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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

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CARTAS DE CAMILO MARIA DE SAROLEA

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   Minha Princesa de mim:


   Estes tempos de reclusão, mais do que manter-me no interior de casa, vão-me abrindo horizontes no interior de mim. São ocasião de reflexão, de memória, de meditação, como de atenção a vozes misteriosas, algumas quiçá incómodas, mas sobretudo a silêncios que, afinal, também falam. Todavia, dias há, como hoje, em que fecho os olhos e viajo. Dou passeios bonitos, visito lugares onde descubro, no que já tinha visto, tantas coisas em que, então, não atentei, mas ficaram escondidas na minha lembrança. Para te distrair também, conto-te a volta que acabei de dar contigo pelo Nijo-jo, em Kyoto.

   Chamam-lhe castelo ou fortaleza, será palácio fortificado, é sobretudo um símbolo, um aviso, um edifício político. No século XV, as guerras entre clãs e senhores feudais, como a famosa Onin (1467-77) levaram à proliferação de castelos pelo Japão, e essas construções foram-se fazendo maiores, mais imponentes e resistentes, respondendo assim ao acrescido poder de ataque que as armas de fogo, introduzidas com a chegada dos portugueses em 1543, representavam. O exemplar, existente ainda, mais conhecido desse estilo de novos castelos será o de Himeji, cuja construção foi terminada em 1609. Visitei-o, tal como os seus coevos de Kumamoto, Matsué, Inuyama e Maruoka, e outros ainda, incluindo os que, como o de Osaka e Nagoya, são hoje reproduções dos que foram destruídos. Lembro-os por contraste com o Nijo-jo, que, ao invés, não é, como estes são, uma fortificação podendo albergar a família de um daimyo, ou senhor feudal, mas tendo sobretudo funções bélicas, pois será o bom sucesso na guerra que assegurará o domínio do senhor e seu clã sobre um território, esse onde, em sítio estratégico, se ergue aquele baluarte militar e símbolo de força e poder. O Nijo-jo é um shoin, no sentido de residência nobre ao estilo que começou a desenvolver-se em finais da era Ashikaga, sensivelmente pelo tempo da chegada dos portugueses. Os últimos shogun Ashikaga, aliás, tal como Oda Nobunaga  --  que iniciou o movimento de reunificação do Japão, na 2ª metade do século XVI  --  mandaram edificar, em Kyoto, não longe do palácio imperial, os primeiros Nijo-jo de nome, depois destruídos, tendo um deles, todavia, sido minuciosamente descrito pelo padre Luís Fróis. Tais palácios davam-se ares de fortaleza, erigiam-se, no centro da capital imperial, como sinais do alto estatuto e do poder do generalíssimo. Eram profetas de um novo Japão, opunham-se à caduca grandeza do poder feudal.

   O Nijo-jo que hoje vou visitar contigo construiu-se a mando do primeiro shogun Tokugawa, Yeasu, cujo castelo e sede de governo se situava em Edo (que viria a chamar-se Tokyo, ou capital oriental, quando ali se estabeleceu o imperador Meiji, depois da "restauração" de 1868), para sua residência em Kyoto quando visitasse o imperador que lhe conferira o título de Seii- tai-shogun, ou Grande condestável aniquilador de bárbaros. Foi concluído em 1603, mas restaurado e aumentado entre 1624 e 1626, pelo neto de Yeasu e terceiro shogun Tokugawa, Iemitsu, para quando recebeu a visita, de cinco dias, do imperador Gomizuno-o que entretanto, em 1620, tomara a irmã mais nova de Iemitsu, Masako, por sua mulher oficial. O Nijo-jo torna-se assim, mais do que a residência dos shogun Tokugawa em Kyoto, capital imperial, no símbolo da aliança dessa dinastia de condestáveis e chefes do governo à família e instituição imperial que lhe legitima o poder. E assim será por 240 anos, até à restauração Meiji.

