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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

A FORÇA DO ATO CRIADOR

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Hayden White e The Fictions of the Factual Representation (1978).

 

Qual a verdade da história? No séc. XIX, tornou-se imperativo evitar qualquer discurso de interpretação dos factos históricos. Atentava-se dotar a história de um método científico que eliminasse qualquer tipo de preconceito, utopia e sentimento. Os historiadores acreditavam que diferentes interpretações acerca dos mesmos factos eram reflexo de distorções ideológicas ou de dados factuais errados. Os historiadores acreditavam que só fugindo à ideologia se podia permanecer fiel aos factos – ‘They did not realize that the facts do not speak for themselves, but that speaks for them, speaks on their behalf, and fashions the fragments of the past into a whole whose integrity is – in its representation – a purely discursive one.’ (Hayden White, ‘The Fictions of the Factual Representation’ em ‘Tropics of Discourse’, 1978)

Segundo Hayden White (1928), o historiador introduzirá sempre, na apreensão e descrição de um conhecimento, um elemento pessoal – a subjectividade. A forma da realidade descrita pelo historiador passa pela sua perspectiva existencial, com a sua orientação, as suas aptidões, os seus limites, as suas escolhas (há aspectos do passado que o historiador não compreende, por ser ele e não outro). A história é apreensão interpretada, por um sujeito cognoscitivo, de um objecto real. A visão do historiador é sempre marcada por um esforço de explicação e por um esforço de compreensão. O historiador deseja uma imagem verbal e verdadeira acerca da realidade – a linguagem é um instrumento de mediação entre a consciência do Homem e o mundo e que implicitamente regula certos modos de representação em detrimento de outros. A realidade entendida pelo historiador, apesar de ser fragmentada, tem de ser coerente nos seus factos e na sua estrutura. Os historiadores pretendem encontrar a forma da realidade que lhes servirá de objecto de representação – ‘they will write when ‘all the facts are known’ and they have finally ‘got the story straight’…and to avoid both conceptual over-determination and imaginative excess’. (White)

A história é verdadeira para todos aqueles que querem a sua verdade e que constroem os factos da mesma maneira. A verdade não é um facto puro, porque inclui a interpretação feita à luz de um tempo presente – ‘all original descriptions of any field of phenomena are already interpretations’ (White). O discurso da história está localizado num tempo, num homem específico e circunstancial. Nenhuma leitura sobre o passado é neutra pela linguagem utilizada, pelo contexto do seu autor. Existem diversos modos de construir a história – diferentes maneiras de dispor a ordem dos factos, que ocorrem num tempo e num espaço específico de acordo com diferentes significados (moral, cognitivo ou estético). Cada historiador aplica diferentes modalidades de representação e de explicação da narrativa – interpretando o significado dos factos. Cada modo de linguagem e explanação tem afinidades com posições ideológicas específicas – anarquista, radical, liberal ou conservadora. O historiador pode manipular os factos reais do passado de acordo com as suas convicções do presente e permitir diferentes maneiras de ver esses factos. O historiador só tem acesso a determinados aspectos da verdade (mas é preciso reparar que trabalha com verdades válidas que, retiradas por meio de técnicas e processos, pertencem autenticamente a um objecto) e representa uma maneira específica de os apreender. Não existem dois historiadores que em presença do mesmo objecto construam os factos da mesma maneira e elaborem o mesmo conhecimento, porque o número de questões a levantar a um determinado conhecimento do passado é infinito. E por isso, é a riqueza do olhar humano que acrescenta valor aos factos e que traz profundidade à história.

Ana Ruepp

 

CARTAS DE CAMILO MARIA, MARQUÊS DE SAROLEA

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   Minha Princesa de mim:

Durante uma semana, entreguei os momentos quotidianos  -  que, religiosamente, vou guardando para respirar música  -  à escuta de sinfonias (da 3ª à 9ª) do Bruckner, e do seu Te Deum, bem como da missa nº 3, pela Münchner Philharmoniker, dirigida por Sergiu Celibidache. Noutra carta, já te referira como sentia  - e também ouvira outros dizerem  -  que Bruckner não deixara uma extensa obra sacra, apesar de ser homem e compositor de profunda fé católica, porque as suas sinfonias já absorviam o lançamento da sua força espiritual. Curiosamente, descubro agora, no livrinho que acompanha esta edição da Filarmónica de Munique pela Warner Bros, duas referências complementares. A primeira conta-nos o encanto quase infantil de Celibidache, maestro activo aos 83 anos, que a música de Bruckner acompanhou toda a vida, no ensaio do scherzo da 9ª: Onde se encontra coisa igual? De um simples ponto de vista harmónico, é incrível a maneira como tudo se combina! Mas, com fé maior, no esforçado início de um  andamento lento, citando a Bíblia: Quem procura encontra. A segunda observação ali feita diz-nos o seguinte: A atitude de Sergiu Celibidache perante a vida e a música foi profundamente influenciada pelo zen. Um mestre japonês do zen descreveu um dia assim a direcção de Celibidache: "Uma música livre por mãos livres". O maestro romeno ficou célebre também pelos seus tempi, as suas interpretações sendo quase sempre mais lentas do que as de outros. Penso que tal se devia à sua concentração no que eu chamaria meditação musical. Disse ele um dia, respondendo a Furtwängler, que o tempo depende de "como isso soa"... Portanto, a maneira como isso soa pode ditar o tempo! o tempo não é uma realidade em si, mas uma condição. Se estiver em jogo uma diversidade considerável, precisarei então de mais tempo, se quiser fazer musicalmente qualquer coisa disso; se se passarem menos coisas, poderei então encadear-me mais depressa no que se segue..." Deve ser isso que tanto me atrai na música de que mais gosto: o tempo de meditação, essa abertura da alma. Esta semana, movido por um livro de que adiante te falo, voltei aos lieder da Winterreise do Franz Schubert, na interpretação pelo barítono Dietrich Fischer-Dieskau, acompanhado ao piano pelo Gerald Moore. Gravação de 1955, vê tu bem! Repeti a escuta do primeiro lied que, em letra de Wilhelm Muller (1794-1827), começa assim (as traduções são minhas):

          Estrangeiro aqui cheguei,

          estrangeiro daqui parti.

          Que bem me acolheu Maio,

          com flores que se abriam!

          A moça falava de amor,

          a mãe até de casamento...

          Empalidece agora a natureza

          e de neve se cobrem os caminhos...

   E o último lied, o 24º, canta assim:

          Além, por detrás do casal,

          está um sanfoneiro,

          que com os dedos magoados

          toca o que pode.

          Descalço sobre o gelo,

          vai cambaleando,

          e a malga que traz

          está sempre vazia.

          Ninguém o quer ouvir,

          nem há quem queira vê-lo,

          e rosnam os cães

          em redor do homem velho.

          Mas p´ra ele está tudo certo,

          seja o que Deus quiser,

          toca, toca e não deixa

          que a sua sanfona se cale.

          Diz-me, espantoso velho,

          se deverei ir contigo?

          Posso cantar o meu fado

          Ao som da tua sanfona?

   A viagem pelo Inverno é a peregrinação da vida. A caminho do fim, na 20ª canção, Die Wegweiser, um sinal de trânsito:

          Vejo ali um sinal de trânsito,

           indiferente ao meu olhar ;

           deverei seguir um caminho,

           pelo qual jamais alguém voltou.

