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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

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A FORÇA DO ATO CRIADOR

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Uma leitura acerca da realidade urbana de Cergy-Pontoise em ‘L’ami de mon amie’(1987) de Eric Rohmer.

 

’C’est un peu comme un village ici. Ça m’avait dejá arrivé de tomber sept fois sur la même personne alors que j’avais lui dit bonjour une première fois.’

Fabien em ‘L’ami de mon amie’ de Eric Rohmer

 

Eric Rohmer (1920-2012) apresenta-nos no filme ‘L’ami de mon amie’, uma cidade totalmente independente, com vida e imagem próprias, concebida à luz dos princípios de zonificação urbana determinados por Le Corbusier. ‘L’ami de non amie’ traz-nos uma Cergy-Pontoise para trabalhar, habitar, circular e cultivar o corpo e o espírito.

 

‘Alexandre – Vous plaisez Cergy?

Blanche – Oui, beaucoup.

Alexandre – Evidemment avec les quinze chaîne de television, les lakes, le tennis et bientôt les deux theatres, on a du mal à s’ennuyé. Je plaisante, mais je ne me trouve pas trop mal ici.

Blanche – Mais, je ne me sens faite ni pour la grande ville ni pour la province.’

 

A visão, dada por Eric Rohmer, acerca de Cergy-Pontoise é parcial, especulativa e irreal. Há uma tentativa de recriar uma cidade que se deseja e que, na verdade, não existe.

Projectada entre 1981-85, Cergy-Pontoise constitui-se uma das Villes Nouvelles planeadas pelo governo francês nos arredores rurais de Paris, ainda sob domínio ideológico surgido no período pós-guerra – para descongestionar centros urbanos, controlar comunidades na periferia e oferecer habitação social.

 

‘Soleil. Espace. Verdure.

Les immeubles sont posés dans la ville derriére la dentelle d’arbres.

Un cycle s’accomplit quotidiennement, incriminant logis, travail et recuperation.’, Le Corbusier

 

Rohmer define Cergy-Pontoise, como sendo um grande lugar de encontro, onde as ruas e as praças se cruzam. Cergy-Pontoise é apresentada como uma Ville Nouvelle utópica, que pretende ser modelo de uma comunidade burguesa nos arredores de Paris. Cergy existe em perpétua atmosfera solarenga e saudável (a história do filme desenrola-se no verão). A cidade oferece vida artificial, realidade criada e idílica, centro comercial paradisíaco, com lugares reais de encontro.

Eric Rohmer já tinha filmado ‘Les Nuits de la Pleine Lune’ (1984) em Marne-la-Vallée. O seu fascínio pelas Villes Nouvelles ficou marcado pelas emissões que realizou, para a televisão, acerca destas aglomerações, nos anos 70.

Cergy-Pontoise oferece três possibilidades a Rohmer:

  1. Contexto urbano de linhas espaciais geométricas e próximo da natureza.
  2. Facilidade em fundir personagens com a cidade, enriquecendo a ficção. A cidade oferece sítios para trabalhar, para habitar, para lazer e para férias.
  3. Desenho espacial que serve uma estrutura narrativa franca e transparente. A nova cidade traz novos costumes, uma nova moral – a nova arquitectura determina os trajectos e assim como a evolução sentimental das personagens.

Ora, pelas funções que representa, Cergy determina-se totalmente singular, com unidade urbana e identidade social, capaz de viver por si própria e que recusa a imensidão de Paris. O filme retrata um único estrato social – uma população jovem urbana que reside e trabalha na cidade.

Cergy apresenta, em relação a Paris, uma dependência histórica (o passado de Cergy tem de ser simulado por formas construídas que fazem lembrar palácios), dependência funcional. Existem certas actividades que só Paris oferece. Paris trazida por Rohmer só aparece como um cenário de fuga para Blanche e não como espaço de permanência.

E seguimos Blanche e os lugares de Cergy que mais se identificam com a sua personagem – trabalho na Câmara Municipal, almoço na cantina, piscina, residência de aparência aristocrata, as compras, as deslocações, os tempos livres (ténis, windsuf nos lagos, caminhadas pelas grandes zonas verde, pela margem do l’Oise,).

