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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

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A FORÇA DO ATO CRIADOR

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Acerca da génese da nova concepção espacial no movimento moderno.

Lê-se em ‘Space, Time & Architecture. The Growth of a New Tradition.’, de Sigfried Giedion que a nova concepção do espaço, que se deu com o advento do movimento moderno, foi consequência da necessidade em criar uma harmonia entre o estado de alma mais profundo do homem e a sua circunstância. E Giedion afirma que o espírito por detrás da arquitetura moderna está relacionado com a nova concepção de espaço criada pelos pintores cubistas.
 

‘The creative artist does not want to copy his surroundings, on the one hand, or to make us see them through his eyes, on the other. He is a specialist who shows us in his work as if in a mirror something we have not realized for ourselves: the state of our own souls.’, Giedion 


E por isso, o cubismo tem uma enorme importância na nova concepção do espaço, no contexto do movimento moderno. O cubismo, com as suas regras racionais, traz novos conceitos espaciais muito importantes para a arquitetura, no que diz respeito à introdução de uma nova dimensão ao espaço que até então era só concebido tridimensionalmente.

A obra de Cézanne teve uma enorme importância, neste contexto porque coloca importância na ideia de que se o horizonte da arte coincide com o da consciência, não podem mais existir perspectivas unívocas. Segundo Giedion, o método de apresentar as relações espaciais que os cubistas desenvolveram, é expressão de uma atitude colectiva quase inconsciente. Desde o Renascimento até à primeira década do séc. XX, um constante elemento se manteve durante quatro séculos: o mundo era visto segundo três dimensões. O uso da perspectiva estava tão enraizado, sempre com a possibilidade de receber novas expressões, que nenhuma outra forma de percepção poderia ser imaginada. Porém a partir do séc. XIX, o uso da perspectiva começou a dissolver-se, novas dimensões foram introduzidas e o sentido de espaço tornou-se, a partir de então, ilimitado.
 

‘Exhaustive description of an area from one point of reference is, accordingly, impossible; its character changes with the point from which it is viewed. In order to grasp the true nature of space the observer must project himself through it.’, Giedion.
 

O espaço moderno é concebido em relação a um ponto de referência, que não é absoluto nem estático, mas sim um ponto de referência em movimento. Uma quarta dimensão é acrescentada – o tempo. E o cubismo conseguiu conscientemente alargar as diversas formas de percepcionar o espaço. Procurava reproduzir a aparência dos objectos através de vários pontos de vista e assim conter a sua constituição externa mas também interna. Os cubistas ambicionavam fazer coincidir este acto de pintar ao moderno modo de viver, através da simultaneidade. Na fase inicial do cubismo a decomposição dos objectos é conseguida através de: a) transformação das superfícies das formas, em planos angulosos; b) não distinção entre a imagem e o fundo; c) decomposição dos objectos e do espaço segundo um único critério estrutural e de agregação; d) sobreposição e justaposição de múltiplas visões; e) realização de uma unidade espácio-temporal absoluta – o objecto interpenetra o espaço e o espaço por sua vez, também se desenvolve dentro e através do objecto; f) a luz e os planos cromáticos resultam desta interpenetração. No cubismo, a espacialidade do quadro é não-natural mas absolutamente real. Por isso o espaço do quadro enquanto espaço real é capaz de acolher elementos retirados directamente da realidade: pedaços de papel, de tecido, etc. A superfície do quadro não mais é uma superfície distinta da realidade mas a própria realidade.

 

Ana Ruepp

AO FERNANDO ALVIM, NO DIA DO SEU DIA

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Há silêncios, quando longe soam

as cordas que te ouvimos dedilhar:

mais que lembrança, saudade é lembrar

a bondade das coisas que nos doam...

 

E foi dádiva e dor a tua vida,

 tão cheia dos silêncios que tocaste,

no modo discreto em que acompanhaste

outros sons, só por graça perseguida...

 

E guardaste o teu génio convencido

no íntimo de ti, livre e ferido,

como quem já viu mundo e não se ilude

    

com ruídos ou glórias exclamadas,

pois que o vibrar das cordas, guitarradas,

só num coração nosso tem virtude...

 

Camilo Martins de Oliveira

ANTÓNIO LOBO ANTUNES

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Gostava de dizer que é difícil dizer de António Lobo Antunes. Refiro-me a um grande escritor deste Portugal; a um escritor que afirma com modestíssima realidade “tenho uma imensa inveja dos poetas. Na poesia cada palavra tem um peso específico…uma carga.” E com estas poucas palavras, o que parecia definido, aparece como inesgotável no mundo das gentes que escrevem; sobretudo no mundo das que escrevem poesia de um jeito livre em tempo, em espaço, em concretização, em atitude perante o mundo, em princípio de esperança, em universo filosófico, aberto numa totalidade despojada.

Julgo que existe em António Lobo Antunes um saber ler e escutar milenar. Algo com força transgressora e necessariamente sem receios do risco face ao que entendeu dizer e dizer-se. É heróico quem procura ultrapassar o limiar da quietude e do aparente e, assim sendo, António é para mim um afecto tão próximo da explosão de um desconhecido, que abrirei sempre a porta de qualquer um dos seus livros, e sei que não receio qualquer caos naquele seu imaginário, apenas um diferente puzzle de um crescer sem qualquer cristalizar.