   E eu, Princesa, muito portuguesinho, só me lembro, então, do José Régio, do Cântico Negro dos Poemas de Deus e do Diabo:

          «Vem por aqui»  --  dizem-me alguns com olhos doces,

          estendendo-me os braços e seguros

          de que seria bom que eu os ouvisse

          quando me dizem: «Vem por aqui!»

          Eu olho-os com olhos lassos,

          (Há, nos meus olhos, ironias e cansaços)

          e cruzo os braços,

          e nunca vou por ali... 

Decorei os versos e guardei o livro, com capa do Júlio Gil, que me foi oferecido em 1955...há sessenta anos! E, ao deparar com a data, dou-me conta, agora mesmo, que é desse ano a gravação do Winterreise que estive a ouvir! E reparo ainda que é de 2015, isto é, sessenta anos mais novo, o livro que me fez lembrar de tudo isto : Schubert´s Winter Journey : Anatomy of an Obsession, de Ian Bostridge, brilhante tenor inglês, historiador de formação, que interpretou mais de cem vezes essas canções com letra do Muller e música do Schubert, que as terminou no seu leito de morte, aos 31 anos de idade, explicando-se: Imagina um homem cuja saúde nunca mais será boa, e que, por simples desespero, torna as coisas piores, em vez de as melhorar; imagina um homem, digo-te eu, cujas brilhantes esperanças pereceram, e ao qual o amor e a amizade não oferecem nada melhor do que o sofrimento. Vale a pena leres o livro, como quem caminha e medita na longa peregrinação da vida, sempre longa, porque, morra-se novo ou velho, sempre morremos com saudade do que fomos, e saudade ainda do que esperamos ser. Escreve Bostridge: A Winterreise é uma das grandes festas do calendário musical: uma festa austera, mas que toca o indizível. Após o último lied, "O tocador de sanfona", é palpável o silêncio, essa espécie de silêncio que só uma Paixão de Bach pode invocar.
Com esse silêncio te deixo

                                           Camilo Maria

 

Camilo Martins de Oliveira

 

HERMANN HESSE - AGUARELA

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Diz-se que os alemães quando querem dizer que algo perdeu o valor, eles comparam essa realidade com um vaso de flores. O Jornal Die Zeit declarou, em 1962, que a obra do escritor Hermann Hesse não servia nem para ganhar um vaso de flores. Hesse havia acabado de falecer na sequência de um forte derrame cerebral em 1962. O Jornal não podia estar mais errado. Cinquenta anos depois, Hesse está presente em todo o mundo, a sua obra foi traduzida para mais de 60 línguas.

Em Portugal a primeira tradução é de Ele e o Outro (Klein und Wagner),tradução esmeradíssima de Manuela de Sousa Marques em 1952 pela Guimarães editores.

Nobel de Literatura, Hermann Hesse é um dos mais importantes escritores alemães do século XX cuja mística ainda hoje é presente. Tem sido igualado a contemporâneos ilustres como Thomas Mann e Franz Kafka.

Hesse rompe com a família e emigra para a Suíça em 1912 onde trabalha como livreiro e operário. Adquire a nacionalidade suíça em 1923. Decide depois ir viver para a Índia e conhece o budismo, que adoptaria para o resto da vida.

“Solidão é independência e com ela eu sempre sonhara” regista na sua famosa obra “O Lobo da Estepe”. Escritor amado e subestimado, pouco conhecido como pintor, contudo, nos 50 anos da sua morte, o museu de belas artes de Berna apresentou os seus quadros na bela exposição " Voando sobre as fronteiras”.

Como poeta de grande e lucida doçura encontramos a parte mais tradicional de sua obra numa lírica hessiana eco do romantismo de meados do século anterior a ele. Hermann Hesse considerava-se antes de tudo um poeta. Ele mesmo, na idade de 14 anos, disse: “Serei poeta ou nada.” E completou, na velhice: “Escrevo romances e contos por ocasião; poeta sou, por vocação.”

Ramo em Flor

Para cá e para lá
sempre se inclina ao vento o ramo em flor,
para cima e para baixo
sempre meu coração vai feito uma criança
entre claros e nebulosos dias,
entre ambições e renúncias.
Até que as flores se espalham
e o ramo se enche de frutos,
até que o coração farto de infância
alcança a paz

Mas hoje sugiro "Knulp", uma ponte para fora de si pois que dentro e bem fundo do inacessível âmago. Trata-se de uma novela formada por 3 contos. O personagem é o mesmo nos três contos ainda que cada narrativa possa ser lida como texto independente, com vida própria. Karl Knulp, vive intensamente a sua transição para uma vida adulta. Como poeta popular vive à margem da chamada «vida normal», procurando nos afectos da sua existência o sentido deles próprios, aproximando-se assim do mais essencial da natureza intima. Curiosamente esta percepção fá-lo revisitar o passado, aquele que podia ter feito de si alguém completamente diferente.

- E está tudo bem? Está tudo como devia?- inquiriu a voz de Deus.

- Sim – concordou -, tudo está como devia.

A voz de Deus tornou-se mais ténue e não tardou a soar como a da sua mãe (…) sentia o peso da neve sobre as mãos e quis libertá-las, mas a vontade de adormecer tornara-se nele maior do que qualquer outra.


Anteriormente Knulp permanecera em contínua peregrinação errante em redor da sua terra natal.

 

Teresa Bracinha Vieira
Outubro 2015

ATORES, ENCENADORES - XLVII

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UMA REFERÊNCIA HISTÓRICA AOS PRIMEIROS “ATORES” PORTUGUESES

As Histórias do Teatro Português são unanimes em atribuir a dois jograis portugueses, em finais do século XII, a primeira referência documental referente ao espetáculo entre nós celebrado e como tal reconhecido e devidamente compensado, o que aponta para o ano de 1193 o início da profissionalização devidamente reconhecida. Diz um documento recolhido por Santa Rosa de Viterbo e citado por Teófilo Braga na sua obra clássica “Gil Vicente e as Origens do Teatro Medieval”, e depois transcrita, glosada e até retraduzida ou completada em sucessivas obras de análise e historiografia, até hoje.

Diz então o documento, na transcrição de Viterbo:

“No ano de 1193, el-Rei D. Sebastião, com sua mulher e filhos, fizeram doação de um casal, dos quatro que a coroa tinha em Canelas de Poiares do Douro, ao histrião ou bobo Bonamis e a seu irmão Acompaniado, para eles e seus descendentes”.

E mais acrescenta o documento uma espécie de quitação:

“Nós, mimos acima referido, devemos ao Senhor nosso Rei um arremedilho para efeitos de compensação”.

Com variantes e com alguma controvérsia interpretativa, que incide particularmente sobre a própria transcrição/modernização do texto integral, este documento é realmente considerado o primeiro testemunho de um atividade, insista-se, não tanto de teatro como de espetáculo, sendo certo, entretanto, que os “mimos ou histriões” não devem ser encarados como meros travadores ou bobos da corte, usando a expressão mais corrente: o desempenho envolve uma criação dramática, elementar que fosse.

E em qualquer caso, Teófilo, na sempre citável História do Teatro Português, lança hipóteses de expressões adequadas à criação de texto-espetáculo medieval, mesmo que o texto fosse incipiente. E interroga-se, e cito, se “começaria o teatro português pelas pantomimas rudes e não conheceria nunca o nosso povo outra forma, por isso que a única forma de designação inventada por ele fosse a palavra bonifrate (nome puramente português dos espetáculos a que os espanhóis chamaram títeres e os franceses marionettes)” (in “História do Teatro Português” vol. I - Imprensa Nacional Editora - Porto 1870).