O centro de Cergy surge totalmente polifuncional – oferece trabalho, serviços administrativos, espaços de encontro (praças com vários níveis de circulação), de lazer (parque e piscina), universidade, comércio e residência.

O esquema urbano pensado por Bofill, onde Blanche mora, apresenta uma praça, no sentido mais tradicional, monumental com um marco de referência – a Torre do Belvedere. Bofill ao projectar para as Villes Nouvelles, afirma uma habitação social com sentido e importância exaltado e rico. Bofill ao procurar referências na arquitectura clássica propõe numa escala colossal, um modo de viver artificial e teatral. Bofill traz ao quotidiano elementos formais dos palácios aristocráticos, acreditando numa sociedade cuja posição social e o poder político são determinantes. Bofill objectiva com o poder das suas formas, puramente visuais, exaltar o estatuto do homem, eliminando problemas de segregação social e de falta de condições de vida (desemprego e pobreza).

O centro comercial de Cergy, no filme oferece espaços de consumo local e ocasional, cuja escala é a de bairro ou de pequena vila. Aparece como peça central, sendo espaço importante para trocas sociais e comerciais – aqui proporcionam-se encontros ocasionais mas determinantes entre Fabien e Blanche.

A favor do espaço verde, aberto a todos – ar, sol, lagos, relvas, jogos – Cergy possui uma base náutica e lagos de banho. Os populares vindos dos arredores aqui passam os fins-de-semana (‘Les heures librés hebdomadaires doivent se dérouler dans des lieux favorablement préparés, parcs, fôrets, terrains de sport, stades, plages, etc.’, Le Corbusier, 1933).

Eric Rohmer apresenta, assim uma Cergy com uma dimensão adequada às necessidades dos seus personagens. O filme oferece imagens de uma cidade ideal que permitem permanência de vida. Cergy-Pontoise é, para Rohmer, uma entidade constituída por unidades isoladas, capaz de materializar a vida repartida em diversos espaços que permitem o encontro – descrevem-se sectores para o trabalho (áreas industriais, universitárias, empresariais, comerciais e administrativas), sectores residenciais, comunicações e transportes, e esferas recreativas e verdes.

 

Ana Ruepp

SONETOS DE AMOR MORDIDO

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Carlos V de Habsburgo

 

5. A CARLOS V, EM YUSTE ABDICADO 

 

      Erguendo as mãos, Te levo este embaraço:

      na coroa, império, amor, não tive sorte,

      e já nem sei qual foi a pior morte,

      se a de Isabel, ou só o meu cansaço...

 

      Não desci, nem deixei o trono só: 

      vim apagar mágoas fundas e dores,

      sonhos secretos e seus estertores

      no tempo, que de nós nunca tem dó...

 

      Eterno, acreditei, pudesse ser

      de todos nós, cristãos, o nosso reino,

      e sobre a divisão prevalecer

 

      a redentora cruz, esse sinal,

      tão forte como outro que em mim tenho:

      morta, vive Isabel de Portugal!

 

Camilo Martins de Oliveira

PORVENTURA VERSOS

9.

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Foi quando nesta vida

Uma morte me surgiu

Desfalecida e peregrina

Por um atalho que nunca lhe cedi

 

Exigi-lhe promessa de segredo

Ao que ela queria chamar consolação

 

Mas meu canto

Àquele que só eu subi

Esqueceste  

Ó morte!

 

Que só por meus olhos vi

O que quiseste levar mentindo

Sabendo só eu, os sem remédios com que me cuidei

 

E tu no teu perder

Encurtas anos, tempos atados e celestes

Mas não erros

 

Por onde levo a ferros

Meus amores 

 


Teresa Bracinha Vieira

2015

 

10.

