvenda o quanto as ideias churchillianas compõem a paisagem do pensamento contemporâneo, mesmo sendo aqueles tempos exigentes e o seu agir político diverso do desleixado… kicking the can down the road. Sir Winston narra altos e baixos na aventura comum dos English Speaking Peoples desde 55 b.c.e., com as tropas de Julius Caesar a marchar das densas florestas germânicas às praias abertas de Calais para depois navegarem o bravio English Channel e desembarcarem na ilha ora chamada Britannia, encerrando o clássico no entardecer da coroa global da Queen Vitoria e advento do American friend. Os Britons são súbditos da Roman rule até ao 4th century, após esta bater a espada de Boadicea e ceder às invasões de Picts, Scots e Saxons. Atenção especial dá o autor aos dois séculos entre 1485 e 1688, a Elisabethean Golden Age e os alvores do world's greatest empire. Suaviza o trote também no 17th century, com Marlborough, Blenheim e Ramilles, nas revoluções que arvoram o English Parliament de corpo consultivo do rei a órgão executivo do reino — an arbiter of the highest affairs of State. Com o parlamentarismo de Westminster se entra no ulterior épico de The US Great Republic.

And that is not the end são as últimas palavras de quem visiona uma coligação que preserve Peace and Freedom nos anos negros da luta contra o expansionismo nazi. Os Allies saem da II World War com o objetivo de erguer uma ordem mundial assente em nobre combate — contra os five giant evils: a miséria, a ignorância, a necessidade, a desocupação e a doença. Nos ventos frescos de sucessivas travessias atlânticas alinhava Mr Churchill as suas teses para o pós-guerra Em 1942 dirige-se aos jovens de Harvard University, que o distingue com a  Honorary degree. A mensagem é memorável: “Law, language, literature – these are considerable factors, common conceptions of what is right and decent, a marked regard for fair play, especially to the weak and poor, a stern sentiment of impartial justice, and above all the love of personal freedom.”

Em múltiplas ocasiões ecoa o estadista a utopia marítima de uma aliança alicerçada na língua. No 1941 Aug 24 Radio Address presta contas à nação dos tratos estratégicos em Washington: “This was a meeting which marks forever in the pages of history the taking up by the English-speaking nations, amid all this peril, tumult and confusion, of the guidance of the fortunes of the broad toiling masses in all the continents, and our loyal effort, without any clog of selfish interest, to lead them forward out of the miseries into which they have been plunged, back to broad high road of freedom and justice. This is the highest honour and the most glorious opportunity which could ever have come to any branch of the human race.” — Hmm. A great political mind is different when some parts are missing.

 

St James, 29th July

 

Very sincerely yours,

 

V.

A VIDA DOS LIVROS

 
de 28 de julho a 3 de agosto de 2014.

 

«Verbo. Deus como interrogação na Poesia Portuguesa» (Assírio e Alvim, 2014), com seleção e prefácio de José Tolentino Mendonça e Pedro Mexia, é uma Antologia sobre a inquietação e a interrogação do sagrado, muito mais do que um conjunto de textos religiosos – merecendo uma atenção especial.

 

 

A INOCÊNCIA QUE CURA
«É a inocência que enche este vazio de tudo / É a inocência que cura». Lembrei-me de Charles Péguy (a quem voltaremos), aqui traduzido por Alberto Vaz da Silva, com a sensibilidade que lhe conhecemos, quando me deparei com a novíssima antologia da autoria de José Tolentino Mendonça e Pedro Mexia intitulada «Verbo. Deus como interrogação na Poesia Portuguesa» (Assírio e Alvim, 2014). O conjunto de textos permite-nos compreender a importância da espiritualidade na nossa cultura, como Unamuno bem entendeu, ou como Eduardo Lourenço tem revelado de um modo superior. «As antologias são documentos sociológicos sobre o país», sendo a poesia o «elemento de agregação de identidade nacional, não só do passado, mas também em relação ao presente». José Tolentino Mendonça tem razão ao afirmá-lo, sobretudo porque a leitura dos poemas escolhidos vai muito para além de uma seleta literária, há perguntas essenciais (ou uma pergunta sacramental) que permitem caracterizar a identidade complexa, que tem feito correr rios de tinta sobre quem somos e sobre o que nos distingue dos outros. A antologia percorre nomes representativos: Vitorino Nemésio, Ruy Cinatti, Jorge de Sena, Sophia de Mello Breyner, Fernando Echevarría, José Bento, Ruy Belo, Cristovam Pavia, Pedro Tamen, Armando Silva Carvalho, Carlos Poças Falcão, Adília Lopes e Daniel Faria. Não se trata, porém, de textos para crentes e não crentes, nem de uma lista exaustiva de autores, mas de algo que Pedro Mexia esclarece: «o que está em causa não é a religião ou a crença, mas a pergunta». Daí a importância do percurso poético, que leva a Jorge de Sena e às suas inquietações (bem nítidas até ao fim da vida): «se Deus partiu para o limite da vida / quando olhámos ambos a realidade das coisas; / se não existe uma barca onde o rumo se invente, / embora as pontes sejam dessas barcas; / se onde estiver um homem não estará outro homem. / Não sei, de facto, porque falo de Deus».