Existe hoje, no meu modesto entender, mais do que nunca, uma liberdade muito humana no estar de António Lobo Antunes com a vida e com a escrita. Houve um empurrar propositado, consciencializado, para o resvalar das hierarquias - tenham sido elas as que foram, tenham elas outra designação -, que lhe deu dinâmica nova: um filão de pensamento e de sentir que leva a cabo os dias em consonância com o que não é esquematizável.

António, que te possa dizer eu, que, se já em ti, li, algum efeito de estranhamento, sempre ele se envolveu num perigo por ti assumido, com parcialidade, lugar onde a tua escrita é fascinante e a todos nos envolve num filme de onde o risco é partir.

 

Teresa Bracinha Vieira

2015

OLHAR E VER

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João XXIII
 

18. PRECONCEITO E PLURALIDADE - II

 

Os dois últimos concílios católicos - um em cada um dos dois últimos séculos - trataram de modo diferente o "preconceito". O Vaticano I insistiu na reafirmação dogmática de formulações de princípios e juízos de valor, numa atitude de receio e oposição ao modernismo e a um mundo que se ia crescentemente movendo fora dos enquadramentos que antes lhe balizavam o percurso. Repetiu fórmulas, como se elas fossem tão eternas como verdades. O Vaticano II respondeu ao apelo de João XXIII para o aggiornamento, essa abertura do espírito a um mundo plural que desafia a Igreja a pensar e sentir mais em consonância com o palpitar das vidas que a rodeiam. O primeiro pretendia que o mundo regressasse à cerca onde imaginara encerrá-lo, na normalidade assegurada por um comando único, uma língua, as mesmas formulações e ritos, na imobilidade impeditiva de reexames e revisões, na abstracção da pluralidade real das pessoas, grupos e movimentos. O segundo interrogou-se sobre a relação com a diferença como procura da harmonia, como se os homens, com instrumentos, vozes e registos diversos, formassem o coro e orquestra de Deus. Para tanto, olhou para si e seus preconceitos, fez-lhes exame e revisão, lavou-se e arranjou-se para sair e ir ter com os outros. E o papa Francisco não se cansa de chamar a Igreja para o encontro com o mundo plural, e à própria cúria romana lembrou as doenças que  a sectarizam, entre as quais mencionou o bloqueamento mental, a indiferença ao mundo exterior, os círculos fechados, a divinização dos chefes... Vai experimentando, na coragem de todos os dias, aquelas reformas que já Paulo VI vira malogradas pelo poder interno de uma "Cúria" que,  apesar de, e depois, do Vaticano II, ia procurando assegurar o governo da Igreja à imagem e semelhança dos Estados Pontifícios - essa herança de inspiração constantiniana que se foi desfazendo pela própria história, se cindiu com a Reforma e foi reduzida à mínima expressão territorial durante o risorgimento e, finalmente, pelos acordos de Latrão. Talvez descubramos agora a consciência necessária de que o Reino de Deus não é deste mundo enquanto forma fixa ou paradigmática de poderes e instituições : pode revestir-se delas, mas não as pereniza na história, tem outra vocação. O Reino de Deus é profético, está agora e depois, escuta e anuncia, é o clamor da voz dos homens, contra si e consigo mesmos e o Deus connosco até ao cumprimento da história... Nesta perspectiva escatológica, o Reino de Deus vai crescendo em nós e por nós: porque todos somos feitos à imagem divina, somos inerentemente bons, chamados a ser santos como o Pai. São Paulo - que influenciará a teologia de tradição ortodoxa oriental no sentido de não considerar o pecado original, muito menos como estigma transmissível (pecado sendo, então, "apenas" o afastamento da relação com Deus, de que cada um é responsável)  -  é muito claro sobre esse ponto: Nada é impuro em si, todas as coisas são puras (Romanos 14, 14 e 20) ; Tudo o que Deus criou é bom (I Timóteo 4,4) Diferentemente da tese agostiniana do pecado original - e dois séculos antes dela ser formulada e declarada dogma católico no concílio de Cartago (418)  - Santo Ireneu comentava que, em Génesis 3, é a serpente que é maldita, não Adão. Este e Eva apenas são crianças, pelo que muito embora Deus pudesse dar a perfeição ao homem, desde o princípio, o homem teria sido incapaz de a receber logo, porque era ainda criancinha... Não sou, nem por nem contra a ordenação de mulheres: mas desafio a recusa da revisão das normas canónicas que a pretendem negar, como a recusa de uma reflexão sobre os fundamentos teológicos que as suportam; e mais sugiro que abertamente se estudem as análises sérias e bem feitas das origens e progressos da ideologia misógina que, a partir de Fílon de Alexandria, judeu helenístico, influenciou a patrística cristã e determinou a tradição católica de exclusão das mulheres do ministério ordenado... E também pergunto (perguntar não ofende) se fará sentido, para muitos, essa excepção, num tempo do mundo em que mulheres são chefes de Estado e de governo, médicas, militares, polícias, etc.... Não creio que, como por aí se tem dito, a consagração episcopal de mulheres na Igreja Anglicana seja antiecuménica: numa tradição cristã próxima mas exterior à Igreja Católica, ela acontece sem que a comunhão de ambas na fé cristã seja afectada... Se assim não for, mais uma vez estaremos a pôr o secundário acima do essencial. O papa Francisco, em Istambul, pediu ao patriarca ortodoxo Bartolomeu que abençoasse a Igreja de Roma... Eles não são hereges, muito menos infiéis, são cristãos como nós, na sucessão apostólica... Na sua tradição, o celibato dos padres não é exigível, tal como nem sempre o foi na Igreja romana ocidental... É tão preconceituoso, quer defender-se o celibato como a ínclita via da santidade (todos somos chamados a esta), ou como condição indispensável ao exercício de um ministério eclesial, quer, por outro lado, afirmar-se que o voto de castidade é motivo de pedofilia (esta até será mais frequente e secreta em grupos sociais estranhos a estabelecimentos religiosos e, infelizmente, no seio de famílias). Ou ainda, pretender-se que acabar com esse voto ou abrir o sacerdócio a mulheres iria aumentar o número de vocações ministeriais... A questão que se levanta não deve ser tanto a escassez de clérigos, mas bem mais a da decrescência de praticantes e crentes... Aliás, tenho imenso respeito e admiração pelas vidas consagradas, de homens e mulheres que Deus chama a serem, pela pobreza e pela castidade, por via eremítica ou cenobítica, corações proféticos. Mas tais vocações não são necessariamente ministeriais, servem de modos diversos a Igreja. Insistindo-se numa igreja sectária - que, indiferente a dramas familiares, por exemplo, excomunga de facto pessoas divorciadas que refizeram as suas vidas, quando, afinal, noutros casos se reserva o direito de declarar a nulidade de matrimónios que, por vezes, pelos argumentos invocados, nenhum tribunal civil decretaria - será provável que muita gente vá buscar a outra fonte a água da vida...