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Consente ó vida

Que se conte coisa fabulosa e nova

Bem viva e não vencida

De olhos tão abertos

Ainda e sempre

No buscar o que mais quer

Que um sorriso lhe baste

E por ele se lhe refere

 

Consente ó vida

Que pensamentos

Contos, amores e tempos

Possam ser breve mentira

Coisa justa de tanta brandura

Que a delicadeza robusta

Aceita e lhe não fere

 

Consente ó vida

Que a nossa história

Segundo entendo

Vá nascendo livre e semeada

Em ira e beijos cortesãos

Cheios de um nada de palavras

Mas ousados

Infames, feios, crus

Licenças

 

 

Consente ó vida

Um socorro de benigna estrela

De alabastro, primor e ferros

E seja ela a mãe de uma filha que já viu tudo

E se não perdeu no reino dos erros

Dos fogos embaixadores de tantos saberes

Que aqui estou eu e nós

A pedir-te

 

Consente ó vida

Não me/nos dês sortes

Será assim: a cada um sua carta

E a todos por modos vários

Mensageiros

Manhãs, empórios libertadores

Pois assim serei contigo

 

Ámen

 

 

Teresa Bracinha Vieira

2015

ATORES, ENCENADORES (VIII)

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EVOCAÇÕES, DESLOCALIZAÇÕES

 

Faz-se hoje referência a dois aspetos distintos de uma política, digamos assim, de descentralização e deslocalização teatral: atores, encenadores, que ou fizeram a carreira fora de Lisboa, ou que foram devidamente homenageados fora de Lisboa. E tenha-se presente que esta circunstância não é despicienda, dada a secular centralidade do teatro-espetáculo em Portugal.

Referimos, nesse aspeto, em primeiro lugar, Rosa Damasceno (1849-1904). E se a cito, é porque, tal como vimos no artigo anterior com o ator e os Teatros Taborda, o prestigio de Rosa Damasceno manteve-se até muito depois da sua morte: e sobretudo, justificou, a partir de 1893, a denominação de Teatro Rosa Damasceno a um velho Teatro de Santarém, erguido em 1894 no local onde existira a Igreja de São Martinho, e onde, desde pelo menos 1810 se produziam espetáculos. E não só: há noticia de uma representação do “Frei Luis de Sousa”, em 1847, no antigo Convento de São Domingos, espetáculo de que Herculano dá notícia.

De qualquer maneira, o que agora interessa é que a carreira de Rosa Damasceno justificou a homenagem.

 Esse primeiro Teatro Rosa Damasceno deve-se a um projeto de José Luis Monteiro e  dele ficou a memória de uma sala imponente, com 800 lugares entre plateia, 60 camarotes e geral. Seria substituído em 1938, no mesmo local, por um novo Teatro Rosa Damasceno, este da autoria do Arquiteto Amílcar Pinto: “obra prima da arquitetura moderna e da art-deco em Portugal” escreveu Jorge Custódio. (in  Relatório para a CMS citado em Duarte Ivo Cruz- “Teatros de Portugal”- 2005) E só é de lamentar que tenha sido votado ao abandono durante décadas ,não obstante a notável fachada e a qualidade arquitetónica do interior.

A atriz Rosa Damasceno estreou em 1867 no Teatro da Trindade  com um dramalhão intitulado ”A Mãe dos Pobres” de Ernesto Biester.  Casada com o ator Eduardo Brazão, cumpriu uma longa carreira no Teatro D. Maria II e no Teatro D. Amélia,  com destaque para o que era, na altura, o teatro romântico e contemporâneo  português, em estreias de peças ou de adaptações, desde Garrett a Júlio Dinis, a D. João da Camara e  ao então estreante Júlio Dantas: mas também os clássicos portugueses, e ainda Shakespeare, Molière, Tolstoi, e muito repertório romântico e ultrarromântico francês, ou seja, o repertório “moderno” da época.

Avancemos algumas dezenas de anos.

Vamos então encontrar, a partir de 1953, o Teatro Experimental do Porto - TEP, fundado e dirigido, até 1961 por António Pedro (1909-1966). Tal como noutro lado escrevi, a sua marca sente-se “no combate por uma renovação do espetáculo teatral nos Companheiros  do Pátio das Comédias ou sobretudo, nos anos 50, no Teatro Experimental do Porto ou e na magnífica reflexão erguida sobre uma notável sabedoria técnica que é o Pequeno Tratado de Encenação”. (in “História do Teatro Português” - 2001).

Deveu-se-lhe sobretudo como encenador uma obra decisiva de renovação da cena portuguesa, escreveu Luis Francisco rebello (in “100 Anos de Teatro Português – 1880-1980” – 1984). Mas António Pedro é também um dramaturgo de qualidade, sobretudo em linhas de conciliação do sentido técnico-dramático com uma modernização de estilos e técnicas de espetáculo, patentes tanto nas encenações como na próprias peças de sua autoria:  “Teatro – Comédia em um Ato”,  “Desimaginação”,”Andam Ladrões cá em Casa”  “Antígona”,  “Reginaldo” e “O Lorpa”.