A historiografia do teatro português desenvolve várias hipóteses de formulação dos géneros de texto - espetáculo na Idade Média, abrangendo desde as expressões populares às mais sofisticadas, (diríamos hoje…) manifestações na corte. Mas se deslocarmos a análise, não tanto para os espetáculos mas para a dramatização de textos, mesmo que não concebidos diretamente para a representação cénica, encontramos uma tradição que remonta aos Cancioneiros Medievais e que antecipa a consagração de texto-espetáculo do séculos XV/XVI e à consagração e transição do medieval para o renascentista em Gil Vicente.

Vejamos então, para terminar, a dramaticidade, no sentido de “teatro implícito” no diálogo conflituoso de mãe e filha nesta “cantiga” do trovador Pedro Meogo:

“MÃE – Digastes, filha, mia filha querida: /porque tardastes na fontana fria?/ Digastes, filha, mia filha louçana/ Porque tardastes na fria fontana?/ FILHA - Tardei, mia madre, na fontana fria/ cervos do monte a água volviam./ Tardei, mia madre, na fira fontana/ cervos do monte volviam a água./ MÃE – Mentir mia filha, mentir por amigo./ Nunca vi cervo que volvesse o rio./ Mentir mia filha, mentir por amado/ Nunca vi cervo que volvesse o alto./Os amores ei”…

É espetáculo? Diretamente não: mas é diálogo - e potencialmente, todo o diálogo é espetáculo, sobretudo quando põe em confronto situações diretamente dramatizáveis. E o confronto da mãe e filha a partir de um amor oculto e contrariado, aqui expresso num ritmo dialogado, potencialmente dramatizável e eminentemente conflitual, constitui germe do espetáculo que Henrique da Mota e sobretudo Gil Vicente iriam em breve consagrar.

DUARTE IVO CRUZ

 

LONDON LETTERS

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Blair’s sorry over The Irak War, 2003-15

TRH Tony Blair pede desculpas pela errónea persuasão pública em torno da intervenção militar no Irak, mas ressalva a parcela do derrube do poder em Baghdad do President Saddam Hussein. O ex

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Prime Minister admite erros na inteligência, planeamento operacional e que a alteração forçada do equilíbrio regional das forças haja favorecido a ascensão da Al Qaeda e do Isis. É um passo político, importante, em plena contagem decrescente para a divulgação do Chilcot Report. — Chérie! Mieux vaut tard que jamais. Vitória do liberal Justin Trudeau no Canada e da nacionalista Beata Szydło na Poland, acentuando a clivagem atlântica e o soberanismo eurocético. — Well. Bad charcoal only makes smoke. O Synod de Roma ameniza a vida familiar e abriga os divorciados na Catholic Church, em fio-de-prumo entre tradicionalistas e modernizadores. O US V President Joe Biden desiste da candidatura ao Oval Office e amplia as probabilidades de Mrs Hillary Clinton obter a 2016 Democratic nomination for president, a atual frontrunner na corrida de Washington. Acordos comerciais de £30b e mais 3,900 empregos são o resultado prático da vinda ao charming kingdom de Mr Xi Jinping. A Royal British Legion distribui a remembrance poppy que laureia os caídos na World War I.

Winter atmosphere na Big London. At the present is raining, but, wait a minute, now is shining. A versatilidade dos céus condiz com o political weather em dias especiais. Há exatos 600 anos King Henry V vence a impossível Battle of Agincourt (1415), a most famous 

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English victory, justamente imortalizada por Master Will Shakespeare, e, em 1951, Sir Winston S Churchill conquista a Premiership face a RH Clement Attlee. A memória fica hoje marcada pelas bandeirinhas do império chinês na envolvente. O líder da PRC visita uma engalanada capital do reino sob curioso chapéu oficial: strictly business é o lema que acompanha Mr Xi, do primeiro minuto na Horse Guards Parade até à última ida ao estádio do seu Manchester City Football Club. Bem que desaprovam vozes nas ruas e artigos na Press; diplomático silêncio cai sobre as questões sensíveis do Tibet e dos Human Rights. A vinda vale pelos investimentos, sobretudo na indústria nuclear, bem como para ver um relutante Mr Jeremy B Corbyn vestido comme il faut na receção do Buckingham Palace. O elemento político vem de onde não seria de esperar. HRM The Queen assinala que os dois países membros permanentes do UN Security Council “have a responsibility to cooperate on these issues which have a direct bearing on the security and prosperity of all our peoples.”

Também pro memoria e para a posteridade ficam as palavras deste Sunday de RH Anthony Charles Lynton Blair à CNN Europe: "I can say that I apologize for the fact that the intelligence we received was wrong because, even though he [“the dictator Saddam”] had used chemical weapons extensively against his own people, against others, the program in the form that we thought it was did not exist in the way that we thought." O Premier do UK entre 1997 e 2007 dá uma entrevista ao Fareed Zakaria’s GPS, onde se revisitam causas e efeitos da invasão militar lançada em 2003 por superior decisão do US President George W Bush. Além do duradouro caos semeado no Middle East e da proliferação do terrorismo neomedieval, a guerra causa indeterminadas baixas entre os locais a par de 4,000 soldados norte americanos e 179 British service members. O caso e o criticismo rondam, outrossim, as presidenciais de além Atlântico. Na liderança das candidaturas republicanas, a texto ou pretexto, o notorious Mr Donald Trump persiste em recordar a responsabilidade política havida nas falhas na segurança e até no 9/11. Tão assertivo é o multimilionário que Mr Ezra Klein conclui na Vox.com que “it’s increasingly clear he’s going to destroy Jeb Bush before he loses.”

And now for something completely different: Only in Germany! Um adolescente alemão viaja de automóvel com os pais alemães por uma aprazível estrada alemã. O autorrádio acompanha o pacífico passeio, sob seleta escolha dos mais velhos, um misto de 60s and 70s songs. O insólito ergue-se lá mais à frente. A viagem musicada cessa quando, num aparatoso roadblock ao estilo de Hollywood, são mandados parar e é na mira de armas de fogo que todos abandonam o carro. A hostilidade da guarda contrasta com a perplexidade da família, agora com as mãos levantadas e a trocar entre si frases de tranquilização no meio de gritadas ordens policiais. A situation aclara finalmente. O jovem, de 15 anos, algo pateta, assentemos desde já, algures escrevinhara a palavra “Hilfe” numa folha de papel para reclamar das preferências musicais dos progenitores e depois em protesto cola na janela do veículo. A birra é tomada a sério por terceiros e as forças de segurança são avisadas sobre uma possível malfeitoria em curso. A tonteira termina bem. Mas a Polizei sempre emite comunicado público com remoque educativo, quanto à necessidade de aprimorar a inclinação do rapaz para o drama. — Hmm! Some are born wise, and some others are not so.


St James, 26th October
Very sincerely yours,
V.

A VIDA DOS LIVROS

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De 26 de outubro a 1 de novembro de 2015

Pierre Emmanuel (1916-1984) foi um poeta francês que apoiou generosamente a causa democrática portuguesa, através dos seus amigos António Alçada Baptista e João Bénard da Costa. No próximo ano celebraremos, por isso, em Portugal o seu centenário com a presença de Roselyne Chénu. Recordamos o autor de «Le Monde est Intérieur» (1967).