 

Camilo Martins de Oliveira

A LIBERDADE DE EXPRESSÃO NOS ESTADOS UNIDOS E EUROPA

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1. Incluindo a liberdade de expressão, no essencial, palavras, textos e expressões simbólicas, está por inerência associada ao direito à informação e à liberdade de imprensa, que tornando exequíveis ideias e opiniões que põem em causa verdades oficialmente estabelecidas, é um benefício para o cidadão e para uma sociedade democrática mais esclarecida.
Tendo como referência comparativa a nossa matriz ocidental, é usual referir a corrente norte-americana e a europeia.
Entendida, nos Estados Unidos, de um modo muito amplo e o mais irrestrito possível, dado o seu papel instituidor e matricial, leva a que sejam lícitos discursos agressivos, anti-religiosos, anti-semitas, ofensivos, provocadores, racistas, violentos, uma vez ser do mercado das ideias que resulta o máximo de informação, sejam boas, más, chocantes, ferinas, impactantes, cortantes, deploráveis, indecorosas, vergonhosas ou de  mau gosto, onde o incitamento à prática de crimes só é ilegal se houver um risco manifesto de ocorrerem de facto na sequência das expressões proferidas. Tudo em obediência ao texto da Primeira Emenda à Constituição, impositivo e respeitador da proeminência da liberdade de expressão. O que é reforçado pela prática jurisprudencial do Supremo Tribunal de Justiça Federal dos Estados Unidos da América, ao legitimar, também, opiniões negacionistas do Holocausto, chauvinistas, xenófobas ou não moralistas. As exceções a tal liberdade não são determinadas pelo teor das expressões proferidas, mesmo que impostas restrições regulando manifestações ou reuniões onde exercida a liberdade de expressão, salvo se houver um risco inequívoco e real de concretização de algo grave ou muito grave, ou se os dizeres ou textos forem  comunicados e publicados sabendo-se da sua falsidade ou de desdém pela verdade. Sendo o seu escrutínio mais lato e exigente, quando escrutinadas figuras públicas ou protagonistas políticos, dessacralizando-os, para controlo dos abusos de poder, promoção da autonomia pessoal e funcionamento da democracia, tendo como fim a descoberta da verdade, sem esquecer discursos impopulares tidos como vitais para a saúde da nação. Tal liberdade é protegida mesmo que contribua para o debate público de questões não essenciais para a sociedade.  
Um exemplo do culto da liberdade de expressão nos Estados Unidos, é-nos dado pelo filme Larry Flynt, de Milos Forman, cujo núcleo central, para além da biografia da personagem principal, discorre sobre publicações humoristas, satíricas e pornográficas da revista Hustler, para muitos queixosos atentatórias da moral, ordem pública e bons costumes, em que o Supremo Tribunal de Justiça decidiu que poder expressar o que se pensa é um aspeto da liberdade, mesmo que em causa assuntos públicos lamentáveis, que são protegidos pela 1.ª Emenda. O protagonista admite, na película, que só o podem culpar de ter mau gosto, não consciencializando qualquer crime ou ilegalidade. Se é inútil a questão sobre gostos e supérfluo levá-la a tribunal, também o é se uma pessoa razoável não acreditar que o que foi dito ou publicado não corresponde à verdade, porque uma paródia literária, satírica ou sarcástica, caricaturando em tom cáustico ou mordaz, ou provocando o riso. O direito ao debate desinibido e à liberdade de expressão, implica podermos ser nós a tomar a decisão de pegar numa revista e lê-la, exercer a minha opinião de escolha não a comprando, deitá-la no lixo, querendo-o, ou ignorá-la.
2. Na conceção europeia e democrática há uma simbiose da perspetiva norte-americana com a da Europa, do direito norte-americano com o europeu continental, em que a liberdade de expressão tem tido um contributo decisivo na interpretação e jurisprudência do Tribunal Europeu dos Direitos Humanos, através da apreciação dos casos que lhe são submetidos. Quaisquer restrições devem ser sempre a exceção e não a regra, só sendo necessárias quando correspondam a uma necessidade social imperiosa, sancionando a liberdade de expressão não apenas opiniões, ideias ou informações aceites favoravelmente ou tidas como deselegantes, não ofensivas ou indiferentes, mas também as desinibidas e frontais, que chocam, ferem, incomodam ou inquietam. Por maioria de razão sendo os destinatários das apreciações e caricaturas governantes, figuras públicas e políticos em geral, tidos como cidadãos autónomos e adultos que devem entender que uma opinião não é uma verdade mas uma maneira de pensar, que se aceita ou rejeita. Ao questionar-se ou rebater-se um político ou figura pública, a liberdade de expressão e o direito à informação vigoram na sua máxima amplitude, dado que os limites da crítica aceitável são mais amplos nesses casos que em relação ao cidadão comum. Por exemplo, o TEDH tem como censurável exigir moderação em artigos de opinião sobre pessoas públicas, nomeadamente políticos, que em geral não a usam, não só porque têm fácil ou livre acesso aos meios de comunicação social para responder às críticas de que são alvo, mas também por submeterem a eleição e votação  as suas ações ou omissões, sob pena de se impedir a formação duma opinião esclarecida e livre. Daí não serem tidas por difamatórias nem injuriosas expressões como “alarve”, “beato”, “boçal”, “grosseiro”, “grotesco”, “imbecil”, “indigno”, “oportunista”, “reacionário”, entre outras, mesmo que em si polémicas ou deselegantes, se não forem desproporcionadas por confronto com a indignação conscientemente provocada por declarações ou opiniões expressas pelos visados.
Mas a amplitude que a liberdade de expressão tem na Europa, decorrente da Convenção Europeia dos Direitos Humanos e entendimento do TEDH, não tem um alcance tão abrangente como a que decorre da Primeira Emenda nos Estados Unidos, dado que neste país membros do Ku Klux Klan, negacionistas do Holocausto, fascistas ou neofascistas podem divulgar a sua ideologia, ao invés do que sucede no continente europeu, onde são proibidas opiniões que expressem anti-semitismo, ódio, racismo, xenofobia, ideias nazis ou fascistas. Para uns, condenar e punir por se pensar mal, de modo cruel ou obsceno, como é compreensível que o pensem as vítimas do Holocausto, negando-lhes o que sofreram, é uma violação da liberdade, dado que qualquer penalização da liberdade de expressão e de pensamento, bem como do direito à informação, destrói as liberdades. Esta defesa da essência da liberdade é a mesma que é reclamada para abolir a ideologia do politicamente correto, por exemplo, ao condenar, em igualdade de circunstâncias, os crimes contra a humanidade e a violação dos direitos humanos cometidos por Hitler, Estaline, Mao Tsé Tung, Pol Pot, entre outros, desde o nazismo, ao fascismo e comunismo, sem obediência a demarcações políticamente corretas e à história dos vencedores. Nesta sequência, que dizer da criminalização europeia do negacionismo e do nazismo, ao invés dos crimes do estalinismo, em que a maioria dos países da União Europeia rejeitaram a dupla criminalização dos crimes nazis e estalinistas proposta pelos estados bálticos?                                                                                          