Mas sobretudo, António Pedro foi um grande homem de teatro, no sentido mais abrangente. Contribuiu, como diz Luciana Stegagno Picchio, para dar “um cunho especial” ao teatro português. (in”História do Teatro Português” – 1962).

E basta recordar os autores que encenou no TEP,  entre 1953 e 1961, de acordo com um rigorosa levantamento feito por Carlos Porto (in “O TEP e o Teatro em Portugal” – história e imagens” – 1997):

Léon Chancerel, Egito Gonçalves, Anton Tchekhov, Arthur Miller, Jean Cocteau, Victor Ruiz Iriarte, Shakespeare, Sófocles, António José da Silva, J. M. Synge, Guilherme  Figueiredo, Romeu Correia, John Steinbeck, Bernardo Santareno, Eugene ONeill, António Pedro, Oscar Wilde, Miguel Torga, Camilo, Ben Jonson, William Faulkner, Molière, Armando Martins Janeiro, Ugo Betti, Bernardo Santaremo, Pedro Bloch, Raul Brandão, Ionesco, Ibsen, Francisco Ventura…

Assisti a muitos desses espetáculos,  ouvi e  falei com António Pedro: e tudo isto é inolvidável.

 

DUARTE IVO CRUZ 

LONDON LETTERS

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A Greek mood, 2015

É um olímpico quadro do romance de Kazantzakis fixo no celuloide. A película data de 1964, tem notas de Theodorakis e é a preto e branco. Alan Bates, o escritor de imaculado fato branco, dirige-se ao desalinhado Anthony Quinn. Will you teach me to dance?, pergunta Basil a Zorba.

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Em linha, em círculo, mãos no ombro do outro, um passo em pendor lento, um loop em ritmo vivo… — Chérie! Savoir vivre est vivre avec son époque. Entre as atuais eurolideranças, quem e quantos provaram a alegria do sirtáki ou o acre do ouzo no azul iónico? E sorri?! Talvez Athens entre em default, com um governo esquerdista que quer novo acordo para as dívidas soberanas, mas a magia helénica retornou no domingo mesmo se por um eterno instante. O voto grego recusa a infrutífera austeridade e clama contra o politics as usual. — Hmm, fingers crossed and head in place. Greece tem o seu novo Alexis como TRH PM Tsipras e a European Union ganha dor de cabeça a par de fresca liquidez do ECBank. O Chancellor George Osborne diz em Davos que a Eurozone “must be a job-creating union.” No continente, há 70 anos atrás, soldados russos libertam Auschwitz e revelam o inimaginável.

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Very cold and hectic days por cá. Ainda assim, a suavizar o reavivar das sombrias memórias do ghetto-camp onde os nazis assassinaram mais de um milhão de judeus, e afins, entre 1942 e 45, em nome da Final solution. Sobre o que se passava além dos portões com famosa ode ao labor (Arbeit macht frei), recordo o olhar de uma das sobreviventes quando encontra os olhos dos que a salvam. Para a nossa posteridade escreve Madam Charlotte Delbo: “They expected the worst, not the unthinkable." Uma década depois, em 1955, na sua swan song na House of Commons, Sir Winston Churchill sintetiza as lições de longa vida e da atroz darkness da II World War. Para o Holocaust remembered e o futuro travar “lunatics or dictators in the mood of Hitler,” uma ideia: “Never despair.”

As baixas temperaturas contrastam com febris esquadrões políticos a invadir todos os espaços. Nota a valorizar é o envolvimento de muita gente jovem no desporto sazonal da caça ao eleitor. A exatos 100 dias do sufrágio nacional para os greenbenches das Houses of Westminster, Tories e Labour cavam trincheiras em torno das carteiras e da saúde. A denotar os high spirits, o Premier é alvo de deliciosa partida realizada por uma empreendedora rádio local. Não com o som de suposto William Hague MP a saudar o recém Mr Tony Blair no No. 10 ou do Canadian PM em ensaio para dialogar com The Queen, mas de novo o gotcha PM toca nas hertzianas: Rt Hon. Dave William Donald comparece a conferência telefónica com um chefe dos espiões. 