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PORTUGAL NA ENCRUZILHADA
Portugal viveu, a seu modo, a influência da Segunda Grande Guerra. Foi lugar de passagem de muitos fugitivos para os Estados Unidos da América. Foi ponto de encontro e de contacto de agentes secretos aliados e do «eixo». Dir-se-ia que a simbólica partida do voo para Lisboa, no filme «Casablanca», em que Humphrey Bogart e Ingrid Bergman protagonizam o drama do conflito, constitui a demonstração de como Portugal foi uma placa giratória decisiva nesse tempo. Em 1945, com o fim da guerra, houve quem pensasse que os aliados iriam pressionar os Estados ibéricos no sentido da democracia e do pluralismo. No entanto, as feridas abertas pela guerra civil espanhola e o desenvolvimento da guerra fria suscitaram entre os membros da Aliança Atlântica receios e cuidados especiais, que se traduziram na manutenção dos regimes peninsulares. A neutralidade colaborante portuguesa do final do conflito, apesar de todas as ambiguidades, serviu para legitimar «de facto» a continuidade de Salazar, sob a fórmula eufemística de «democracia orgânica». As esperanças alimentadas em 1945 foram, deste modo, diversificadas e imediatamente vãs – desde os republicanos da oposição clássica moderada aos comunistas, passando pelos católicos e pelos monárquicos – tendo estes julgado ver então uma possibilidade de mudança de sistema, contando com a antiga e suposta ambiguidade do Presidente do Conselho. Depressa se percebeu, no entanto, que tudo ficaria na mesma, apesar dos equívocos terminológicos e da fórmula enganadora das «eleições livres com na livre Inglaterra». As oposições alimentaram no seu seio grandes contradições, em especial quanto à política ultramarina. Afinal, a República de 1910 fora criada na sequência da humilhação do Ultimatum inglês e a memória colonial desse episódio estava bem presente nos espíritos. Mas os tempos eram outros, agora. O Partido Comunista beneficiava de um clima internacional de guerra-fria, o que levava a «situação» a elegê-lo como inimigo principal. Já a posição da Igreja Católica e dos seus elementos mais avançados, antecipando o clima do Concílio começava a ir ao encontro do reconhecimento da autodeterminação das Novas Nações, demarcando-se do eurocentrismo imperial. António Alçada Baptista disse sobre esse tempo, ser preciso ter presente que «a Igreja, o Exército, o funcionalismo público e a burguesia de província (estruturalmente ligada à Igreja) constituíam as forças sociais de apoio da situação saída da Revolução do 28 de maio de 1926. Era a poderosa força da inércia perante a frágil força da mudança, ademais perturbada pela simbiose dificilmente separável da agitação e da demagogia que caracterizou uma boa parte da expressão política da Primeira República». Neste contexto, o Congresso para a Liberdade da Cultura teve um papel de assinalável importância em Portugal, graças à articulação das intervenções de Pierre Emmanuel (coordenador do Congresso) e de António Alçada Baptista (representante em Portugal). Tratava-se de mobilizar um conjunto notável de personalidades marcantes na sociedade portuguesa a fim de coordenarem ações relevantes no domínio do intercâmbio cultural e do incentivo à cooperação e mobilidade internacionais.

 

UM PRECIOSO APOIO À LIBERDADE
«Um dia veio a Lisboa, diz Alçada, numa visita de trabalho, o sociólogo francês Cuisinier que me entregou uma carta de Pierre Emmanuel, Presidente da Association (pour la Liberté de la Culture), que me pedia para o contactar numa próxima visita a Paris. Daí criámos uma grande amizade que hoje posso recordar como um grande privilégio que tive» («Pesca à Linha», p. 73). Como veremos, ao lado de Alçada Baptista viriam a estar, mercê de uma criteriosa escolha, Adérito Sedas Nunes, Joel Serrão, José-Augusto França, José Cardoso Pires, José Ribeiro dos Santos, Luís Filipe Lindley Cintra, Mário Murteira, João Pedro Miller Guerra, João Salgueiro, João Bénard da Costa, Nuno de Bragança, Maria de Lourdes Belchior, Nuno Teotónio Pereira, Rui Grácio, João de Freitas Branco, José Palla e Carmo e o Padre Manuel Antunes. Na passagem dos anos sessenta para setenta, João Bénard da Costa, primeiro na redação de «O Tempo e o Modo» e depois no Centro Nacional de Cultura secretariou a Comissão Portuguesa para as Relações Culturais Europeias (assim se designava a instituição) – o que permitiu um apoio organizado de bolsas de estudo, de viagens, de participações em seminários estrangeiros, de intercâmbio de informações e apoio à publicação de obras relevantes.


ABRIR HORIZONTES NOVOS
Como reconheceu António Alçada, primeiro animador da iniciativa: «Além da ajuda material, esta ação permitiu a muitos intelectuais portugueses formas de intercâmbio com os centros culturais europeus que os fizeram sair do gueto em que estávamos metidos e lhes deu ocasião para participar em núcleos de diálogo com a cultura europeia, nomeadamente com intelectuais de países sem liberdades do Leste, de Espanha e da América Latina. Esta Comissão, além do apoio que pôde dar a iniciativas que não teriam outras fontes de financiamento, foi também um lugar de encontro entre pessoas de várias ideologias e mais uma presença dos católicos na ação de oposição ao antigo regime». É certo que esta colaboração não foi destituída de dificuldades e problemas, como a do forte abalo sofrido por Pierre Emmanuel quando se soube que havia uma organização fantasma, através da qual eram atribuídos dinheiros da CIA. Então veio a Portugal apresentar o caso, mas foi-lhe transmitido nunca ter sido posta em dúvida a sua boa fé e a importância fundamental do seu apoio. A Associação passou a ter apoios da Fundação Ford com inteira transparência… Foi ao longo deste processo (desde as origens da colaboração) que se demonstrou a nobreza de carácter de Pierre Emmanuel - «daqueles raros portadores de uma profunda e aristocrática relação com a liberdade dos homens, que o fazia estar atento à situação dos intelectuais e dos escritores, daqueles que na sua expressão «havia sido confiado o depósito da palavra humana». E, talvez melhor que alguém, António Ramos Rosa definiu assim Pierre Emmanuel, numa linha de culto essencial do espírito: «A sua vocação é essa: a de um grande espírito para quem o cristianismo é a grande “chance” de nascer a cada momento no espírito e na realidade mais humilde da existência». Foi essa oportunidade que o poeta quis demonstrar na amizade sincera à liberdade portuguesa, através de um amigo generoso e empenhado, com o António. E Sophia, traduziu assim o sublime Canto LXVI: «O silêncio está em flor / Como uma macieira branca sob a lua / Oh lua / quando entre as árvores sobes / tão puro se desenha este ramo / a eternidade é de repente tão aguda / que choramos de abandono gritamos / de alegria / enquanto a alma evaporada morre / no perfume lunar da noite branca»… Afinal, a construção gradual da democracia faz-se muito de compromissos com a dignidade humana, em que Emmanuel e Alçada acreditavam.

