VIAJAR E VER
- MALDIVAS
Em pleno Oceano Índico, agrupadas em vinte e seis atóis, mais de mil pequenas ilhas de coral estendem-se de norte a sul, de oeste a leste, a sul da Índia e a sudoeste do Sri Lanka, no continente asiático. Habitadas, umas, tornadas estâncias turísticas, outras, a maioria são desabitadas, vivendo a população essencialmente da pesca e turismo.
Estas ilhas, conhecidas por Maldivas, são tidas como um destino tropical, um paraíso no coração do Índico que ainda conserva o seu estado natural, onde o profundo azul do mar se abraça com recifes turquesa, praias de areia branca e palmeiras, onde o sossego, desportos náuticos e subaquáticos campeiam. Eis o seu cartaz turístico por excelência, com clima convidativo todo o ano, mesmo em época baixa, haja chuva ou uma descarga tropical tempestuosa e concentrada.
Foi numa das suas ilhas, com resort e spa, que descansei e saboreei umas férias em família, contemplando e usufruindo a natureza, num espaço térreo com menos de mil metros de comprimento e duzentos de largura, de infraestruturas turísticas e de lazer com qualidade, onde o mar, na sua imensidão, domina, e o sol, na sua inacessível altitude, ilumina. Mar e sol conjugam-se e entreajudam-se numa infinidade que esmaga a pouca terra da terrinha em que sobrevive o ser humano. Antepõem-se, coagem, ditam as suas regras à pequenez terrestre que aí subsiste, até quererem, mesmo quando artificialmente prolongada, por obra humana, mar adentro, em apelativas habitações, pontes e passeios marítimos. Wellcome, Hello, Have a nice day, Enjoy it, são frases feitas, acolhedoras e simpáticas, que de tão repetitivas se tornam banais, dando azo a uma sensação de fuga, a um não querer ouvir mais, com efeito inverso ao desejado. Por maioria de razão num espaço insular, onde o excesso é mais sentido.
Eis-me, assim, neste mais mar que terra, rodeado pelo Índico que foi Mar Português, em tempos idos, aquando do achamento das Maldivas pelo primeiro europeu e navegador português Simão de Andrade.
Japoneses, chineses, sul-coreanos, de Taiwan e Singapura, eram as nacionalidades mais representativas, numa percentagem maioritariamente significativa de asianos (a que não é alheia a proximidade geográfica), por confronto com uma proporção menos relevante de ocidentais e uma minoria árabe.
Os turistas asiáticos avultam e diferenciam-se. Por mais discretos que sejam, há situações em que a sua propalada discrição os ultrapassa, não passando despercebidos. Lembro-me dos magotes de japoneses, chineses e sul-coreanos, entre outros, que aparecem e desaparecem de imprevisto, em cruzeiros, em grandes e pequenos grupos organizados, em família, quais pequenas formigas e bailarinas ambulantes, que vão e vêm, concentrando-se, deslocalizando-se, reunindo-se e dispersando-se, usualmente num coletivo, pequeno ou massificado. Mesmo se cautelosos a expressarem-se, fazendo o culto da reserva e do silêncio, são chamativos pela sua quantidade, por estarem sempre presentes com condutas programadas e previsíveis entre si, captando a atenção do outro, desde logo dos ocidentais. O que é reforçado com o serem useiros e vezeiros no uso de toda a panóplia de máquinas fotográficas, câmaras de filmar, tablets, iphones, ipads, ipods, telemóveis e similares, fotografando e filmando tudo, a começar pelos próprios, num rodopio constante, tantas vezes exaustivo, interrogando-me se é inerente à sua essência, ou se mais narcísico que agradável. Também aqui é flagrante o contraste entre uma aparente discrição no falar e passar entre os pingos da chuva e a indiscrição entre o uso e abuso de toda a gama de novas tecnologias, que de tão usadas, exibidas e fruídas, se tornam inconfidentes. Alguns modos e usos eram desproporcionalmente chamativos, dada a desproporção do tamanho dalgumas câmaras com a estatura dos donos, tendo o seu máximo chamariz num jovem casal de anões. Por vezes sucede o inverso, de tão minúsculas que são, tornando-se indiscretas para um observador que se preze. Em qualquer circunstância, filmam-se e fotografam-se exaustivamente, numa aparente verosímil e perene compensação do ego, o que factualmente se evidencia.