 

UM AGREGADOR DE IDENTIDADE
Eduardo Lourenço, nado e criado sob o calor dos nossos maiores poetas, Camões, Garrett, Antero e Pessoa, aponta-nos uma vereda prometedora: «o fervor é pensar que apesar de perdido, o paraíso continuará a ser ainda aquilo de que nos lembramos, aquilo que permite que saiamos desta terra, onde aparecemos, sem ter o sentimento ou a convicção de que estivemos no inferno». O elemento agregador da identidade cultural que constituímos tem, assim, a ver com essa subtil articulação entre uma fé herdada e uma razão obtida e conquistada, feita vontade e bem presente na voz romântica do «profeta» Herculano. Sophia situa-se, aliás, nessa mesma encruzilhada, tornando-se, ela mesma, símbolo sereno e indefinível do nosso modo de ser: «Escuto mas não sei / Se o que ouço é silêncio / Ou deus / Escuto sem saber se estou ouvindo / o ressoar das planícies no vazio / Ou a consciência atenta / Que nos confins do universo / Me decifra e fita / Apenas sei que caminho como quem / É olhado amado e conhecido / E por isso em cada gesto ponho / Solenidade e risco». E aqui chegamos a Charles Péguy, que João Bénard da Costa gostava de lembrar: «A fé é que vela nos séculos dos séculos. A caridade é que vela nos séculos dos séculos. Mas a minha pequena esperança é a que se deita todas as noites e se levanta todas as manhãs e faz verdadeiramente muito boas noites». Muitos têm falado do estranho silêncio que tem rodeado em Portugal o ano do centenário do poeta de «Notre Jeunesse», mas o certo é que seria fundamental associar este trabalho de recolha com o ano propício em que celebramos o centenário da morte de um poeta importante, desaparecido no início de uma guerra que se adivinhava breve e que se tornou longa, trágica, sangrenta e absurda – cristão, poeta, militante social, republicano, que acreditava intimamente em «dire la verité, toute la verité, rien que la verité, dire bêtement la verité bête, enuyeusement la verité enuyeuse, tristement la verité triste».

 

INTERROGAÇÃO ESSENCIAL
Se a antologia em causa permite perscrutar a interrogação essencial, o recente ensaio de José Carlos Seabra Pereira, no último número da revista «Brotéria» (volume 178, nºs 5-6, maio e junho de 2014), intitulado «Inquietação transmanente na Poesia do Século XXI» é um estimulante itinerário, que permite abrir horizontes bem curiosos. Aí estão os ecos de Nemésio, Sena, Carlos de Oliveira ou de Ruy Belo, até Luís Quintais, passando por Luísa Neto Jorge, Fiama Hasse Pais Brandão, além de Adília Lopes e Daniel Faria, naturalmente. E não passa despercebido o eco das palavras de Adília: «A cada cidade / basta a sua pena // e / o amanhã / é / como o arco-iris»; mas também de Valter Hugo Mãe: «as flores mais belas da ladeira / seriam capazes de criar/ deus». O texto de Seabra Pereira permite-nos, aliás, dizer que a pergunta fundamental da antologia está um pouco por toda a parte – desde Gonçalo M. Tavares a invetivar-nos: «Nenhuma célula é Fértil a não ser a Alma», até Adília Lopes a dizer-nos: «Deixa / o dia de ontem / com Deus // … // Um anjo está contigo / quando desanimas». Os exemplos multiplicam-se, quer na antologia quer no texto académico – sente-se que a matéria-prima da poesia, como nos ensaios sobre quem somos, tem a ver com as perguntas difíceis que vão do sentimento trágico da vida, à intensidade da existência, à força das circunstâncias, à graça e à gravidade, passando pelo rosto do outro (de Levinas), pelo sonho criador (referido à essência da pessoa humana por Maria Zambrano) e pela consciência (de Rosenzweig) de que mais importante do que a utopia é a redenção, como «experiência da espera por uma mudança que pode desencadear-se a qualquer momento como uma repentina iluminação».
«E o que vai ser de ti? Serás talvez / não o que deus não foi para ti: rins / cingidos mas um nome para a tua timidez». Ruy Belo obriga-nos persistentemente à pergunta e à dúvida. E voltamos à inocência de Charles Péguy (ou, quem sabe?, à inocência de Orhan Pamuk). Pedro Sena-Lino lembra-nos, deste modo, que «onde hoje se levanta uma árvore morou uma angústia» e é «tão nítida que se pode separar / a respiração de Deus dos seus escombros». E Ana Luísa Amaral (que encontrei há dias perante o extraordinário grupo do «Disquiet», herança cada vez mais intensa de Alberto Lacerda) põe sobre a mesa «O pensamento mais iluminado. / Saber de energia, o mais puro conceito. / Como Deus // Podem ainda assim / acontecer…». Mas Fernando Pinto do Amaral previne-nos contra «essa herança do céu que há no inferno, / tudo isso a que chamamos melancolia», e Daniel Jonas põe os olhos na «luz refrata de Deus», longe das catedrais no azul de Chartres. E Ana Marques Gastão pergunta: «Diz-me, ó Deus, / Se só há mortos / em minha língua». Daniel Faria: «Rebento no interior da morte como o trigo». Enquanto para José Tolentino Mendonça: «Deus não aparece no poema / apenas escutamos a sua voz de cinza / e assistimos sem compreender / a escuras perícias». A poesia permite assim olharmo-nos.