Sintra, 19 de fevereiro de 2015
Joaquim Miguel de Morgado Patrício

PORVENTURA VERSOS

17.

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Mancebo o cravo

Já não da árvore ou tão pouco flor

Exaltou a memória

De vitórias

De antes, de muito antes, de se ter sentido flor

 

Contou e disse

Por gentes estrangeiras

Que o regaram

 

Sou mero sábio cego

aos tempos de futuro

mas do passado e do presente

sou mágico em força tamanha

que contra mim o vosso poder

é nada ou manha

de assustar quem viveu

na glória dos vencidos

e esse sou eu

ó gente miúda

imperadores do nada

que me regais para me roubar

a fortuna de não ter preço

mas ser semente que não se igual.

Prósperos de pobreza sois

ouro tingido de água impura

ide a outro endereço

que o meu arde

e há muito aquece

o céu perpétuo

sacro e nu

que por entre vós

firmemente vos faz frente

e permanece

 

Mancebo cravo

Que tua qualidade tenha por irmão

Deixa que dos teus conselhos

Saiba ouvir todos

 

E informando-me de quem sou

Repouse meus pés por justo atalho

 

E chegue à tua casa

Juntamente contigo

 

Meu regimento

Minha vida

Meu coração

Pátria em mim

Ou meu costume

 

Meu mui vizinho

Meu lume

 

Teresa Bracinha Vieira

2015

 

18.

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Uma carta te enviei depois de mil

Em todas levantei ferro, sabes tu

E em quase todas te achei no destino indicado

Par onde se descrevem as longas curvas

Que por rumos encontram soltas

As verdades

 

E assim mil cartas impossíveis

De traçar nas rotas todas

Por onde se fizeram mar

Eu te escrevi

 

Mas esta? Esta, depois das mil

É só uma

A travessia fez-se, é certo

Mas amor

O tempo cresceu e a tempestade

Pontuada de ilha em ilha

Cruzou-se com a carta

 

Levou-a, soube, até ser tempo de iniciar

Uma outra curva

Quando de súbito retornou-se no caminho

E aqui a tenho

 

Nas mãos deste destino

Ao contrário da expedição

 

Diz-me

Foi a data que te desagradou?