Guilherme d'Oliveira Martins

COM ÉMILE ZOLA E GEORGES BERNANOS

6.   N O V A   C A R T A   S E X T A

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Minha Princesa de mim:

Nesta, finalmente, te falo do caso Dreyfus. Sobretudo pelo que ele nos convida a examinar em atitudes nossas que, generalizando suspeitas ou antipatias, ou estendendo preconceitos, acabam por nos levar a juízos temerários e injustos. Para além do bom senso, da prudência e da justiça, a nossa propensão a desunir, dividir, separar e excluir, condenar e abominar, leva-nos a rotular os outros, ou o diferente, conferindo entoações e sentidos pejorativos a designações de identificação que, ainda por cima, vão alcançar e abranger pessoas e grupos que suspeitamos e pretendemos agredir, mais do que defini-los conformemente à realidade: pretos, padres, comunistas, maçons, judeus, eis alguns dos muitos exemplos desses temerários e injustos vocativos... Nomes circunstanciando conceitos mal definidos em nebulosas mentais, correspondentes, o mais das vezes, a frustrações ou ódios particulares. Injúrias. Insultos que apenas resultam no aumento de tensões e afrontamentos, concomitantemente à diminuição da lucidez e capacidade de diálogo. Resumindo: uma irresponsabilidade, a que, mais vez,  menos vez, nem sempre fugimos... Nas cartas que te vou escrevendo, Princesa  -  como noutros textos que publiquei  -  por várias vezes me referi, pensando na circunstância actual da "globalização", a essas questões, condicionantes do diálogo e da convivência, que acima menciono. Tal como insisti na importância da identidade, da consciência de si, para ser possível, no respeito mútuo da diferença do outro, todos sabermos do que falamos e em que termos o devemos fazer. Este domingo, curiosamente, as leituras bíblicas contam-nos o episódio da queixa que os discípulos fazem a Jesus, por terem visto um homem, que não era do grupo deles, expulsar demónios. Ao que o Mestre responde: Não o proibais, porque ninguém pode fazer um milagre em meu nome e depois dizer mal de mim. Quem não é contra nós é por nós. O bem e a razão não são monopólio de um grupo só, ou de uma só religião. Também Moisés, outro judeu, quando Josué, seu dedicado servidor, lhe disse que outros profetizavam, e ele devia proibi-los, respondeu: Estás com ciúmes por causa de mim? Quem me dera que todo o povo fosse profeta, e que o Senhor infundisse o Espírito sobre todos! A diferença de identidades não exclui ninguém da comum dignidade humana, nem dos planos de Deus. Mas sobre a definição da identidade...falaremos noutro dia. Hoje, curiosamente também, li uma entrevista ao historiador britânico (mas francófono e francófilo) Sudhir Hazareesingh, de quem recentemente falei, sobre o receio de perda de identidade francesa que hoje atravessa o discurso dos pensadores gauleses, da direita até à esquerda. Transversal. A dado passo, afirma ele: Há uma tendência muito actual para diabolizar tudo o que é "outro"...   ...Tudo o que é "outro" é representado como uma ameaça para a "identidade francesa", essoutro sendo, quer o estrangeiro (a Alemanha, os EUA, o mundo árabe e muçulmano), quer o minoritário (as feministas, os homossexuais, os imigrantes, etc.). Ainda curiosamente, fui dar com outro entrevistado, o historiador francês Patrick Boucheron, que adianta: Uma poderosa interpelação política exorta os historiadores a tranquilizar-nos sobre a antiguidade, a consistência e a clausura da nossa identidade. Face a este veneno contemporâneo, que pode a história?...   ... A procura apaixonada da identidade é contrária à própria ideia de história, essa ciência da mudança social, que conta a maneira como os homens e as mulheres, em sociedade, se tornam senhores do seu destino. Contrariamente ao que afirmam os apóstolos da identidade nacional, a história não é providencial: nada está previamente escrito. Quando a história se deixa apanhar numa armadilha identitária, limita-se ao "já escrito", consente nessa teologia do inevitável que é a catástrofe por vir. O único pensamento crítico válido, é compreender que outras opções são possíveis. A história continua porque está continuamente aberta. Não se contenta com o que foi, mas permanece acolhedora a possíveis porvir. Essa será, talvez, a única lição da história: a certeza de que a cada momento se inventou algo que não estava previsto... Penso que Émile Zola, no caso Dreyfus, também percebeu isso. Para além da defesa da inocência de um homem ( mesmo que este fosse um pedante, rico e femeeiro) que, aos olhos de muitos, simbolizava a nova burguesia francesa, com o seu luxo exibicionista, a sua insensibilidade social, e a falta de escrúpulos que a levou a tantos escândalos, financeiros e outros, havia que apontar o dedo a uma classe militar e política, cúmplice dessa mesma burguesia, e que, para se safar do intolerável escândalo da alta traição cometida no seu seio (espionagem em favor do inimigo alemão), entendeu sacrificar um dos seus que, por ser judeu, seria bode expiatório mais facilmente aceite pela opinião pública. Despachava-se, assim, o processo e... não se falava mais no assunto! O culpado  --  que, evidentemente, nunca poderia ser um oficial "francês de gema"  --  era "outro", intrinsecamente estrangeiro, malevolente e indigno de confiança. Não se identificava com a França, era um estranho. Edouard Drumont, por muito que detestasse as classes dominantes  -  e corajosamente tivesse levantado, bem mais do que Zola, o seu protesto contra a carnificina repressiva da Comuna  -  não se libertava do seu complexo antissemita: o judeu, e o seu gosto pelo Dinheiro, envenenava as virtudes autênticas da França. Errou. Foi em Maio de 1896, no Figaro, como já te disse, que Zola começou a contestar publicamente a campanha antissemita de Drumont, e só em finais desse ano ele melhor conhecerá, na sequência de um encontro com Bernard Lazare (autor de Une erreur judiciaire. La vérité sur l´affaire Dreyfus), o processo judicial que, em 1894, condenara à deportação, por espionagem em favor da Alemanha, do capitão de família judia. Mas só em Novembro de 1897, depois de ter notícia da descoberta, pelo tenente-coronel Picquart, de provas incriminatórias de Esterhazy (o culpado, que ainda será absolvido antes de ser finalmente condenado), Zola iniciará uma série de artigos no Figaro, questionando as acusações contra os judeus, incluindo no caso Dreyfus. Terá de interromper essa campanha naquele jornal, dar-se-á conta, também, da sua relativa ineficácia, no meio do marasmo geral perante a ebulição antijudaica, o que o levará a mudar de tática e, na sequência da absolvição de Esterhazy pelo conselho de guerra, em 11 de Janeiro de 1898, publicará, em toda a primeira página do jornal L´Aurore, no dia 13, a sua carta ao Presidente da República, Félix Faure, sob o veemente título J´Accuse...! O jornal logo vendeu 300 mil exemplares! E, é claro, o governo logo moveu uma acção em tribunal contra Zola, por insultos às forças armadas, etc., tendo o escritor sido condenado, por crime de difamação, a um ano de cadeia e três mil francos de multa. Só que a agitação começara, e o caso passou de simplesmente judicial a político, ganhando foros de interpelação à consciência moral da França. Substituiu-se a pena de prisão por exílio em Londres, que durou de Julho de 1898 a Junho de 1899. Neste mesmo mês, no dia 3, dois dias antes do regresso de Zola a França, é anulada a sentença que condenara Dreyfus em 1894. Mas o capitão só será reintegrado em 1906, já depois de ter assistido à vitória eleitoral da esquerda radical nas eleições de 1902 e, a 5 de Outubro desse ano, às exéquias de Émile Zola, falecido em 29 de Setembro. Todo este processo e a sua circunstância estão eivados de intenções, actos e factos, tristes e sórdidos: falsificaram-se documentos e provas, suicidaram-se falsificadores, tramaram-se intrigas e escamotearam-se revelações; mesmo depois de anulada, em 1899, a sentença de 1894, logo em 1900, as Câmaras do Parlamento aprovaram uma lei amnistiando todos os envolvidos no processo, isto é, misturando os culpados, tardiamente acusados, julgados e condenados, com os inocentes, que já haviam pago pelo que não tinham feito, incluindo nestes o tenente-coronel Picquart que, por ter levantado o véu lançado sobre a culpabilidade de Esterhazy, iniciara o caminho da salvação da honra do exército francês. (O que não impedira, antes entusiasmara, os perseguidores a julgarem-no por falsificação de provas, quando mostrou que o autor do memorando entregue aos alemães fora, efectivamente, Esterhazy). O polemista e justiceiro Zola, jornalista e escritor de combate, fora sobretudo um romancista romântico e naturalista que, em vinte romances, compusera, com genealogias e hereditariedades minuciosamente preparadas, o percurso de uma família pelo Segundo Império : os Rougon-Macquart. Nessa saga convivemos com uma época e uma sociedade dominadas pelo oportunismo, pela ganância, pela luxúria, em que sobressaem, aqui e ali, algumas personagens com outra densidade espiritual, talvez por isso mesmo desaparelhadas, desadaptadas, quase como os Misfits de Arthur Miller, ou os de This side of Paradise do Scott Fitzgerald, no desfazer do sonho americano. Agnóstico, Zola iniciará  --  como em carta anterior te conto  --  a redacção dos seus Quatre Évangiles, no exílio, em Londres, uma espécie de regresso laico a valores cristãos... Tenho pena de não conseguir achar, hoje, aqui, na floresta dos meus livros, cópia do texto original de El Mal del Siglo, de Miguel de Unamuno, mas leio umas notas, já velhinhas, de leitura minha. Ocorre-me o mesmo por contraposição à coragem e ao sonho do Zola que, apesar de tudo, acredita ainda na possibilidade de vidas conduzidas por valores e esperança. O texto de Unamuno que ora recordo  --  e que anuncia o grande Del Sentimiento Trágico de la Vida (1911)  --  data de 1897, sofre também dos males de fim de século, e contra eles procura igualmente reagir. Refere, curiosamente outra vez, de acordo com os meus apontamentos, o eloquente suicídio do "poeta nihilista" Antero de Quental, como símbolo da vaidade de todas as coisas e da morte eterna como única saída. Mas, contrapondo-o de outro modo a Zola, registei nas minhas notas um passo de Unamuno, que, apesar de traduzido por mim, não andará longe do original: Mesmo que a razão se tenha tornado ateia, o coração continuou a ser cristão, e é do coração que jorra a fé. Devemos esperar mais duma alma cristã arrancada ao ateísmo do que dum deísta cristianizado...   ... a razão deísta acaba por afogar Deus no mundo e dissolvê-lo. Deus não se prova, não pode provar-se, sentimo-lo. Deus não é racional, é cordial...   ... É abandonando a Razão e a Vontade que procuraremos o Amor. Deus é amor, e o amor é mais forte do que a morte...   ...Uma só coisa é necessária: a fé, que é amor. E o amor é justiça. Georges Bernanos também foi jornalista e escritor de combate. Nascido numa família da média burguesia francesa, católica, conservadora e monárquica, herdou valores tradicionais e uma visão do mundo que pretendia arrumá-lo no quadro desses valores. Mas foi sempre fiel ao mandamento novo, tal como Unamuno acima o formula. Foi isso que o ajudou a também nunca perder nem esperança, nem coragem, a falar com liberdade interior e independência. Tarde se fez romancista, mas as suas histórias contam-nos a exigente aventura da graça de Deus na vida dos homens, têm heróis que são padres, são habitadas por forças obscuras mas sempre presentes, como em Dostoievsky. Acaba aqui, Princesa, este passeio que, de mãos dadas com Zola e Bernanos, eu dei contigo. Ou talvez não acabe, e por novos horizontes se vá prolongando...
Dou-te a mão