 

Guilherme d'Oliveira Martins 

FOMOS EM BUSCA DO JAPÃO


Igreja de Oura Tenshudo em Nagasaki

 

6.  OS KAKURE KIRISHITAN 

 

Continuamos falando de sincretismo religioso e da interacção de forças políticas e religiosas. É nossa intenção  -  e esforço  -  tentar situar-nos em perspectivas que favoreçam um olhar mais íntimo sobre o ser-se japonês nos tempos e modos da história. Aquando do nosso périplo pelo Japão, com o CNC, fomos de Nagasaki a Kagoshima por terra e mar. Em  Nagasaki, incluindo Deshima  -   de que oportunamente falaremos  e é, afinal, uma lembrança localizada num sítio  -  visitámos mais memórias do que monumentos. Esses lá estão, mas são recentes evocações e invocações de um passado trágico que, todavia, recordamos com admiração pela coragem das gentes, que nos dá uma esperança para além da saudade ou de memórias tristes... O museu e parque da Paz, onde se encontram também memorabilia portuguesas, testemunham a bonança de querer bem, a seguir à tremenda tempestade atómica. Destruição que não poupou a igreja de Urakami Tenshudo, erguida por filhos de cristãos clandestinos, aqueles que, em 1867, ali confessaram publicamente a sua fé, guardada, no isolamento, durante 250 anos! Era o maior templo católico da Ásia. Em zona da cidade que escapou à razia atómica, ainda hoje se ergue a igreja de Oura Tenshudo, construída em 1864, toda ela de madeira e em estilo neo-gótico, por missionários franceses, entre eles o padre Petitjean, a quem cristãos escondidos terão feito as três perguntas que noutro passo referi. O passeio por Amakusa, Kumamoto e Kagoshima foi uma romaria por terras que, como Nagasaki, acolheram a maior concentração de cristãos  -  e cristãos fervorosos  -  no Japão dos secs.XVI e XVII. Aliás, se pensarmos nos cristãos clandestinos ( os kakure kirishitan ) que, por mais de duzentos anos, guardaram e praticaram a sua fé, à revelia do shogunato Tokugawa, e dissimulando-a sob símbolos shintoístas e budistas, essas são as terras do Japão cristão de sempre... A beleza e serenidade do parque natural de Unzen-Amakusa, surpreendente nas suas inúmeras ilhas, encerra ainda escondidas relíquias cristãs. Mas, sobretudo, interroga-nos pelo contraste dessa lindeza tamanha com a memória emocionada de martírios passados: só em 1638, em Shimabara, a perseguição da sua religião e os pesados tributos impostos pelo bakufu (governo shogunal) levaram à revolta os camponeses locais, tendo sido mortos 37.000 deles. Pelo relato coevo do jesuíta João Rodrigues, o Tçuzu, era povo de tradição e linhagem: também é certo e bem sabido que alguns reinos e regiões costeiras do Japão foram povoados por chineses da antiga China. Assim, por exemplo, foram as ilhas de Amakusa, cujos reis eram chineses descendentes de um rei que iniciou a dinastia Kan (Han em chinês); este rei derrubou a dinastia Ch´in e começou a reinar 250 anos antes de Cristo Nosso Senhor, e a dinastia acabou no ano do Senhor de 220. O senhor de Amakusa, Dom Miguel, primeiro senhor daquela ilha a tornar-se cristão, e Dom João seu filho, que lhe sucedeu, descendiam dessa monarquia Kan, e tinham grande orgulho no facto, e possuíam registos escritos para provar a sua origem... Em Amakusa tinham os jesuítas portugueses instalado uma tipografia, onde se imprimiam livros em romaji  (caracteres latinos) , kanji e hiragana  (sino-japoneses). Também ali fundaram um colégio, onde se montavam representações teatrais, incluindo cenas de monges budistas a serem levados por anjos cristãos... Porque havia proselitismo e apologética, debates e confrontações, entre os missionários cristãos e representantes das religiões locais, designadamente monges budistas. Mas as motivações das perseguições ao cristianismo foram, como veremos, sobretudo políticas e, muitas vezes por xenofobia. Tal como, nos reinos ibéricos desse tempo, a Inquisição perseguia mouros, judeus e cristãos novos,  em defesa de uma ortodoxia, mas, com essa, para construção de identidades nacionais unas e coesas... Fosse como fosse, pelos éditos shogunais que proíbiram a confissão, pública ou privada, da fé cristã, depois de expulsos os missionários e todos os estrangeiros católicos (com excepção dos negociantes portugueses, holandeses e chineses confinados à ilha de Dejima, sendo que, destes, os portugueses foram definitivamente expulsos, curiosamente, por volta de  1640), os cristãos japoneses só tiveram, além do martírio, duas opções: exilarem-se ( e muitos foram para Macau, onde construíram a igreja de S.Paulo, ainda hoje ícone daquela cidade ) ou dissimularem-se ( como os "convertidos" judaízantes na Península Ibérica). A esses clandestinos e seus descendentes se deu o nome de Kakure Kirishitan. Tenho usado indiferentemente as designações senpuku ou kakure para referir esses cristãos escondidos. Todavia, há quem aplique a primeira apenas àqueles que, já no sec.XIX, com a reabertura ao cristianismo, aderiram à Igreja Católica  -  incluindo três rapazes que pediram e receberam, dos novos missionários europeus, a ordenação sacerdotal, para o que foram instruídos e baptizados (ainda que secretamente, para evitar publicidade às dúvidas sobre a legitimidade do baptismo recebido na clandestinidade). Assim, kakure  teriam sido todos e, finalmente, apenas aqueles que, não aderindo à Igreja Católica, perseveraram na fé e práticas religiosas das suas comunidades. São esses que aqui nos interessam, para um relance da alma japonesa. A evangelização iniciada por S.Francisco Xavier logo sofre, para além da ilusão acerca da autenticidade dos propósitos religiosos dos daimyo  -   que, afinal, visavam sobretudo atrair para os respectivos domínios o comércio com estrangeiros (portugueses então) e tomavam, como condição sine qua non, a adopção do cristianismo católico  -  da dificuldade da tradução, para vernáculo, da sua teologia. Tal confusão será imputável ao companheiro japonês de Xavier, Yajiro, de que alhures falamos, como ao facto de o santo jesuíta ter chegado da Índia, pátria do Buda. A própria ideia de Deus único, ainda que Trindade, se prestava a declinações, quando se pretendia comunicá-la numa cultura shinto-budista sincrética, em que os kami ou espíritos anímicos do shintoísmo, forças da natureza e antepassados, se confundiam com os bodisahtva do budismo. Francisco não tinha o dom das línguas e, nos seus debates com religiosos autóctones, em que Yajiro era tradutor, não se apercebeu de que o termo dainichi, mesmo que significasse o princípio de todas as coisas, não correspondia ao conceito do Deus transcendente e único, nem que as várias cabeças daquele, fossem três ou cinco, nada tinha a ver  --  como ao neófito Yajiro parecia  --  com o conceito de trindade una... Por isso, posteriormente, os missionários foram enriquecendo o vocabulário japonês com neologismos portugueses e latinos. Voltemos a Shusaku Endo, e à sua versão dramatúrgica do Chinmoku, a peça Ogon no Kuni (O país de ouro -  que Camões referiu como de prata fina...) Aí, o padre Cristóvão Ferreira diz: Desde o princípio, esses mesmos japoneses que confundiram Deus e Dainichi viraram-se e transformaram o nosso Deus e começaram a criar algo diferente... Mesmo nos tempos gloriosos da missionação, os japoneses não acreditavam no Deus Cristão, mas na distorção que dele tinham feito... Fosse como fosse, certo é que o shogunato Tokugawa, lá para meados do sec. XVIII, finalmente os tolerou, confinados aos redutos ilhéus em que sobreviviam. Variando de grau, conforme a tradição e o destino das muitas comunidades, o culto do Deus cristão, de Jesus e sua Mãe, foi sendo mais ou menos confundido com a devoção dos espíritos que animam a terra na sua diversidade telúrica, os homens e a esperança. Cripto-paganismo, politeísmo, animismo, quem sabe? Uma presença ficou, e nela, ao fim de séculos de isolamento e memória, alguns se reconheceram. Não desafio esse mistério, muito menos lhe imponho, no meu olhar para ele, rigorismos dogmáticos. Não sofri o que eles sofreram. Sem qualquer intenção apologética, mas simplesmente por observação curiosa, tomo nota de uma afirmação do Prof. Stephen Turbull: Duas características da fé Kakure estão intimamente ligadas. São elas a aceitação da família, mais do que do indivíduo, como unidade básica do meio religioso, e a necessidade de continuidade. A Kakure ie é a célula unitária da fé kakure, tal como na religião japonesa, e cumpre diariamente rituais religiosos simples como meio de exprimir essa fé. Nessas áreas, a religião japonesa deve ser vista como exprimindo um conceito fundamental na sociedade japonesa: o da primazia da casa-família. Assim, para além das obrigações do indivíduo para com os kamisama (os veneráveis espíritos, traduzo) da ie , o crente individual não tem existência numérica no vocabulário da hierarquia kakure. Em vez disso, contam-se por casas-famílias que incluem, além dos seus membros vivos, os antepassados que já foram e os vindouros, ainda por nascer, que assegurarão a continuidade da ie.