Qualquer caricatura que os caricature, não pode ocultar essa particularidade, dado que, por um lado, os individualiza, mas cuja mentalidade grupal, por outro lado, o permite, porque uma conduta aceite e universalizada por todos.
Sintomático que num dia meio chuvoso, cinzento, encoberto e não solar tenham exigido, em grupo, a feitura dum cruzeiro de barco para ver o pôr-do-sol, alegando ser parte integrante do pacote turístico, não aceitando adiamentos ou compensações, mesmo não surtindo efeito útil, dada a sua impossibilidade, ao invés doutros turistas, nomeadamente ocidentais. O que não impediu manifestações pontuais e inconfidentemente originais, à revelia da pressão do grupo e dos outros, revelando-se contra um comportamento geral tido como de postura e etiqueta social, como numa estudada e ostensiva sessão fotográfica duma meneante e sensual linguagem corporal recíproca, entre uma beldade nipónica e um impudico assistente driblador dos trópicos. Em analogia com uma sessão de modelos, num seleto espaço paisagístico, por entre reflexos cromáticos refletindo os efeitos solares incidindo no mar e águas de uma elegante piscina estrategicamente situada. Numa ousadia para os costumes, tradições e religião dos locais, mas não, ao que parece, sendo turistas estrangeiros, numa ilha desabitada por nativos.
Mas se a maioria destes orientais não se cumprimentavam com beijos na face, nem se abraçavam ou davam as mãos em público, essa quase inexistência de contacto físico é suprida, em opulência, com manifestações de afeição e carinho entre casais em viagem de núpcias e recém-casados, em condutas análogas às dos seus pares ocidentais, fazendo-se filmar e fotografar em poses alusivamente explícitas, que o ambiente natural e humano envolvente incentivam. Como que a desejarem prender e possuir a beleza do momento e do lugar. Estas paragens e paisagens são pródigas e propícias a esse nível, aliando à qualidade e limpidez do seu estado natural, uma intervenção humana amiga do descanso e sossego, para quem o queira apreciar e saiba experimentar.
Todavia, há em todos estes viajantes asiáticos uma ocidentalização no vestuário, desde a roupa diária, à de praia, piscinas, de desportos, corroborada pela adaptação ao modo funcional e prático das refeições, demais lazeres e relacionamentos.
Ao inverso dos turistas árabes, onde sobressai uma permissiva ocidentalização masculina no vestir e outras condutas, por oposição às proibições femininas. Embora em minoria, por mais discretos que sejam ou tentem sê-lo, também nunca passam por não notados. Em especial pelo flagrante contraste entre a informal maneira de estar dos homens, e as impositivas regras islâmicas no uso imperativo da burka, para as mulheres, sempre cobertas de negro, da cabeça aos pés, não frequentando praias ou piscinas em fato de banho, não conversando nem se relacionando com estranhos. Nos restaurantes a mesa era escolhida estrategicamente, o mais isolada possível, onde a mulher fica sentada de costas para os demais, com exceção do marido, em frente do qual, e tão só, destapa o rosto para comer, levantando o véu o estritamente necessário, protegendo-se de ser vista pelos outros. Viajando de barco, passeando ou sentando-se no areal, indo ao spa, iam sempre acompanhadas e de burka, apenas os olhos e pontualmente as mãos se visualizando. Curiosamente, não vi nenhum árabe fazer gala do seu vestuário tradicional, antes se vestindo à ocidental, não esquecendo o fato de banho.