                      Camilo Maria

 

Camilo Martins de Oliveira

A FORÇA DO ATO CRIADOR

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Acerca de ‘Useful Work v. Useless Toil’ de William Morris


‘Wealth is what Nature gives us and what a reasonable man can make out of the gifts of Nature for his reasonable use. The sunlight, the fresh air , the unspoiled face of the earth, food, raiment and housing necessary and decent; the storing up of knowledge of all kind, and the power of disseminating it; means of free communication between man and man; Works of art, the beauty which man creates when he is most a man, most aspiring and thoughtful – all things which serve the pleasure of people of people, free, manly, and uncorrupted.
This is wealth.’
William Morris, 1884


William Morris (1834-1896), a partir de 1875, dividiu a sua vida entre o desenho de papéis de parede, cortinados e tapeçarias e a política. Foi em 1883 que começou a ler as obras de Karl Marx e filiou-se na Federação Social-Democrata, liderada por Engels. Dois anos depois, saiu da Federação e fundou a Liga Socialista. Até 1896 escreveu e publicou ensaios sobre temas ligados ao socialismo, à cultura e à sociedade, culminando no seu famoso ensaio utopista ‘News from Nowhere’, de 1891.

No texto ‘Useful Work v. Useless Toil’ (1884) que William Morris escreveu em 1884, lê-se que existem dois tipos de trabalho: um abençoado (a luz da vida) e outro amaldiçoado (o fardo da vida). A diferença entre os dois está na verdadeira esperança que o primeiro transporta – esperança no descanso, esperança na produção criativa de algo concreto e esperança no contentamento que o acto de fazer pode trazer.

Morris afirma que a desigualdade existente entre as diferentes classes da sociedade fomenta uma grande pressão sobre a classe trabalhadora e destrói qualquer tipo de esperança. A classe mais elevada não produz mas muito consome. E uma grande massa da sociedade está empenhada em tudo produzir para responder assim às luxuosas exigências da classe mais rica: ‘For if many men live without producing, nay, must live lifes so empty and foolish that they force a great part of the workers to produce wares which no one needs, not even the rich, it follows that most men must be poor.’

Segundo Morris, a sociedade inclui então três classes – a classe que não trabalha; a classe que aparenta trabalhar mas que nada produz; e a classe que trabalha, mas que é forçada pelas outras duas classes a produzir trabalho improfícuo. Desta maneira, inutilizam-se recursos – o homem movido por suas necessidades e desejos trabalhou, muitos milhares de anos, na tarefa de subjugar as forças da Natureza e de converter em úteis os materiais naturais. Morris diz que o presente sistema produz desejos no homem, mas que em simultâneo o proíbe constantemente de os satisfazer. Os frutos da vitória sobre a Natureza são assim eliminados e a determinação em trabalhar pela esperança de obter descanso, recompensa e prazer é substituído pela compulsão de trabalhar simplesmente pelo trabalho.

O que há então a fazer?