Chego assim  à repetição de um texto que escrevi sobre os tratados impostos ao bakufu, pelas potências ocidentais, na sequência da abertura forçada do Japão, pelo comodoro Perry, em 1856: Os tratados foram iníquos e humilhantes. O Japão foi forçado ao desmantelamento aduaneiro e a conceder extraterritorialidade aos ocidentais. Para conseguir um estatuto de paridade com as potências ocidentais, o governo Meiji teve, depois, de provar que o Japão era um país "civilizado", merecedor de igual tratamento. E parta importante desse processo foi a compilação de códigos jurídicos à imagem dos europeus. Assim, mandou Mitsukuri Rinsho traduzir os códigos franceses, e até foi sugerido que logo se promulgasse uma tradução literal e se lhe chamasse  Código Civil Japonês. Posteriormente, sob a diracção de Eto Shinpei e Inoue Kowashi, e de juristas franceses, com destaque para um professor da Sorbonne, Gustave Émile Boissonade de Fontarabie, elaborou-se, com alguma polémica pelo meio, o código civil japonês. A controvérsia teve várias facetas, mas tratou-se de um conflito entre o pensamento universalista e teórico dos juristas franceses da lei natural, e as ideias mais empíricas e particularizantes dos defensores de um pensamento jurídico historicista, ligados estes às escolas inglesa e alemã. Estas argumentavam que o conceito de ie (casa ou casa-família), e os sentimentos por ele engendrados eram intrínsecos ao particularismo da sociedade e dos valores tradicionais japoneses. Hozumi Yatsuka ficou conhecido pela frase: A lealdade e a piedade familiar morrerão com a entrada em vigor do código civil... ... Com a disseminação do Cristianismo na Europa, um auto proclamado "pai nosso que estais no céu" veio monopolizar o amor e respeito de todos os homens. Talvez por essa razão, os ocidentais negligenciam a devoção aos antepassados e o caminho da piedade filial. Com a divulgação de doutrinas como a da igualdade e humanidade, eles cortam a importância dos costumes étnicos e dos laços de sangue. Talvez por isso já não exista entre eles um sistema de casa. Em seu lugar, criaram uma sociedade de indivíduos iguais e tentaram sustentá-la por leis centradas nos indivíduos. Hozumi explicou porque é que o código civil proposto por Emile Boissonade levaria à perda da identidade japonesa: a ilimitada liberdade poderá aumentar a produtividade, mas à custa de um alargamento da diferença entre ricos e pobres, daí resultando conflitos entre patrões e operários; a imitação do individualismo ocidental, no direito da família, leva a considerar que maridos e mulheres, filhos primogénitos, varões e outros, embora indivíduos distintos, são iguais, com o perigo de assim se romper a sociedade japonesa, que sempre se apoiou no respeito da reverência dos antepassados, que é essencial à casa. 