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A abertura à criatividade encontra ainda outras expressões domésticas. A BBC2 apresenta um notável Wolf Hall, de Mr Peter Kosminsky. O drama marca já as cineconversas a par de Downton Abbey ou Call The Midwife, com soberbo cast pontuado por Mark Rylance (no papel de Thomas Cromwell), Damian Lewis (como Henry VIII), Claire Foy (Anne Boleyn) e Jonathan Pryce (o atribulado Cardinal Wolsey do primeiro episódio). Filmado no Kent, na esteira dos livros de Ms Hilary Mantel sobre os Tudor e o cisma com Rome (Wolf Hall e Bring Up the Bodies), o script de Mr Peter Straughan é  luminosamente sombrio. A Church of England que aqui nasce acaba de consagrar primeva mulher na prelatura: Rev Libby Lane é Bishop of Stockport. A evolução do sexismo observa-se na série, desde que boa opção ao divórcio real é cortar a cabeça à rainha. — Have you ever observed that when a man gets a son he takes all the credit, and when he gets a daughter he blames his wife?

 

St James, 27th January

Very sincerely yours,

V.

A VIDA DOS LIVROS

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De 26 de janeiro a 1 de fevereiro de 2015.


Ulrich Beck (1944-2015) foi professor da Universidade de Munique e da London School of Economics e um dos mais importantes sociólogos contemporâneos, cuja reflexão é fundamental para compreendermos os erros e as saídas para a atual crise. «A Europa Alemã: De Maquiavel a “Merkievel”. Estratégias de Poder na crise do euro» (Edições 70, 2013) é um lúcido apelo crítico a uma resposta coerente e cosmopolita dos europeus.

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ENTRE COSMOPOLITISMO E SOCIEDADE DO RISCO
Ulrich Beck morreu inesperadamente. Se dúvidas houvesse, os acontecimentos de Paris com o ataque absurdo e bárbaro ao «Charlie Hebdo» demonstram que devemos ler com atenção, nas suas múltiplas consequências, as noções de «cosmopolitismo» e de «sociedade do risco» que estudou e desenvolveu. De facto, não basta a aceitação da tendência para a globalização, é preciso que a sociedade contemporânea compreenda que há uma prevenção indispensável de modo a superar os absolutismos identitários através de novas mediações sociais, que considerem a cidadania como um agente ativo da consolidação democrática. De facto, é a democracia que está em causa quando nos deparamos com o que o pensador alemão considerava serem as «cinco cegueiras» das políticas nacionais na era da globalização. Ao contrário de qualquer fatalismo ou atitude cínica, do que se trata é de criar defesas para a democracia, de modo que o poder político democrático prevaleça sobre o poder económico, que a coesão social e o desenvolvimento humano ajudem contra os fenómenos incontroláveis do terrorismo e da violência e que a segurança se construa através da justiça e da racionalidade. Ulrich Beck disse, assim, ser falso que não possa fazer-se política contra os mercados, uma vez que são as ações dos políticos que criam essa pretensa impotência, cabendo-lhes mudar de atitude. Do mesmo modo, não é possível pensar-se que uma mera gestão interna nacional seja suficiente ou eficaz – já que a subsidiariedade obriga a compreender que o Estado nação é pequeno e grande demais para responder aos problemas de hoje. Além disso, a mera lógica económico-liberal não responde aos riscos globais: crise financeira, mudanças climáticas, catástrofes ecológicas, e naturalmente o terrorismo. Daí Beck falar do que, com ironia, designa como «cegueira neomarxista», já que temos de tomar consciência da complexidade das mudanças, não resumíveis aos parâmetros tradicionais das forças produtivas e relações de produção: a transferência do poder do norte para o sul, do Atlântico para o Pacífico, do dólar para o euro ou a quebra de estatuto do velho centro euroamericano. E há ainda a ilusão tecnocrática, falsamente moderna, já que não podemos trocar processos por resultados, nem menorizar a importância do desenvolvimento humano, da liberdade e da democracia.