Ora, Morris sugere que a principal medida a ser tomada seja a de suprimir a classe de homens privilegiados, que foge às suas obrigações, forçando-os a fazer o trabalho que se recusam a fazer - todos devem trabalhar, de acordo com as suas aptidões e por isso devem produzir o que consomem. Cada homem deve trabalhar o melhor que pode, para seu próprio sustento, e a sociedade deve assegurar vantagens a todos os seus membros. Nenhum homem deve ser atormentado em benefício de nenhum outro (colhe os frutos do seu próprio trabalho). No entanto, a Natureza só será finalmente conquistada a partir do momento em que o trabalho do homem fizer parte do prazer da sua existência (e se torne assim luz da vida). Seria fácil pôr em prática esta medida se todo o trabalho, feito pelo homem, fosse útil e se o padrão de vida assentasse no bem fazer e não no que a classe mais elevada estabelece como desejável. ‘The ornamental part of modern life is already rotten to the core, and must be utterly swept away before the new order of things is realized.’, William Morris Morris proclama que todo o trabalho (do mais banal ao mais necessário) além de responder a exigências reais e de sustento deve acima de tudo agradar ao homem. E o trabalho só é aprazível se for: útil; limitado temporalmente; variado (a variedade do trabalho advém da capacidade do sistema educativo em desenvolver as adequadas capacidades individuais criativas); e executado em ambiente estimulante. Por isso, William Morris apela ao fim das cidades sobrelotadas, ao fim das grandes obras de engenharia – porque o vento e água são as únicas fontes de força e as hidrovias e as estradas os únicos meios de transporte – e à abolição das fábricas com condições de trabalho precárias: ‘There is no reason why people engaged in all labour should not follow their occupations in quiet country homes, in idustrial colleges, in small towns, or, in short, where they find it happiest for them to live.’ E proclama o desaparecimento da distinção entre campo e cidade, a construção de edifícios como se de casas se tratassem, o trabalho baseado na oficina associada, a educação livre, não obrigatória e a procura de uma solução (do dilema colocado pela Revolução Industrial) para a utilização adequada da máquina no trabalho do homem.

Ana Ruepp

COM ÉMILE ZOLA E GEORGES BERNANOS

  1.   N O V A   C A R T A   Q U I N T A

J'accuse, famoso artigo (jornalismo) escrito por

  Minha Princesa de mim:

   Sabes bem que, muitas e muitas vezes, me tenho interrogado  -  e vou escrevendo  -  sobre o preconceito e a intolerância, a antipatia e a divisão, a exclusão e a perseguição. Temendo não ver a trave que me tapa a vista, enquanto aponto o argueiro que irrita o olho de outrem, pensei amiúde, como cristão e católico, porque diabo haveríamos de pensar que, por ser a verdadeira religião, a nossa seria superior às outras... A alegria da fé na boa nova anunciada por Jesus devia levar-nos, humildemente, à gratidão pela revelação recebida e ao gosto natural de querer partilhá-la com todos. A alegria  --  e sobretudo essa alegria do evangelho, que traz sentido e liberdade à nossa vida  --  é comunicativa, despertadora, sente-se como dádiva recebida e partilhada, não se impõe por qualquer manifestação de superioridade, demonstração de força ou de hierarquia de louvor a Deus. A maravilha da mensagem actual do papa Francisco é a alegria simples da fé no amor igual de Deus por todos nós. Para Deus não há cristão, budista, muçulmano, agnóstico, ateu, nem tudo o mais diferente, há, cristalinamente, o que pratica a misericórdia e ama o seu irmão. No seu discurso à Assembleia Geral da ONU, o papa falou do respeito devido à dignidade humana, à liberdade, igualdade fraternidade de todos e cada um. Mas tal não foi uma declaração retórica, pois Francisco lembrou os direitos económicos e sociais que sustentam essa dignidade, e falou em Deuspátria, trabalho e família. Vê tu bem, Princesa, como os gritos de guerra, de um e de outro lado, não são necessariamente afrontamentos exclusivistas. No concerto social, acima da teimosia em impor princípios próprios, nas formulações ideológicas que lhes der o tempo e o modo, só ganhamos todos com a procura do sentido da dignidade e da justiça que, em paz, nos deve construir. Drumont, que Bernanos admirava, era coevo de Zola, opuseram-se sobre a question juive e o caso Dreyfus. Não vou fazer-te aqui uma análise de casos, nem sequer disso a que, em França e na Europa, há séculos dá pelo nome de antissemitismo. Antes procurarei olhar contigo  -  e tentar ver  -  para o pensarsentir com que, por exemplo, Drumont/Bernanos, de um lado, e Zola, do outro, encararam certas realidades e acontecimentos. Talvez nos surpreenda uma subjacência comum de liberdade e coragem de pensamento e elevado sentido de justiça. Reagindo ao livro de Drumont, La France Juive, Zola publica, em Le Figaro, de 16 de Maio de 1896, um texto intitulado Pour les juifs, de que cito uns passos: Já não é um padre que o jornal almoça pela manhã, mas um judeu, o mais gordinho, o mais florido que se possa arranjar. Almoço tão medíocre como o outro, e pelo menos tão tolo. Com razão, compara a estupidez gratuita do antissemitismo à do anticlericalismo. Adiante: Eis aqui o meu contínuo espanto, que tal regresso de fanatismo, que tal tentativa de guerra religiosa, tenha podido produzir-se na nossa época, na nossa grande Paris, no meio do nosso bom povo. E isto nos nossos tempos de democracia, de tolerância universal, quando, por todo o lado, se declara um movimento para a igualdade, a fraternidade e a justiça! Estamos a tentar destruir fronteiras, sonhar com a comunidade dos povos, reunir congressos de religiões, para que os padres de todos os cultos se abracem, sentirmo-nos todos irmãos pela dor, querer salvar-nos a todos da miséria de viver, elevando um único altar à piedade humana! E  aparece um punhado de loucos, de imbecis ou de habilidosos, que todas as manhãs nos gritam: "Matemos os judeus, comamos os judeus, massacremos, exterminemos, voltemos às fogueiras!" Eis o que se chama saber escolher a hora certa! E nada seria mais estúpido, se nada fosse mais abominável! Em La Grande Peur des biens pensants, Bernanos, não só presta homenagem a Drumont, como reconhece a dívida moral e intelectual que para com ele tem. O autor de La France juive é, para ele, um exemplo de independência de espírito e de coragem, num país saído da revolução, e onde, desde o Directório à monarquia de Julho, as grandes dinastias da nova burguesia se mantêm no poder, e aí ficarão durante o Segundo Império e a República que lhe segue. É contra a ditadura do Dinheiro, o esmagamento do velho povo francês, incluindo esse que, anarcossindicalista, a comuna de Paris também integra, que Drumont  --  aquele que não aceita e, em período de mal entendidos, equívocos, oportunismos à direita e à esquerda, defende, mantém, proclama o ponto de vista do homem livre  --  se ergue. Escreve Bernanos: Quando tiver acabado a leitura desse livro, parece-me que qualquer homem de boa fé convirá em que o velho escritor de La France juive foi menos obcecado pelos Judeus do que pelo poder do Dinheiro, de que o Judeu era, a seus olhos, símbolo ou, por assim dizer, a incarnação... E, noutro passo: "Sem dúvida", escreve Edouard Drumont em Le Testament d´un antisémite, "à primeira achega somos tentados  a divertirmo-nos com o belo impudor com que essa gente escarnece os seus eleitores, trai os seus juramentos, mente às suas promessas, explora e mistifica de vez em vez cada partido, para arranjarem mais prazer e luxo"...   ...Tal é essa revolta da consciência, da generosidade, da honra, de que nasceria toda a obra de Drumont. Antes de fazer, dia a dia, no seu La Libre Parole, o processo do Judeu, ele fez o processo da sociedade sem entranhas sobre a qual o Judeu fermenta. Era necessária essa grande voz, essa voz de bronze, para romper o pacto vergonhoso do silêncio. Ele fez o processo do seu tempo com tal medida no desprezo, tão alta piedade, tanta abundância de provas, que ninguém tentará uma reabilitação. Tenta-a ele, a seus riscos e perigos, sozinho, livre. No fundo, Georges Bernanos, patriota e conservador da identidade e valores tradicionais, também pensava na reconciliação do povo e do Estado, unidos contra a opressão do dinheiro. Como em monarquias históricas... Joseph Jurt, apresentando La Grande Peur des biens pensants na Bibliothèque de la Pléiade, observa que, mesmo sem acentuar tanto o problema judeu, Bernanos retoma a tese do autor de La France juive, mas sublinha que "o antissemitismo expresso em La Grande Peur nada tinha a ver com o antissemitismo hitleriano", e cita Bernanos: Nenhum dos que me deram a honra de ler-me pode julgar-me ligado à horrenda propaganda antissemita que hoje se desencadeia na imprensa dita nacional às ordens do estrangeiro...   ... Se agradar ao Sr. Hitler desonrar neste momento a causa que o meu velho mestre serviu, isso que importa? Não degrada o nacionalismo a ideia de Pátria, e o militarismo militar a tradição militar? O general Franco e suas Excelências a ideia da Cruzada? Quem tenha lido Les Grands Cimetières sabe que caso faço de políticos e assassinos. Parece-me, Princesa, que o modo flâneur da minha peregrinação, uma vez mais, atirará o caso Dreyfus para outra carta. Mas, lembrado do indignado protesto de Drumont contra a desumanidade da repressão da Comuna de Paris pelo exército, ou do de Bernanos contra os linchamentos de esquerdistas espanhóis pelas falanges, deixo-te um texto bonito de Émile Zola que, quiçá, os outros dois escritores franceses não desdenhariam subscrever, e o próprio papa Francisco, com a sua caridade, entenderia: Começaram com a própria existência das sociedades. Diante dos males inevitáveis, que qualquer ordem social engendra, houve sempre homens simples, enamorados do sonho de uma felicidade sem mistura, que, sinceramente convencidos da possibilidade de um paraíso terrestre, acreditaram que bastaria regressar à natureza e, assim, destruir o estado de coisas convencionalmente estabelecido. E quanto mais belo era o seu sonho, mais intenso era o seu desejo de felicidade humana, mais ardentemente proclamavam a necessidade de demolir. A teoria anarquista continuou sempre, ora silenciosa, quase idílica, refugiada na alma dos sonhadores; ora barulhenta, exaltada, ameaçadora, no cérebro dos homens de acção. É sobretudo no fim das civilizações, no momento em que um mundo em declínio vai dar lugar a um mundo novo, que ela bruscamente rebenta. Porque, nesse momento, os erros sociais desvendam-se aos olhos dos mais indiferentes, as convenções parecem artificiais, a desigualdade mais não é do que injustiça. Então, esses seres de que falamos, feridos na sua alma verdadeiramente boa, de todos os males que em sonho tantas vezes curaram, apenas têm um desejo: matar o efeito matando a causa, isto é, suprimir o mal suprimindo a sociedade que o engendra. Publicadas em Le Figaro de 25 de Abril de 1892, estas palavras levam-me a pensar que só procurando em harmonia a justiça social nos é possível gerir a utopia. E consola-me sentir o papa Francisco ter insubmissa fé em Deus...e nos homens!