   Conseguiu Hozumi assim que fosse adiada sine die a promulgação do novo código. Até que, reformulado por uma comissão presidida por Ito Hirobumi e Saionji Kirumochi, entrou em vigor, trinta anos depois das primeiras traduções do francês. Orientado por dois princípios: o da prioridade das instituições e práticas consuetudinárias japonesas; e o da consideração dos princípios mais válidos e consistentes das teorias jurídicas de todas as nações ocidentais. Ou de como o antigo se esconde até que...

 

Camilo Martins de Oliveira 

A Força do Ato Criador

 


Aldo Rossi, Passado, Memória e Continuidade


Aldo Rossi, através do livro ‘L’architettura della città’ (1966), constrói uma metodologia própria com grande repercussão internacional – quase como um novo tratado. É o início do Neo-Racionalismo italiano ou Tendeza. A reconciliação com o passado, a introdução da memória e a sugestão para uma construção da cidade em continuidade são os temas chave desta obra de referência. A ordem e o rigor com que os temas são discutidos, cria como que um mecanismo quase científico e viável para transformar a arquitectura da cidade.

A arquitectura contemporânea reconcilia-se com o passado remoto e recente sem preconceitos. Rossi reconhece mestres em todas as épocas, desde as contribuições renascentistas até aos modernistas como Mies Van Der Rohe e Adolf Loos.

Aldo Rossi evoca a memória como sendo, por um lado, um dispositivo mais impreciso, mais intuitivo e fantasioso do processo de construção da cidade e, por outro, um instrumento que permite acompanhar a produção de formas através de um processo racional, lógico, analógico, histórico e público. O pensamento analógico, para Aldo Rossi assume grande importância e não é um discurso, mas uma meditação sobre temas do passado. É um monólogo interior, arcaico, inexplícito e praticamente inexprimível em palavras – é passível de ser entendido ainda que irreal.

Rossi compõe assim a cidade de acordo com um processo de repetição e de analogia – sobretudo no que diz respeito à habitação – e de acordo com elementos excepcionais, que transportam partes de história e que definem a imagem e o carácter da cidade – o regresso ao monumento. Segundo Aldo Rossi a ideia de monumento está associada à memória da cidade. Os monumentos são datas para a cidade, é através deles que o homem toma consciência da passagem do tempo, é através deles que se transmitem ideias, técnicas e se interpreta a história. A história documenta a estrutura urbana na sua descontinuidade, individualidade e forma.

A sugestão de continuidade revela-se no sentido de que a arquitectura constrói-se com um objectivo, o da duração, e estabelece por isso uma ligação entre o presente, o passado e o futuro.

Rossi ao repor valores de monumentalidade, solidez e permanência está declarar a importância da forma na constituição das cidades e porque a forma deve ser concebida para durar, as funções estão sempre a mudar constantemente.

Ao acumular a imaginação do Homem, a cidade sintetiza um conjunto de valores colectivos. Revela-se, deste modo, a importância do contexto, no que diz respeito a pré-existências e à tradição. Rossi analisa a cidade através dos seus artefactos, das suas permanências morfológicas e tipológicas e define o artefacto urbano como sendo o único programa capaz de encarnar os valores históricos da arquitectura, cujos referenciais racionais devem advir analogicamente do vernáculo, da memória colectiva, das necessidades do quotidiano e assim construir o local através de formas estruturais.

A definição de um artefacto urbano só a partir de uma função específica não faz sentido para Rossi, porque a função muda com o tempo e com as necessidades de uma comunidade e de um lugar. A história permite que a ideia de passado constitua a estrutura dos artefactos urbanos, do tempo presente – o ser humano aceita perenidade nos artefactos urbanos sempre que sente necessidade de se expressar nas suas formas. Sendo assim, o artefacto é um momento típico ou tipo da cidade – o monumento é também um artefacto urbano. O tipo desenvolve-se de acordo com as necessidades e aspirações de uma comunidade. Formaliza um modelo e uma maneira de viver constante, variando de sociedade para sociedade. Para Aldo Rossi, a constituição do tipo em arquitectura estabelece-se através da conjugação de três parâmetros: geometria (referência mais convencional da arquitectura), topologia (ao enfatização conceptual das relações de proximidade, separação, sucessão, clausura e continuidade) e pulsão (vivência corporal e psíquica de um espaço).

Morfologia e tipologia urbana servem para Rossi descrever a complexidade do processo de implantação da cidade – relações entre traçados viários e quarteirões, entre formas de uso e formas de edificação. A lei de constituição de projecto depende da especificidade do lugar.