Sendo os ocidentais mais liberais, e sendo todos os usos e costumes adaptados e filtrados consoante o lugar, as pessoas, o contexto situacional e o que é esperado pela sociedade, de igual modo as Maldivas não são exceção. Tendo como religião principal o islamismo, que proíbe vestuário feminino sensual e a venda de bebidas alcoólicas, constata-se que tais interdições não fazem lei para as não nativas, nestas estâncias turísticas construídas em ilhas inabitadas por locais. Os empregados são quase todos homens, na cozinha, restaurantes, bares, arrumação e limpeza de quartos, ruas, caminhos, piscinas. Mulheres laborando, só pontualmente, e não locais, pelo que vi. Por exemplo, de regresso, do resort até um aeroporto local, fomos auxiliados por uma jovem da Bielo-Rússia. Predominando jovens tailandesas no spa, aqui e ali uma ou outra indiana, filipina, ou quejanda. Em ilhas habitadas em permanência as autóctones laboram nos check-in/out de aeroportos, como hospedeiras de avião, etc, de roupa funcional e rosto descoberto. E apesar dos muitos emigrantes a trabalhar nas Maldivas, da Índia, Sri Lanka, Nepal, Bangladsh, em comunhão com trabalhadores locais, incluindo temporariamente estudantes-trabalhadores, são percetíveis alguns olhares arregalados, quando não lascivos, bem como comentários ininteligíveis a ocidentais.
Alguns, na sua presunçosa virilidade, são infantilmente ridículos, mesmo que não ofensivos. Proibir sim, mas só para as locais, guardando-as de contágios alheios.
Portugal, para os indígenas com que falei, equivale a Cristiano Ronaldo, prova consumada da globalização e popularidade megalómana do futebol. Só um interlocutor, emigrante nepalês, foi mais longe, revelando ténues conhecimentos das antigas estadias e heranças dos portugueses por aqueles mares e terras. Foi gratificante constatar numa listas seleta de vinhos, num restaurante selecionado, um tinto, um branco e um rosé de Portugal, além dos já clássicos vinho do Porto e da Madeira. Um produto com futuro, a que não é exógeno o facto de estarmos entre os dez maiores exportadores mundiais, com tendência ascendente. Refira-se, ainda, uma seleção diária, em folhas A4, de notícias em português, a par do inglês, francês, castelhano, alemão, italiano, chinês e japonês, atestando a internacionalização e universalidade do nosso idioma. Anote-se reagir-se com simpatia ao nosso país e à nossa nacionalidade.
Como país mais plano do mundo, tendo como capital Malé, pequena cidade incaraterística, tenta atrair investimentos, o que tem conseguido pelos baixos custos de implantação e de mão-de-obra, aliados às suas potencialidades turísticas, levando multinacionais do ramo a aí se instalarem, sendo marcante a diferença entre ilhas de turismo (despovoadas e apropriadas para turistas) e povoadas (por nativos, bem mais pobres e menos apelativas). Apesar do estado natural e sua preservação, descanso e sossego, não poluição e atmosfera pacífica, não vi aproveitamento energético via painéis solares, o que é um desperdício num local onde o sol é companhia permanente.
Para amantes de sol e praias exóticas e de um doce, pessoal e reservado sossego, são as Maldivas potenciadoras de uma experiência inesquecível. E uma atração e mais-valia para os apreciadores e profissionais de mergulho subaquático, dada a visibilidade e temperatura debaixo de água, vida marinha e suas mudanças, os afamados corais, sem omitir o snorkeling, jogos de pesca, lições de desportos aquáticos, entre outros eventos. Por entre mar e terra, paisagens puristas, habitações integradas em belíssimos cenários, muitas delas sedutoramente implantadas sobre o mar.
Pese embora algumas reclamações por ausência de uma certa agitação musical e social para jovens adultos, conjugada com alguma dificuldade em socializarem momentos em grupo, foram um privilégio estas férias em família, no mais pequeno país asiático, reforçado por possíveis em conjunto, mais um ano, tanto mais que, pela evolução natural das coisas, as gerações mais novas tendem a autonomizar-se, voando cada vez mais alto.
Impressões pessoais das Maldivas, em Agosto de 2014
Texto revisto em 01 de Dezembro de 2015
Joaquim Miguel De Morgado Patrício