NA LINHA DE MAX WEBER
A timidez de muitas respostas europeias, a tentação de seguir a lógica de uma «Europa alemã», a incompreensão do movimento e das mudanças políticas e sociais podem contribuir para uma perigosa explosão de natureza incerta com consequências imprevisíveis. Uma «sociedade do risco» («Risikogesellschaft», 1986) não significaria, segundo o sociólogo, uma realidade geradora de medos ou receios inusitados, mas a compreensão de que a produção de riscos faz parte da vida moderna (Tchernobil, Bhopal, 11 de setembro, etc.). Trata-se da via para uma outra modernidade, que obriga a integrar a reflexão sobre o imprevisto nas ciências sociais (a começar na economia), em lugar de uma conceção ingénua do progresso ilimitado. A contingência, o acidente, a catástrofe que uma sociedade de escolhas e de limitação de perigos parecia ter abolido passaram a ser consequência perversa da evolução científica. Mais importante do que cair na ilusão de controlar esses riscos, urge saber lidar com eles e prevenir as suas consequências. Eis a lição de Ulrich Beck, que procurou atualizar a herança do mestre Max Weber aos tempos de hoje. Dir-se-ia, no entanto, que havia um certo sentido utópico nesta riquíssima investigação. A conclusão não é correta. Beck procurou reler os acontecimentos, afirmando que o crescimento excessivo dos Estados não deveria dar lugar à sua substituição pela mera lógica especulativa e mercantil, mas pelo reforço das iniciativas de solidariedade voluntária. Como disse Bruno Latour, reconhecendo tratar-se de uma imensa perda para a Europa em crise: «(Ulrich) imaginava a Europa das novas pertenças contra a Europa dos Estados – em especial contra uma conceção unicamente germânica ou francesa de Estado» («Le Monde», 7.1.15). Por isso, entendia que a Europa deveria repensar-se graças a novos entendimentos sobre o território e a identidade, que não sejam uma reconstrução obsoleta da velha soberania. A soberania partilhada de hoje obriga a centrarmo-nos na cidadania e na legitimidade do exercício – não confundível com novas formas de populismo e de demagogia, que dão campo à cegueira da idolatria do «bezerro de ouro» dos mercados, com as consequências bem presentes e conhecidas… Desde a crise financeira à barbárie, que matou Charb, Cabu, Wolinski e Tignous, passando pela prevenção da corrupção e pela atenção aos desastres ambientais – a «sociedade do risco» de Ulrich Beck corresponde à compreensão de que a ciência moderna dá espaço à surpresa e à inovação e que a incerteza, a mudança e o movimento são as bases do reforço da democracia, como domínio e aceitação da imperfeição e exigência de não desistir de uma sociedade melhor. E o certo é que o pensador apelava, nos principais jornais europeus, à inquietação deixando-nos uma pergunta por responder entre tantas dúvidas: Como é que o poder de transformação do risco global poderá transformar a política?


COMPREENDER A INDIFERENÇA NACIONAL
Longe da tentação das leituras apocalípticas ou da resignação perante os desastres, o filósofo defendia uma «modernidade reflexiva», centrada na responsabilidade – dos cidadãos e da sociedade. A noção de «cosmopolitismo» reencontrou-a em Kant, considerando-a como o melhor modo de responder ao desafio da mundialização, não com uniformização e indiferença, mas com a consagração da liberdade e da dignidade, referenciadas no primeiro artigo da Declaração Universal dos Direitos Humanos. «Os Estados cosmopolitas fundam-se no princípio da indiferença nacional» - afirma no «Der Spiegel». «Do mesmo modo que as guerras da religião tiveram o seu termo no Tratado de Vestefália do século XVII (1648) graças à separação entre o Estado e a religião, poderemos responder aos desafios das guerras civis mundializadas do século XX distinguindo Estado e nação». Essa seria uma das lições a tirar dos atentados terroristas de 11 de setembro, e de tudo o que depois temos visto. Daí a sua recusa de uma «Europa alemã» e da lógica redutora da austeridade (que o levou a falar de «Merkievel» e dos seus efeitos perversos). Voltamos a ouvir, assim, os ecos do célebre ensaio do filósofo de Königsberg sobre a «Paz Perpétua», centrados hoje num conceito atualista de democracia. Não se trata, afinal, de recusar as realidades sociais mediadoras, mas de contrariar que as mesmas se tornem modos absolutos ou fatores das cegueiras contemporâneas. Ulrich Beck recusou, assim, as «torres de marfim» dos intelectuais e a inércia das explicações acomodadas, considerando a necessidade de um novo contrato social baseado no reforço da democracia centrada na «sociedade do risco».