E assim Aldo Rossi ao projectar Gallaratese, em 1969, recorre à metáfora e à geometria directa, repetitiva e quase primária. O complexo, pensado para 2400 habitantes, é um contentor de cidade, estando equipado com serviços, escolas, comércio e espaços públicos destinados a uma vida em comunidade. Rossi quis aqui criar um tipo urbano – através da grande escala, das diversas funções e dos diferentes discursos e analogias.  

 

Ana Ruepp

FOMOS EM BUSCA DO JAPÃO


Memorial de Wenceslau de Moraes em Kobe.

 

5. SINCRETISMO RELIGIOSO

 

Começo este fascículo, transcrevendo um texto de Wenceslau de Moraes: O Shintô é, sem dúvida alguma, uma religião perfeitamente constituída, com os seus deuses, com os seus templos, com os seus sacerdotes, com os seus ritos; mas é ainda mais, talvez, um regímen de moral cívica, um código sentimental de brios nacionais e patrióticos. Alguém já o explicou por esta maneira: - " É uma coisa incorpórea como o magnetismo e indefinível como um impulso ancestral; constitui parte da alma da nação." Adoram-se os deuses criadores do Nippon e outras divindades protectoras, o sol, a lua, o solo pátrio, o soberano, todos os grandes servidores e todos os nomes ilustres do Império. O Budismo chegou aqui já profundamente modificado pelos chineses; mas, em contacto com o Shintô, mais se modificou ainda. O facto foi devido à perspicaz tolerância dos bonzos, que cuidaram de estabelecer afinidades entre as duas doutrinas, no propósito de evitarem antagonismos, melhor  -  de atraírem simpatias. E conseguiram-no: sucede que, na massa da população indígena, raros serão hoje aqueles que professem exclusivismo absoluto por uma das duas religiões; o povo vai orar aos templos do Shintô e vai orar aos templos de Buda, aprazando-se na companhia de todos os deuses. O primeiro acto de devoção, do japonês e da japonesa, em cada manhã, logo após a lavagem do rosto e da boca, é bater palmas e erguer as mãos em prece, saudando o astro da luz; a prática é puramente shintoísta; mas em seguida irá queimar incenso junto ao altar dos mortos, conforme os ritos de Buda. O japonês, quando menino, é levado ao templo de Shintô, onde o sacerdote, o kannushi, o abençoa; quando morre, o seu cadáver é levado ao templo de Buda, onde o sacerdote, o bonzo, lhe reza pelo espírito. Pode mesmo dizer-se que as duas crenças de certo modo se completam: o Budismo, religião toda de paz, de piedade, de abnegações, vindo acalmar os ímpetos de um credo fogoso e aguerrido, como é a crença de Shintô, formando-se assim a alma nipónica, tal como hoje a conhecemos,tão especialmente dotada de qualidades de eleição, capaz de todos os arrojos e capaz de todas as delicadezas. O Japão foi -  e para muitos continua sendo  -  uma paixão obsessiva de missionários cristãos. S. Francisco Xavier considerava-o uma seara privilegiada do evangelho, o próprio Camões afirma a crença na conversão do Japão, numa oitava do canto X de Os Lusíadas, quando Tétis profetiza ao Gama que:

          "Inda outra muita terra se te esconde 

           até que veha o tempo de mostrar-se;

           mas não deixes no mar as Ilhas onde

           a Natureza quis mais afamar-se:

           esta, meio escondida, que responde

           de longe à China, donde vem buscar-se,

           é Japão , onde nasce a prata fina,

           que ilustrada será co a Lei divina."