Ou o número da carta

Mil e um ? que a tua região do peito

Quis perder?

 

Que faço? A não ser

Não voltar para trás

Por não ser possível já não escrever

Contra tudo o que te disse

 

Assim aqui me tens

Na morada de onde se soltam as amarras

De onde se corta o norte e o leste

O agosto e o dezembro

Até que os deuses e Deus por mim

Ou por nós

Façam empenho

 

E depois de anos te esperar

Possa eu apurar meu muito amor no teu

E conjugar

O braço nos abraços

Da carta mil e um

 

Sem desejar

Que tudo isto se explique

Ou seja sequer

 

A boa esperança

 

Teresa Bracinha Vieira

2015

ATORES, ENCENADORES (XII)

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Amélia Rey Colaço, Fotografia em SAPO Cinema


DESCENTRALIZAÇÃO TEATRAL - O ÚLTIMO ESPETÁCULO DE AMÉLIA REY COLAÇO

Há uma certa simbologia, perdoe-se o eventual exagero da expressão, na despedida de cena de Amélia Rey Colaço. Pensemos da sua vasta e exemplar carreira, e particularmente, nas dezenas de anos em que dirigiu a companhia do Teatro Nacional no D. Maria II, no Avenida, e episodicamente noutras salas, além de tournées que incluíram o Brasil. A sua obra e a sua ação em termos de renovação da cena nacional é indiscutível, para lá de oscilações e opiniões, que também não faltaram. E a sua versatilidade como atriz não confirma uma crítica na época habitual – a de que fazia papeis de alta sociedade… lembro ao calhar, para o desmentir, a formidável ama no “Romeu e Julieta” de Shakespeare.

Mas aqui, quero evocar a insólita despedida de cena de Amélia Rey Colaço.

Foi em 1985, tinha 87 anos. E foi num teatro “marginal”, hoje desativado para não dizer desaparecido para a atividade teatral – e  aproveitamos também para o evocar – que pela ultima vez Amélia subiu à cena: no Teatro Portalegrense, no papel da Rainha D. Catarina em “El Rei Sebastião” de José Régio.

Este Teatro Portalegrense, projeto do arquiteto José de Sousa Larcher datado de 1856, manteve-se em atividade durante mais de um século, com significativos momentos de expressão literária e artística. Lembre-se que em Portalegre vivia e lecionava José Régio. Lá se estreou em 1935 o “Sonho de uma Véspera de Exame”, de Régio em récita de finalistas do ensino liceal – e um desses alunos era o futuro ator Artur Semedo. E lá voltaria Régio, o Dr. José Maria dos Reis Pereira professor do Liceu de Portalegre, a ser episodicamente representado.

O Portalegrense deixou de funcionar com regularidade como teatro. Mas ficou o edifico, sucessivamente “aproveitado” em atividades insólitas para um teatro do seculo XIX: templo religioso e até ringue de patinagem!

Evoquemos então atores e atrizes nascidos e relacionados em termos pessoais e profissionais com Portalegre. 

Sousa Bastos, na sua prosa peculiar, cita em particular Beatriz Rente: “nasceu em Portalegre em 1859 esta rapariga de olhos grandes que todos achavam bonita (…) Aos 15 anos de idade estreou-se no Teatro D. Maria “e depois passou para o Ginásio “fazendo sempre primeiros papéis com bastante agrado”. O pior é que “saindo deste teatro começou a sua decadência no Teatro da Rua dos Condes; apesar do que foi classificada em primeira classe para o teatro de D. Maria até que a morte a roubou em 1906” assim mesmo, numa prosa “teatral” muito típica do “Diccionário do Theatro Português” …  

O outro ator de Portalegre, que acima referi, é Artur Semedo (1925-2001). Grande Prémio do Conservatório Nacional e Prémio de Revelação da Crítica, estreou-se no Teatro Ginásio em 1949 num dramalhão de Cristiano Lima, “O Preço da Honestidade”. Estudou em Itália e prosseguiu uma vastíssima carreira no teatro e sobretudo no cinema, como ator e realizador em Portugal, Espanha e Brasil.

Mas tudo isto veio a propósito do último espetáculo de Amélia Rey Colaço, ocorrido como vimos em Portalegre: homenagem ao portalegrense por opção que foi José Régio, mas também homenagem a uma sala oitocentista de teatro que há muito deixou de o ser.

E referência a  uma política de património e de descentralização teatral e cultural que é essencial manter e desenvolver.

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DUARTE IVO CRUZ

LONDON LETTERS

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The theory of win everything, 2015

Sucesso britânico em Holywood. Mr Eric Redmayne bisa o êxito dos 2015 BAFTA e conquista o Oscar da Academy como best actor em The theory of everything, a exemplo de Mrs Julianne Moore como best actress em Still Alice. Dois filmes fantásticos, a ver com o premiado Birdman e os descuidados The imitation game, Boyhood, Selma e The Budapest Hotel.

