Saltar para: Posts [1], Pesquisa [2]

Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

ATORES, ENCENADORES - LII

 

teste.jpg

 

O ESPETÁCULO NO ‘TEATRO DE CORDEL’

 

Voltemos à dimensão e evolução histórica do espetáculo em Portugal.

O século XVIII contem um paradoxo: de um lado, as peças referenciais no que respeita à expressão dramática propriamente dita e à simbiose com o teatro geral da literatura, de certo modo cai, ou torna-se marginal. Os grandes criadores literários da época dedicam ao teatro uma atenção algo marginal, com poucas exceções: António José da Silva, ou o esquecido Manuel de Figueiredo contrastam com esse relativo desinteresse pela criação dramatúrgica - e mais ainda contrastam entre si pela qualidade cénica e dramática dos textos respetivos, com o indiscutível destaque de António José.

Mas os restantes dramaturgos da época, mesmo quando assinaláveis em termos literários - Pedro António Correia Garção, Domingos dos Reis Quita, António José da Cruz e Silva, Domingos Caldas Barbosa e outros menores - não produziram no teatro obras de especial relevo e perenidade. E no entanto, estamos na época de afirmação das Arcádias - a Arcádia Lusitana ou Olissiponense, fundada em 1756, a que se seguiria a menos expressiva Nova Arcádia, que dura até à transição do século.

Só que esta situação coincide - mas não se concilia! - com os aspetos digamos quantitativos da produção dramática da época, e ainda menos com o desenvolvimento de estratificação da afirmação dramatúrgica na sociedade e na produção literária convergente. Isto, apesar de Correia Garção, nas “Dissertações” produzidas na Arcádia Lusitana em 1757, ter definido aquilo a que já chamei um “teoria geral Árcade” sobre a arte dramática, com pontos precisos e rigorosos, a saber:

- não “ensanguentar” o teatro, isto é, não representar diretamente cenas violentas, mas apenas narra-las;
- conduzir o espectador ao desfecho de forma lógica e encadeada;
- provocar no espectador a “paixão e o terror”;
- despojar a cena, homogeneizar o perfil psicológico dos personagens;
- em suma “educar” através do teatro.

Quer dizer: verificamos neste período da História do Teatro Português como que um paradoxo: por um lado, a literatura dramática em si mesma, com as relativas exceções acima referidas, torna-se algo escassa e marginal no conjunto e no contexto das obras dos grandes autores de referência. Mas por outro lado, a produção de espetáculos e de textos para espetáculo ganha uma dimensão sem precedentes.

E é aqui que entra o chamado Teatro de Cordel.

Trata-se de um movimento editorial e de espetáculo que, na época, terá atingido algo com cerca de 500 títulos, entre originais e traduções/adaptações, representados ou não, mas divulgados em pequenas publicações. Como diz Nicolau Tolentino na sátira “O Bilhar”:
“Todos os versos leu da Estátua Equestre/ E todos os formosos Entremeses/ Que, no Arsenal, ao vago caminhante/ se vendem a cavalo num barbante”…

E veja-se a nota que surge na edição de uma comédia anónima intitulada “A Amizade em Lance”:
“Na mão de Romão José cego, na esquina das casas dos Padres de S. Domingos no Rossio, voltando para a Praça da Figueira, ou em sua casa”.

Ora bem: muitas destas peças foram representadas, mas poucas merecem hoje referência. Podem-se alinhar, no contexto do teatro português do século XVIII, dezenas de dramaturgos, a maioria hoje mais ou menos esquecidos, e centenas de peças escritas, encenadas e representadas por numerosíssimos atores e atrizes, de que registamos ainda hoje alguns nomes: António José da Penha, Francisca Eugénia, João Inácio Henriques, Vitorino José Leite, Joana Inácio da Piedade, José António Ferreira, Cecília Rosa de Aguiar, Pedro António Pereira, e obviamente tantos mais…

E há que considerar a heterogeneidade de temas, de espetáculos e de funções. Veja-se por exemplo o caso de Nicolau Luis da Silva, nome dominante da produção teatral da época, no Teatro do Bairro Alto, onde desempenhou particamente todos os trabalhos de produção de espetáculo. Dele escreveu José Maria Costa e Silva, citado por Inocêncio F. da Silva no “Dicionário Bibliográfico Português” (tomo I):
“Morava no fim da Rua da Rosa, toucado com uma cabeleira de grande rabicho, que ninguém viu na rua senão embuçado em capote de baetão de toda a roda, notável pelo desalinho e desmazelo do seu vestuário, trazendo consigo um grande cão de água, que o acompanhava sempre, e sorvendo repetidas pitadas de simonte, com toda a placidez e majestade catedrática…”. Assim mesmo!

Em suma: tal como escreveu José Oliveira Barata na “História do Teatro Português”, “a monotonia temática que por mais de uma vez já foi evocada para justificar um menor interesse pelo estudo da literatura de cordel, é apenas aparente, como que a querer confirmar o duplo e complementar eixo de análise que o século XVIII sempre nos propõe. Diversificada entre folhetos que nos falam de relações de monstros, práticas fantásticas, dissertações joco-sérias sobre os mais variados assuntos, prognósticos, lunários perpétuos, epístolas e diálogos, avulta no entanto a produção teatral”.

DUARTE IVO CRUZ