Sobre a circunstância histórica do cristianismo que os portugueses levaram ao Japão, veremos adiante o que se nos oferece. Por agora, para melhor entendimento do tema do sincretismo religioso, contraponho ao texto do Wenceslau, acima reproduzido, outro, do escritor católico japonês Shusaku Endo. Este autor, foi muitas vezes apontado como um Graham Greene japonês, pela sua inquisidora, inquietante contemplação da misteriosa convivência do pecado e da graça, na contradição que é a condição humana, ou na confusão entre coração e cabeça, cabeça e coração, que talvez sejam dois nomes que damos à inevitável confrontação do nosso pensarsentir... A sua confissão, que adiante transcrevo, rompe e ejecta-se do íntimo da sua identidade nipónica e, simultâneamente, da profunda convicção do seu baptismo. Numa Europa que vai perdendo a sua fé, sem coração nem cabeça que ressuscite, em tempos novos, a identidade essencial da sua tradição, do extremo oriente nos chegou um grito que, quiçá, nos poderá converter, chamar-nos a nós mesmos. A obra mais conhecida de Shusaku Endo é um romance histórico: Chimoku. Quer dizer silêncio, narra, mas sobretudo olha e escuta a apostasia do padre Cristóvão Ferreira, o provincial dos jesuítas no Japão  --  que publicamente renunciou, em tempos de perseguição e derrota dos cristãos, à sua fé. Aceitando, inclusivamente, casar-se com uma japonesa. Mas, nessa circunstância de razia e deserção de fiéis, terá sido apóstata no seu coração? Ou fingiu a apostasia, para que, sobrevivendo, pudesse ministrar os sacramentos e continuar a sua missão? Quando, mais adiante, nos debruçarmos sobre a história e a resistência dos cristãos japoneses clandestinos  -  os senpuku e os kakure  -  uns mantendo, na solidão, uma fidelidade eclesial, outros embarcando num sincretismo com crenças indígenas, constituindo seitas todavia cortadas da osmose budo-shintoísta prevalecente nos 250 anos do shogunato Tokugawa, perceberemos melhor o drama de Shusaku Endo, de que ele mesmo criou uma versão para teatro, realizada também em cinema. Assim confessa o autor à revista Kumo: Fui baptizado em criança, isto é, o meu catolicismo foi um pronto-a-vestir. Depois, tive de decidir se faria o fato adaptar-se ao meu corpo, ou se o deitaria fora, para vestir outro. Muitas vezes senti que queria desfazer-me do meu catolicismo, mas, finalmente, fui incapaz de o fazer. Não foi só não deitá-lo fora, foi sentir-me incapaz de o deitar fora. A razão disto talvez seja ele ter acabado por se tornar parte de mim. O facto de ter penetrado tão profundamente em mim quando jovem era um sinal de que, pelo menos em parte, se tornava numa co-extensão minha. Mesmo assim, não conseguia desembaraçar-me do sentimento de se tratar de algo emprestado, e comecei a perguntar-me o que seria o meu ser-eu-mesmo. Penso que isto é o pântano de lama japonês em mim. Desde que comecei a escrever romances, e até hoje, esta confrontação do meu ser-eu-mesmo católico com o ser-eu-mesmo que lhe está subjacente tem, como refrão repetido por um idiota, ecoado e voltado a ecoar na minha obra. Senti que tinha de encontrar maneira de reconciliar ambos. O tal pântano é metáfora de uma circunstância cultural que suga todo o tipo de ideologias, e dentro de si as modifica e transforma. Pela minha lembrança, sempre falível, do que me contaram em Nagasaki, três foram as perguntas feitas, já no último quartel do sec.XIX, a um missionário francês que ali pudera celebrar, novamente, uma missa a que, encolhidos no fundo da igreja, curiosos, desconfiados, esperançosos, tinham assistido desconhecidos japoneses: acreditas na presença de Cristo na hóstia? na Virgem Maria sua mãe? obedeces ao Papa em Roma?... Perante as respostas afirmativas, exclamaram: Então és dos nossos! Todavia, a maioria dos cristãos clandestinos do Japão, ao longo de 250 anos, não conseguiu escapar à força sincrética da espiritualidade indígena. Muitos deles que, hoje ainda se mantêm fiéis a uma comunhão de fé que o poder político quis eliminar, conservaram-na, na marginalidade, recriando-a com  estigmas e ritos recolhidos do animismo local.

            
Camilo Martins de Oliveira

Bom dia pé!

 

África pode ser a grande parcela do futuro. O continente da fome e das feridas abertas a muitas indiferenças internas e externas, sem qualquer tranquilidade histórica, pode mostrar-se como parte do preenchimento de uma falta universal que é a da solidariedade real.

A bofetada de luva viria da Africa-Mulher-Mãe de Consistência. Viria de um povo pouco escutado e só visto a bater-se e a morrer em campos minados e nunca desvitalizados de um poder nefasto à escala mundial.África é um foco de universalidade e de universidade, no sentido de que pode constituir um futuro numa sensibilidade ao direito e ao afecto que é, sem dúvida, índice de emoções universais.Não pode África, neste papel nuclear,compactuar com as rotas do dinheiro fácil, abertas sem fronteiras à destruição e à anulação dos próprios povos. A África rica, também na cultura,pode e deve espalhar-se pelos seus filhos e em qualquer mundo, num manifesto alternativo.

Cremos que o futuro da humanidade não passará tanto pelas novas descobertas científicas, mas sim pela utilização do já conhecido ao serviço de todos. Só as sociedades alienadas se resignam àquilo em que a tecnologia do poder as transforma. Talvez Portugal ainda venha a ser uma síntese de esperança, se compreendeu a falência das planificações centralizadas ou a opressão do extremo liberalismo.

Camus, Lefort, Merleau Ponty, Levi-Stauss, Castoriadis, todos eles sacralizaram as revoltas, mas em verdade se diga que, acima desta perspectiva, se encontrava o levar o homem à construção do grande caminho inacabado.

Não basta propor o sol, o vento, o mar. O sentido do tempo e do instante fazem a diferença entre evolução e ruptura.

Recordo Kafka:

Os leopardos invadiram e beberam o vinho dos vasos sagrados. Esse incidente repetiu-se com frequência. Por fim, chegou-se a calcular, de antemão, a hora do aparecimento das feras. E a invasão dos leopardos foi incorporada ao ritual.

Todos somos chamados às responsabilidades dos erros cometidos, mas o grande esforço é o de nos libertarmos do medo à liberdade. Agora mais do que nunca, deve surgir também um Brasil alternativo, generoso, imaginativo, um Brasil que não marginalize o próprio povo, que não se abrace em festas irreflectidas, um Brasil que não vacile nos conclaves destruidores de cada lugar-centro de vida.

Há uma Lua belíssima que nasce todas as noites nos países de língua portuguesa. É uma Lua cujos reflexos por entre as terras mais remotas, os mares e os néons, dá as mãos e saúda as falações destes povos e que se não despede nunca, antes é o canal ou a reza de um terço que jamais se separará das suas contas.

E Brasil também é África, tal como a Europa também é mundo e tal como o mundo é uno, num grosso volume de caminhos.

Quase todos preferimos que Deus venha quando alguém está pronto. E é nesta alquímica oportunidade que a vida pode ter momentos inesquecíveis enquanto templo de cada um. Não podemos ficar pelos sonhos dos outros. Não se deseja um povo à aventura da minoria ainda que seja bem intencionada. De certo modo o povo começa a despertar quando deixa de ser povo numa boçalidade de folclore e inicia a reflexão, a participação.