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 — Chérie, c’est pain bénit! Já Westminster está transformada em local de… car crash. Dois seniores MPs são filmados em salas das Houses of Parliament a discutir o seu potencial emprego por uma companhia chinesa. Pior: Ambos ex Foreign Secretaries, um Labour e outro Tory, simplesmente estão a dialogar para câmaras e repórteres de investigação do Channel 4 e do The Daily Telegraph. Com drama e demissões na mescla, o debate move-se agora para a questão da representação política como full time job. — Hmm. Carrying coals to Newcastle. Brussels liberta fumo branco em torno da extensão do Greece bailout. Ukraine vive dias dramáticos de guerra, etiquetados de tréguas na propaganda e que levam o Prime Minister a Westminster. Aqui afirma RH David Cameron que “the Britain role is to keep European Union and US together.”

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Windy weather pela ilha após uma noite de sonho em Los Angeles, na festa dos 87th Academy Awards. Se Birdman soma as almejadas estatuetas de best director e best cinematography, para Mr Alexandro Iñárritu e Mr Emmanuel Lubezki, é o jovial talento de Mr Redmayne que marca uma cerimónia onde de novo rolam os british movies sobre as british minds. A sua interpretação do Professor Stephen Hawking fica legendada como a clean sweep of awards season e é ainda um arrebatado Redmayne a receber o dourado prémio com doce declaração de triunfo: — “This Oscar – wow!” Já Mr Benedict Cumberbatch, outro forte candidato local ao top acting, somente revisiona um longo elogio sem édito pelo papel do genial criptógrafo Alan Turing. The Imitation Game acaba premiado na categoria de best adapted screenplay. Por tudo e todos, vivo aplauso.

No campaign trail vive-se em plena ocorrência de sismo com alta magnitude na escala de Richter. Dois gentlemen, ambos ex Foreign Secretaries, são cinematografados em explosivas entrevistas de emprego. O teor dos diálogos é impróprio, entre o salário a menos e o tempo livre a mais, mas quer RH Jack Straw (Lab) como Sir Malcolm Rifkind (Con) sustentam na BBC que nada de ilegal fizeram ao disponibilizar os talentos a Beijing e vitimizam-se até como presas de sofisticada armadilha. Os seus partidos suspenderam-nos e responderão algures perante comissão de inquérito, decerto enquanto procuram ativamente novas ocupações.

Este caso dará ainda um bom punhado de votos aos partidos de protesto. Porém, também estes sofrem sérios agravos de imagem. A líder do Green Party, Mrs Natalie Bennet, tropeça nos números em entrevista na LBC radio. O Ukip afunda-se após a emissão no Channel 4 de medonho docudrama sobre uma Premiership de Mr Nigel Farage. As Lord Ashcroft polls concedem agora a liderança aos trabalhistas: Labour – 36%; Conservatives – 32%; Ukip – 11%; Greens – 8%; e Lib Democrats – 7%. Faltam 71 dias para as general elections

Veloz é o concerto no Eurogroup em torno das propostas gregas ontem enviadas a Brussels para remodelar o programa de austeridade na Hellenic Republic. Embora sob prognóstico reservado, com financiamento garantido por mais quatro meses, Athens recebe luz verde para implementar a sua lista de reformas alternativas. Aquelas que, contrariando o German Finance Minister Wolfgang Schauble, entre outros, tanto garantem a vitória ao Syriza e protagonismo a Mr Yanis Varoufakis quanto finalmente colocam as chancelarias europeias a debaterem política e um futuro comum. — Well, the squeaky wheel gets the grease.

 

St James, 24th February

Very sincerely yours,

V.

A VIDA DOS LIVROS

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De 23 de fevereiro a 1 de março de 2015


«Com o Sonho na Bagagem – Uma Viagem de Pirandello a Portugal» de Maria José de Lancastre (D. Quixote, 2015) é um livro precioso, onde se faz o relato da viagem a Portugal, em setembro de 1931, do escritor de «Seis personagens à procura dum autor» dá-nos um curioso retrato do País, longe das considerações vulgares.

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ENTRE GUERRAS…
Estamos entre guerras, sentem-se os ecos de uma crise económica grave, Salazar prepara-se para deixar de ser apenas ministro das finanças, António Ferro desdobra-se para dar uma imagem arejada da nova situação… Luigi Pirandello (1867-1936) é hóspede de honra no V Congresso da Crítica Dramática e Musical, a que George Bernard Shaw não comparece. O tema dos debates respeita (para nossa surpresa) à liberdade de opinião e à independência crítica. Sentem-se as contradições de um tempo de paradoxos. Ferro é o encenador da iniciativa num tempo em que parecia haver a ilusão de que a normalidade poderia ser recuperada sem sobressaltos. No entanto, no horizonte todas as nuvens negras se acastelavam, abrindo caminho à barbárie… Para o Congresso, Pirandello traz na bagagem «Sonho (mas talvez não)», que irá servir de pretexto para a autora recordar «O Marinheiro» de Pessoa, publicado no primeiro número de «Orpheu».
Delicioso é o relato feito pelo jovem poeta Carlos Queirós (aqui na pele de jornalista) da conversa que tem com Pirandello, numa viagem de táxi entre os Restauradores e o Hotel Palácio do Estoril. O Mestre estava fatigado e escusara-se a seguir para Alfama até à festa popular organizada por Ferro. Tinham acabado (sem especial entusiasmo) de ver o filme de Leitão de Barros «A Severa», antecedido pela exibição do documentário «Douro Faina Fluvial» do jovem Manoel de Oliveira, mal recebido pelo público, para estupefação do dramaturgo italiano... Carlos Queirós conta, com humor e inteligência, o ocorrido: «No Central, durante a exibição do filme “Douro” – que o crítico francês Vuillermoz declarou ter sido, como realização, a estreia mais auspiciosa que tinha visto – alguns espectadores, com uma lamentável incompreensão, ameaçaram patear. Pirandello, inclinando-se para trás, perguntou a um dos portugueses que o acompanhavam no camarote: “Porque estão a bater com os pés? – Porque não gostam. – Mas o filme é muito bom! – É verdade, mas não gostam… E Pirandello, com ar de quem acaba de reconhecer uma classe (talvez a lembrar-se do que aconteceu a algumas das suas melhores peças): - Ah! São os idiotas!...». Estava tudo dito. Sabemos que Oliveira estava suficientemente seguro de si, inspirado por Walter Ruttmann, e agora contava com o veredicto absoluto de Pirandello. José Régio disse de «Douro», na «Presença»: «Realizado num mínimo de condições favoráveis, é, além duma surpresa e duma audácia, um milagre de apaixonada persistência» e Adolfo Casais Monteiro foi perentório: o filme «inaugurava em Portugal uma nova época».