   Dou-te a mão, Princesa

                                                    Camilo Maria

                        

Camilo Martins de Oliveira

AMIZADE

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Tenho para mim que a desilusão profunda em relação a uma amizade, só depende das expectativas elevadas - e mesmo carinhosas e protectoras -, que nela possamos ter empenhado, muitas vezes, com o desejo e a aspiração de, com elas, ajudarmos alguém a abrir caminhos fechados, mas que na altura certa, abrimos ao nosso amparo, à nossa partilha do que brilha na nossa vida e oferecemos como luz.

A amizade também pode ter este ângulo por entre outros. Assim, não se concebe sequer que o receptador mais beneficiado de uma amizade deste suco e cujos anos solidificaram, venha um dia a perder a visão da experiência extraordinária que lhe foi proporcionada, e, nivele, ao nível do chão tudo o que afinal tinha aceitado como fazendo parte de um inconfundível e irrepetível estar.

Tenho para mim, por outro lado, que o amigo não nos engana, fala-nos com verdade, e nós acompanhamo-lo com imparcialidade terna e tão lúcida quanto formos capazes.

A amizade é uma filigrana de encontros, ainda que possam esses encontros deparar-se com um “benefício” maior para uma das partes. Enfim, faz parte da vida que assim seja, sem que se avalie ou pese a eventual desproporção quando exista. Enriquecer e crescer em conjunto, tanto afectivamente como intelectualmente, deve ser também um propósito da amizade.

Contudo, às vezes, o milagre dos encontros da amizade turva-se. Seja para nos esclarecer ou não, este acontecimento magoa profundamente.

A amizade pressupõe a estabilidade de um porto seguro e, se nalgum momento ela carece de algum esclarecimento, nunca o mesmo chega pela via da maledicência temperada pelo exagero das inverdades.

Superar uma ou outra crise dentro de uma amizade verdadeira, faz parte do melhoramento que constitui a travessia difícil deste afecto. Mas nunca, nunca se suja o bom nome e o bom sentir nas costas do amigo. A amizade não é algo de circunstância, não é um «como estás, há muito que não te via». Ao contrário, o amigo, quando nos encontra, ilumina-se, talvez porque olha o nosso passado e o dele, o nosso futuro e o dele, com a comum óptica de se identificar com o cerne das coisas partilhadas.

Todavia, existe também uma amizade que chamaria de granulada. Esta carece de minimizar o amigo se este lhe é superior. Esquece esta tipologia de amizade que deveria estar prevista e punida pelo código da moral de cada um, e que na amizade não há lugar para o poder miserável da mais mísera maldade. Na amizade, os amigos são magnânimos um para o outro e instintivamente expulsam tudo o que possa perturbar esta grandeza.

Diria mesmo que o encontro com a amizade, interrompe a trama aviltante da vida quotidiana e por essa razão não lhe assiste a maledicência que agride o ausente como se deste modo se evidenciasse a virtude que afinal se não tem.

Um amigo nunca dirá mal de nós. Se alguém o fizer, ou nos defende, ou retira-se para sempre de perto da pessoa que ousou. De resto, diga-se que quem tenta destruir uma obra como a da amizade, sabe aviltar o linho em estopa reles.

A amizade também não exerce represálias, nem contém o sentimento da vingança. Mas, infelizmente há quem confunda a amizade com qualquer outra coisa. Desconheço qual é essa outra coisa, sei apenas que a amizade é um ideal real que nasceu para o merecermos e conquistarmos, para que o mundo se encha de amigos e estes, ao verem-se, sorriam.

Partilhar na amizade a nossa vida privada, é tão só a expressão de uma viagem a dois, mas uma viagem que permanece dentro da palma da mão, secreta, pois que constitui a privacidade do amigo que abraçámos.

Com o passar dos tempos, nós mudamos, os nossos problemas mudam, mas se encontramos o Ser que encarna a amizade de sempre, temos a impressão de que o encontro último foi ontem, que não houve intervalo, nem falta de mão, nem de abraço e o olhar estende-se e não há nada de semelhante na nossa experiência quotidiana.

Assim a amizade é também motivo da lágrima encantada se expor. Por ela se fará o trânsito de um afecto tão sólido quanto dependente de uma linguagem do sentir, única, e necessária como um copo de água à cabeceira da vida.


Teresa Bracinha Vieira
    (Publicado em 2005)

 

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