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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

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CARTAS DE PALMO E MÃO VII

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Inês, querida amiga;

Vou a caminho de Bogotá, e de novo por falta de tempo, deixei por ir a dois locais que me trariam tréplica às perguntas. Num deles o tal pôr-do-sol acompanhado pelos ventos alísios no Baluarte de Santo Domingo, e que, levanta, diz-se, lembranças púrpuras, pormenores de heras silvestres entrelaçadas pelo furor dos tempos. Sem medos. O outro, mais exposto à decifração, ensina a evitar ocasiões, limita-as a uma aparência e parágrafo. Mas é do primeiro lugar que te quero falar depois de ter tido uma breve conversa com o Zé-Miguel sob as árvores do Jardim das Amoreiras.

Na verdade, Inês, aprendem-se palavras que denominam coisas escondidas, bastando para tal que deixemos uma corrente de música por mar primordial e deste modo soube

Que nem a Beatriz, nem o Zé-Miguel se tinham dado conta do que acontecera a ambos naquela passagem fulgurante do se conhecerem em navegações e périplos bem diferentes. Como sabes, há muito, que nem um, nem outro eram jovens, assim, o tempo das dúvidas do cativados ou cativos também já se fora, e no entanto, querida Inês, no “no entanto”, cabia tudo: os múltiplos matizados da atracção e da ternura, da volúpia e do desejo, da amizade e do amor, o centro dos prodígios da lealdade, o bosque afinal vivo, a música fresca, tudo formava frases inacabadas entre os dois, por força da mimese que os unia. Disse-me o Zé-Miguel que chegou a afeiçoar a corda do arco que por horas tinha tido na mão, à sua Beatriz, mas também me disse que ponderou a era do mundo em que estavam ambos, e que aquele limbo de tão raro, de tão frémito e sem qualquer plano, o surpreendera, mesmo depois de liberto da tensão.

Entretanto, a Beatriz rumou a Colónia para umas semanas de trabalho, não antes de me deixar uma nota por baixo da porta da minha casa, local onde passara todos os silêncios do que a Bia comungara com os sentires pelo o Zé-Miguel. Dizia na referida nota

«Isadora, reajusto o espírito vindo de tudo o que senti. Também me surpreendi pois neste tempo que o tempo me deu, entendi que, ele me propunha, ter sido tigre, e fui. Estranho não me sentir nas culpas do que não poderia, mas Isa, no limite deve-se ser fiel às boas vindas da alma antes de a vida nos levar. Não quero esquecer, minimizar ou dinamizar o belo que se passou, o nada que houve em tudo. Quero do Zé-Miguel o requinte da rota na minha memória para sempre.

Voltarás ao Quénia, em Julho, não é? Sei que Keekorok Mara Loge te acolherá de novo – confesso que receio que um dia fiques tempo demais -, e gostava de te pedir que deixasses por lá este pedacito de fio de lã, tecido pela nitidez da escrita de um lápis. Eu e o Zé-Miguel aninhámo-nos por aí. Bia»

Inês, não repouses a vida. A vida assusta enquanto sopra. Repara na Bia, ou em mim, no meu marido que me revela e se me apaixona rasante. Pode haver momentos – quem sabe? – em que cada um de nós, dentro de si, tenha de decidir algo desajustado do que deseja , e é um pouco dessa realidade, dessa visão, que te envio, dentro desta caixinha, uma semente madrepérola. Aceita-a para o caso de um dia a tanta força que julgámos ter, não nos vencer.

Sossega, dorme com a palma da mão sobre a anca do teu marido. Tu sabes, que tudo permanecerá no caminho, a centímetros das grandes distâncias.

Desconheço se te ajudei ou se te poderei ajudar. Contudo creio que todas as coisas expostas à luz e ao ar deveriam ser felizes a quem lhes chega.

Até breve!

 

Isadora

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Por Teresa Bracinha Vieira

2015