UMA VIAGEM ATÉ AO ESTORIL…
Mas retornemos à viagem para o Estoril. António Ferro pede a Carlos Queirós que acompanhe o Mestre: «Disse que sim. Pirandello classificou-me de muito amável, chamámos um táxi, e um minuto depois partimos a caminho do Estoril. (…) O Mestre sentou-se à minha direita, pediu ao “chauffeur” para apagar a luz, enterrou as mãos nas algibeiras e a pera na gola do sobretudo e… ficou-se». Carlos Queirós hesita, pensa não poder perder aquela oportunidade, mas sente-se constrangido. E é Pirandello que começa: «Estou a gostar muito de Portugal. Lembra-me um pouco a Sicília. Tenho pena de não assistir aos festejos populares, mas estou, na verdade fatigado. A viagem foi muito longa». Confessa dormir pouco, quatro a cinco horas por noite, levantar-se muito cedo, e estar normalmente recolhido àquela hora… Fala de uma viagem prevista aos Estados Unidos, para representar algumas peças inéditas, e para filmar “Seis personagens». Certificando-se de que o interlocutor não é do mesmo ofício, fala da crise geral dos autores… É certo que há muitos concorrentes aos concursos em França, mas a qualidade é baixa. Valéry não é poeta, os seus versos têm uma profundidade artificial. Elogia Stève Passeur e Crommelynk. Marcel Pagnol é um caso de sorte. Jean Cocteau tem algumas habilidades curiosas. E não regateia elogios a André Maurois – sentindo-se rendido à literatura russa: «As obras de Dostoievsky e de Tolstoi são eternas. Também admiro Pushkin como precursor destes génios, dos quais o último foi Tchekhov. Se não tivesse morrido tão cedo era hoje um dos primeiros dramaturgos do nosso tempo…». No ensaísmo, entusiasma-se com Ortega y Gasset e Eugénio d’Ors e considera Unamuno «respeitável». Bernard Shaw é um génio, um grande espírito. E Keyserling um «bluff»… Neste ponto, como numa encenação, o táxi chega. Há uma breve correção de rota e Queirós remata: «Desculpe-me, Mestre, se o fatiguei… - Nada. As perguntas não foram indiscretas…».

LEMBRANDO FERNANDO PESSOA…
Maria José de Lancastre fala-nos da receção que teve Pirandello. Lembra o futuro papel fundamental de Gino Saviotti, recorda as revistas «Seara Nova» e «Presença», como janelas abertas para o debate cultural europeu. José Régio ou Eduardo Scarlatti (num laboratório de alquimistas) compreendem bem as modernas tendências. Pirandello traz a Lisboa «Sogno (ma forse no)» e a verdade é que há um certo público culto (não os idiotas!) em condições de perceber que, na peça do italiano, não é a realidade que imita o sonho, mas o sonho do protagonista que produz a realidade. Na primeira parte da comédia, o cérebro goza da privilegiada condição da liberdade, ditada pelo sonho, e torna-se uma espécie de oficina de onde sai um produto real. «O colar de pérolas que no final a protagonista recebe da mão do criado não é portanto uma espécie de coincidência milagrosa». É um sonho às avessas. E o tema era conhecido. Já Pessoa o tratara em «O Marinheiro», publicado no número um de «Orpheu». Robert Bréchon fala do «espetáculo de um espaço não situado, de um não lugar, lugar psíquico mais do que terreno, como se estivéssemos no interior de um cérebro». Ora, como sabemos, «O Marinheiro» é um sonho no sonho. Três veladoras acompanham uma quarta donzela, exortando-se a confiar umas às outras os próprios sonhos. Mas, de facto, elas são sonhos, destinados a dissolver-se no momento em que acordar quem as sonha. Ao sonhar, o Marinheiro evade-se do sonho, dissolve-se e faz dissolver aquelas que, ao sonhá-lo, o fizeram sonhar. E António Tabucchi disse-nos, com a sua lucidez conhecida, que assim a charada pôde solucionar-se: «o Marinheiro resolveu o mistério e alcançou a dimensão da sua pátria, seja ela um arquétipo inconsciente, uma dimensão ‘outra’ ou o Nada, que talvez seja para Pessoa a pátria mais idónea aos sonhos que nós somos». Este pequeno precioso livro está pleno de pistas (impossíveis de aqui resumir), essenciais para a compreensão do curioso encontro imaginário de Pirandello e de Pessoa, talvez chave enigmática de quem somos…