 

Guilherme d'Oliveira Martins

SONETOS DE AMOR MORDIDO

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4. A JERÓNIMO SAVONAROLA

 

      De teus olhos, Senhor, me afugento,

      eu que tanto deles me aproximei,

      porque já cego sou daquele alento,

      tão duro,de gritar a tua lei!

 

      Bem sei, sei bem que a fúria do tormento,

      que me anima e fere o fraco peito,

      já não será mais o teu mandamento,

      tão justo e bom, que me deixou desfeito...

 

      Mas porque quiseste, Senhor, pedir-me

      a raiva que não tinha nem me cabe?

      Fiz, porque mandaste, sem ouvir-me,

 

      castigar duro mundo que não sabe

      que só contra mim foi o teu caminho:

      nele, contigo só,  fiquei sozinho...,     

 

Camilo Martins de Oliveira

A FORÇA DO ATO CRIADOR

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Bob Law e os Desenhos de Campo Metafísicos.
 

‘In fact one only gets back from the work what one projects into it.’, Bob Law, 1975

 

O desenho é a génese do trabalho de Bob Law (1934-2004). Para Law o desenho tem um estatuto mítico e é o modo primeiro de qualquer comunicação.

 

‘What does exist is an imprint and that is the beginning of art, in there being nothing which is something.’, Bob Law, 1967.

 

Os primeiros desenhos que se conhecem de Bob Law, do final dos anos cinquenta, são acerca da paisagem que rodeiava a sua casa, em St Ives, Cornwall. Através destes desenhos, Law desejava encontrar-se a si próprio. Gravava aquilo que via através de uma linguagem gráfica. Law priviligeava uma relação física (e não visual ou óptica) com o mundo, desejava uma fusão total com a paisagem. Pretendia assim criar uma transcendência com os seus desenhos – e mostrar como o sujeito se pode transformar e projectar através da sua obra. Deste modo, o sujeito pode manifestar-se através de uma oscilação entre a presença e a ausência, entre o visível e o invisível.

No ensaio ‘Bob Law: Drawing Degree Zero’, Anna Lovatt afirma que Law mudou a sua prática de desenho para um modo de fazer muito mais primário e revelador, um processo de auto-descoberta. Estes desenhos eram um resultado do que o artista via enquanto deitado no campo contíguo à sua casa. Trabalhava intensamente – produzia cerca de 50 a 60 desenhos por dia, destruía o excesso e ficava só com muito poucos. A rapidez e a intensidade deste processo é bastante evidente – o resultado manifesta-se através de linhas bem marcadas de grafite, desenhadas à volta do perímetro do papel e que marcam o limite do campo visual. A colocação dos elementos no desenho sugere um complexo e intelectual processo de codificação. Apresenta-se sempre uma vista circular da natureza. São estruturas que radiam do centro para a periferia (quase mandalas) e estão sempre datadas. Estes desenhos contêm ainda ideogramas para os vários elementos da paisagem – as árvores, a relva, o sol, a linha do horizonte, as estrelas e as nuvens aparecem como espirais, asteriscos, triângulos, linhas em zigzag. A moldura e a marcação do limite são de enorme importância em trabalhos posteriores.

 

‘The early Field drawings were about the position of myself on the face of the earth and the environmental conditions around me: the position of the sun, the moon and the stars, the direction of the wind, the way in which the trees grew, no awareness of nature’s elements, no awareness of nature itself and my position in nature on earth in a particular position in time.’, Bob Law, 1974

 

Law acentua a importância do céu em relação à terra (esta regista somente uma visão abstracta e periférica). Em vez de representar uma paisagem de um modo cru e imediato, Bob Law tenta sobretudo traduzir uma experiência subjectiva de um tempo e de um espaço específico através de uma linguagem simbólica. Lovatt declara a importância e a urgência de Law em se rever e se encontrar nessa paisagem – talvez influenciado pela leitura do livro ‘The Story of my heart’ de Richard Jefferies (1848-1887), que descreve a procura pelo transcendente na paisagem, através de uma série de experiências espirituais. No livro de Jefferies, o sol simboliza a alma e os pensamentos do escritor são direccionados para o exterior e para cima numa urgência por uma revelação qualquer, muito semelhante à libertação de energia que se solta a partir do centro de alguns dos desenhos de Bob Law. E nos escritos de Jeffferies, tal como nos desenhos de Law, dá-se a importância do espaço particular e concreto que, por sua vez, facilita um profundo entendimento da vastidão do tempo e intensifica o sentido do momento presente.