Depois de um tempo sem luz , vinha como dizia John Sharkey, aquele, em que as pedras com buracos eram colocadas à entrada das câmaras funerárias: símbolo da passagem a um outro nascimento.

Livres dos medos e dos compromissos, da cor, da classe, dos sistemas, venha solta a multiplicação do amor que interpreta o seu metabolismo próprio e perguntemo-nos também : quem tem medo de uma nova filosofia da economia?

E dizer todos os dias pela manhã, como um dia li : bom dia pé! Que bom que é ter um pé, isto é dois.

E a voz disse:

Sei que morrerei na esperança, mas essa esperança é preciso fundamentá-la.

 

M. Teresa Bracinha Vieira

 

Julho 2014

OS MAIS ANTIGOS TEATROS DE LISBOA – II – O TEATRO DA RIBEIRA E OUTROS TEATROS REAIS

 

Evoco aqui outro teatro desaparecido de Lisboa, e este certamente o mais malogrado, digamos assim. Trata-se do Teatro da Ribeira, também chamado Ópera do Tejo, edificado por D. José I junto ao Terreiro do Paço, inaugurado em 2 de Abril de 1755 com a ópera “Alessando nella India” de David Peres, e totalmente destruído no terramoto de 1 de Novembro de 1755.

Ficaram descrições do esplendor do edifício e algumas gravuras, não da sala nem da fachada, mas das ruinas que, durante alguns anos subsistiram até ser construído o que seria o Arsenal.

Mas ficou também a memória do esplendor dos poucos espetáculos realizados no Teatro da Ribeira. Gustavo de Matos Sequeira reconstitui esse espetáculo inicial, referindo “o deslumbramento do teatro, pelo edifício e pelo recheio”. E remete para uma notícia da época, que considera “exagero manifesto” – a presença, em cena, “de 400 cavaleiros figurando uma falange de Lancedemónios”. É realmente impossível!...

Mas há como que uma premunição, ou um estranho destino desta sala esplendorosa, nos poucos meses que durou. É que em 6 de Junho sobe à cena um espetáculo evocativo da “Destruição de Cartago”, assim denominado: e estaria programado para 1 de Novembro, uma réplica ou sequência, presume-se, intitulada ”Destruição de Troia”!... é Matos Sequeira que o refere, remetendo para um manuscrito da época, onde se lê que “permitiu Deus que se representasse ao vivo o que vimos em Lisboa”. (Gustavo de Matos Sequeira “Teatro de Outros Tempos, 1933 pag. 290-291).  

Maria Alexandra Trindade Gago da Camara e Vanda Anastácio referem documentação da época, citada por Francisco Coelho de Figueiredo, onde se descreve a magnificência, mas também a menor funcionalidade do Teatro: “a riqueza, delicadeza e bom gosto (…) com quatro filas de camarotes, (…) a plateia muito comprida sem aquela graça que teve o (teatro) de Salvaterra”, sendo ainda assinalado, neste curioso texto que “se achavam os espetadores distraídos com riqueza da casa, que era branca e muito ouro em ornatos, esquecendo-se da cena”! (Maria Alexandra. T. Gago da Câmara e Vanda Anastácio “O Teatro em Lisboa no Tempo do Marquês de Pombal”  ed. MNT 2005 paga. 84).

O terramoto destruiu pois este teatro, mas não destruiu o gosto de D. José pelo teatro. Sabe-se que, na sequência imediata do terramoto, o Rei instala-se provisoriamente naquilo que ficou conhecido como a Real Barraca ou Paço de Madeira, e que de certo modo daria origem ao Palácio da Ajuda, começado a construir apenas em 1794. Mas, dizem-nos as duas autoras acima citadas, “um novo teatro real, agora sim o Teatro da Ajuda, seria construído em 1762. (…) De pequenas dimensões, comportava 130 espetadores. Não tinha camarotes exceto uma tribuna ou galeria sobrelevada, destinada á família real e dois camarotes de boca para o Patriarca e para algum estrangeiro de grande condição”.  (ob. cit. pag. 88).  Refira-se  entretanto que terá existido um anterior  teatro da Ajuda, que Sousa Bastos situa a partir de 1737 e que  seria restaurado ou reconstruído por D. José. ”Sobreviveu” até 1791. (Sousa Bastos, “Dicionário de Teatro Português” 1908).

E diga-se ainda que a tradição de teatros ligado à corte e aos Paços Reais ganha expressão e desenvolvimento sobretudo a partir do seculo XVIII e tem o seu máximo esplendor no Teatro de São Carlos (1793). 

 Mas havia outros teatros da corte. O Teatro de Salvaterra, integrado no Paço onde D. José por vezes se instalava, durou exatamente um seculo, (1762-1862). Nele ocorrerá, na noite de 27 para 28 de Fevereiro de 1824, a morte misteriosa do Marquês de Loulé, plausivelmente assassinado.

E finalmente: em 1778 é inaugurado um efémero Teatro de Queluz, nas instalações do Palácio, teatro esse  demolido em 1790: situava-se na ala que até recentemente alojava os Chefes de Estado estrangeiros. E ficou a tradição de D. Miguel cantar, no Teatro ou numa sala do Palácio de Queluz, árias do “Don Quixote”, ópera de António Teixeira sobre o texto de António José da Silva!

 

DUARTE IVO CRUZ

Pág. 1/4