 

Guilherme d'Oliveira Martins

OLHAR E VER

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Hannah Arendt

 

17. PRECONCEITO E PLURALIDADE - I

 

Sob o título Was ist Politik?, reuniu Úrsula Ludz, em 1993, textos (alguns deles inéditos) que Hannah Arendt escreveu em 1953/54 e entre 1956 e 1959. Posteriormente, em 2005, Jerome Kohn estabeleceu uma versão em língua inglesa, publicada nos EUA com o título The Promise of Politics, que serviu de base à edição francesa (colecção L´Ordre Philosophique, Seuil, novembro de 2014) de Qu´est-ce que la Politique?, aonde fui buscar as citações aqui transcritas de passos de Hannah Arendt, que passo a citar : A política assenta no facto da pluralidade dos homens. Deus criou o homem; os homens são um produto humano, terreno, um produto da natureza humana. É porque a filosofia e a teologia tratam sempre de o homem - é porque todas as suas declarações continuariam sendo aplicáveis, mesmo que houvesse só um homem, ou só dois, ou só homens idênticos - que elas não encontraram uma resposta filosoficamente pertinente à questão: o que é a política? Mais grave ainda : para todo o pensamento científico só o homem existe  -  na biologia como na psicologia, na filosofia como na teologia... Mas... A política trata da existência comum e mútua de seres diferentes. Os homens organizam-se politicamente em função de certos pontos comuns essenciais, no seio ou a partir  de um caos absoluto de diferenças...   ...O homem, tal como a filosofia ou a teologia o conhecem, não existe  ou não se realiza, em política, a não ser na igualdade dos direitos que os seres mais diferentes mutuamente se garantam. Garantindo e assim concedendo voluntariamente um mesmo direito a nível jurídico, reconhece-se que a pluralidade dos homens, que só a si mesmos devem essa pluralidade, deve a sua existência à criação de o homem. Refiro-me, portanto, a Hannah Arendt, e aos pensamentos que dela evoco, como inspiração do que pensossinto e ora digo. Não pretendo expor ou seguir o seu discurso e propósito, reconheço uma dívida e desenvolvo umas ideias e interrogações. Não com propósito político ou religioso, mas, simplesmente, ético. Pelo meio desta introdução, ainda recordo que a pensadora germano-americana contestava o fundamento dos corpos políticos na família, posto que, no modelo familiar, os diferentes laços de parentesco são considerados, por um lado, como o meio de religar entre eles os seres mais diferentes e , pelo outro, como o que permite que grupos de indivíduos  parecidos entre si se diferenciem e se  oponham uns aos outros... (Ocorre-me aqui Fernando Pessoa: Coração oposto ao mundo, como a família é verdade...) Como adiante veremos, através de casos e exemplos, pessoalmente penso que, na política enquanto sabedoria e prática da organização e funcionamento das sociedades civis, em si e entre elas, tal como na família enquanto conceito de união primária de pessoas, ou na igreja enquanto assembleia que testemunha uma mesma fé, há certamente  necessidade de um princípio fundador. Mas este não pode ser um conjunto de preconceitos - como monolitos históricos que teremos de carregar - mas antes deverá ser sempre  uma concórdia voluntariamente assumida, e em que não se confunda o principal com o acessório, nem se tome o prestígio do passado como norma imutável em vez de exemplo considerável no tempo e nos modos. Não nos esqueçamos de que o princípio eius religio cujus regio resolveu afinal décadas de sangrentas e estultas guerras religiosas entre irmãos europeus e cristãos, nem de que o fraco entendimento de máximas como o meu reino não é deste mundo ou ainda dai a César o que é de César prolongou confusões e conflitos em volta da afirmação do modo do poder político... E muito menos olvidaremos que, na raiz de qualquer totalitarismo está, precisamente, a pretensão de impor um modelo de o homem, que apagasse a diferença entre os homens. Dito isto, os preconceitos, não só são necessários, mas inevitáveis. Escreve Arendt: Porque os preconceitos que partilhamos, que para nós são evidências, e podemos lançar na conversa sem longas explicações preliminares, têm eles próprios uma dimensão política no sentido lato do termo - um elemento inerente aos assuntos humanos que constituem o espaço em que quotidianamente nos movemos...   ... Pois nenhum homem pode viver sem preconceitos : não só porque homem algum teria suficiente inteligência ou discernimento para ajuizar a custas suas tudo o que no decurso da vida exige um juízo, mas também porque tal ausência de preconceitos obrigaria a uma vigilância sobre-humana... ...Essa renúncia, essa substituição do juízo pelos preconceitos só se torna perigosa se ganhar o domínio político, onde, de modo geral, não nos podemos mover sem juízos, já que o pensamento político assenta essencialmente na faculdade de ajuizar. Uma das razões da eficácia e do perigo dos preconceitos reside em que eles guardam sempre um fragmento do passado. Olhando-os de perto, reconhecemos um preconceito autêntico pelo juízo anteriormente estabelecido que ele esconde, juízo originariamente assente, de modo legítimo e adequado, numa experiência, e tornado preconceito porque se arrastou pelo tempo sem exame nem revisão...  ... Por isso, não só poderá antecipar-se ao juízo e entrevá-lo, como, ao tornar impossível o juízo, torna também impossível qualquer verdadeira experiência do presente.

 

Camilo Martins de Oliveira

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