 

‘Metaphysical Field Drawings could be a kind of environmental chart, a thesis of ideas, energies, transmutations.’, Bob Law, 1962

 

Segundo Anna Lovatt, estes desenhos ambicionam transcrever o universal dentro do particular, mapeando a posição do artista na terra e numa determinada posição no tempo. Law desejava descobrir-se na paisagem e fazer a gravação desse momento particular e único através do desenho. E assim através de um trabalho intenso e rápido Bob Law chega perto da verdade, não a partir de uma ilusão mas através de algo palpável e físico.

 

Ana Ruepp

MANUEL CABEÇADAS ATAÍDE FERREIRA (1937-2015)

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Se houve cidadão generoso e permanentemente empenhado na defesa da coisa pública, o melhor exemplo é o de Manuel Ataíde Ferreira que há pouco nos deixou.

Fundador e Presidente da SEDES, um dos mais ativos membros da Deco, Advogado, representante português no Conselho Económico e Social da União Europeia sempre foi um lutador em prol do bem comum e da defesa da liberdade e da igualdade. Foi-lhe, por isso, outorgado com integral justiça a Ordem da Liberdade.

Conheci-o sempre com um fino sentido de humor e um realismo muito acentuado. Quando desempenhei durante dez anos a presidência da SEDES contei sempre com a sua colaboração inexcedível. Todas as palavras são poucas para o homenagear e dar nota da falta que nos fará.
Muito obrigado Manuel!

Guilherme d'Oliveira Martins

MIGUEL GALVÃO TELES (1939-2015)

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Foi o meu primeiro professor de Direito. Jamais esquecerei esse dia de novembro de 1969. Percebemos desde o primeiro momento que o Direito Constitucional a sério tinha de ter a marca indelével da liberdade e da democracia.
Nunca mais perdemos o contacto. Como jurisconsulto foi um dos mais brilhantes que alguma vez conheci. Desde muito novo, dando continuidade a uma tradição familiar, manifestou-se como alguém dotado de uma sensibilidade, de uma inteligência, de uma argúcia e de uma capacidade singularíssima para procurar soluções por caminhos novos e inesperados. Era sempre capaz de ver para além do que era mais evidente, e assim era capaz de ajudar na solução de complexas dificuldades.
Para o Miguel o Direito não era uma ciência formal ou rígida, era um instrumento dinâmico para resolver problemas. Para si o advogado era o primeiro elemento da administração da justiça, e acreditava que a primeira instância dos tribunais estava no escritório do causídico. Por isso, nos ensinou sempre que o mau advogado é o que usa subterfúgios e procura fugir à essência dos problemas.
Como cultor do Direito Público, entendia que o Estado de Direito e a cidadania se afirmam e reforçam pelo equilíbrio de poderes e pela assunção com todas as consequências da lição de Montesquieu – só o poder limita o poder. Por isso, «As Cartas Persas» eram para ele uma ilustração essencial da exigência de uma salvaguarda dos direitos fundamentais a partir do respeito mútuo, da confiança entre poder e cidadãos, como articulação entre legitimação e legitimidade.
António Araújo designou-o como «il miglor fabro». Não pode haver expressão mais adequada. No mundo do Direito ele foi dos melhores. A sua lição não pode ser esquecida. E nós, seus alunos, nunca olvidaremos o seu desassombro, nos momentos mais difíceis, e nas mais diversas circunstâncias, na defesa da liberdade e daquilo que Isaiah Berlin designou como uma sociedade decente. Coerente, aberto, rigoroso, correto, amigo, solidário – cidadão a toda a prova!

Guilherme d'Oliveira Martins 

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