   Antes de entrarmos e vermos por dentro tão magnífica residência, deixa-me só brincar contigo um nadinha sobre essa designação de shoin que, no caso da nossa presente visita, se refere à grandiosa morada de um condestável, com pesado significado político e militar, na vizinhança do palácio imperial... Sempre me intrigou isso que chamamos evolução semântica, precisamente pelas variações semióticas dos nomes que damos às coisas... Variedades que vão reflectindo situações diversas e relações conformes, tantas associações que a nossa mente vai inconscientemente fazendo. Dizem os entendidos que shoin era o nome dado, na antiga China, aos edifícios ou salas que os imperadores cediam ou arranjavam para os estudiosos que os serviam; no medievo Japão, até à época das residências ou palácios que nesta carta nos entretêm, o termo designava a cela ou gabinete do monge budista, com a mesa onde escrevia, e mesmo a varanda que o abria ao carinho e conselho da mãe natureza. Mas, nessa mesma época, guerreiros e senhores, nas suas residências, reservavam quartos shoin para calmamente se entregarem à leitura dos clássicos, mais tarde transformando-os em divisões maiores e mais decoradas, para aí acolherem convivas ou comparsas de meditação e discussão. Adiantando, o shoin acabou sendo a habitação do fidalgo ou guerreiro que se resigna ou a residência do shogun que aguarda e acolhe quem lhe vem prestar vassalagem. Durante os dois séculos e meio (quase) de governo dos Tokugawa, os daimyo, senhores feudais, deviam deixar os seus castelos, por alguns meses ao ano, para residirem nas suas casas em Edo, perto do shogun. E quando aí não estavam, lá deixavam um familiar como garantia de bom comportamento, não fosse o diabo tecê-las... E para que percebessem bem quem, revestido da legitimidade conferida pelo imperador celestial, mandava neles, também iriam a Kyoto, ao Nijo-jo, prestar vassalagem. Ideias talvez minhas, Princesa de mim também, que a ti só posso confidenciar... Quiçá sem me enganar muito! Muito mais interessante, verás, é, no shoin Tokugawa de Nijo-jo, a semiótica da decoração dos interiores.  

   Os nobres visitantes desciam dos seus palanquins depois de atravessarem o kurumayose, imponente portão de entrada, decorado no topo com frisos de madeira trabalhada e colorida. Daí passavam ao tozamurai, pavilhão de recepção, onde deixavam a sua escolta, que ali ficaria a aguardá-los. Mas também eles próprios, como qualquer correio que igualmente viesse a ser recebido pelo shogun, em compasso de espera por lá se quedavam, nestas três salas onde agora, no século XXI, estamos nós os dois a admirar as lindíssimas pinturas, sobre paredes e divisórias, de bambus e tigres ferozes. São obra de artistas da célebre escola de Kano, que se esmerou a tornar impressionantes esses felinos, destacados sobre um fundo dourado, a lembrarem aos presentes a força do poder... Já as sete salas seguintes estão decoradas com pinturas, pelos mesmos Kano, de flores e pássaros: destinavam-se elas aos guardas do próprio shogun, e ao encontro deste com os portadores de mensagens. Ambiente  mais acolhedor, portanto.

   Passeantes doutra era, passamos agora ao terceiro pavilhão, o shikidai, vestíbulo e sala para cumprimentos formais, onde admiramos os magníficos pinheiros mansos pintados por Kano Tanyu, jovem ainda com vinte e poucos anos, neto de Kano Eitoku, pintor de biombos nambam. Ei-los aqui, esses pinheiros, símbolos que são de autoridade legítima e sua pertinência e persistência. Decoram também o pavilhão seguinte  --  o quarto edifício contíguo, dos sete dispostos como gansos que se ordenam em voo de bando  --  o ohiroma, grande salão de audiências, com destaque para um pinheiro maior, quase monumental, ao fim do jodan, ou piso ligeiramente mais elevado, onde se sentava o shogun, encarando daí os senhores vassalos ajoelhados à sua frente, no gedan, um pouco inferior. Outros pormenores de decoração vão definir significações políticas: os pinheiros, no grande salão de audiências, impõem-se, como símbolo de autoridade legítima, aos vassalos visitantes, do seu lado direito e bem diante eles, nas costas do shogun; mas à esquerda deste, junto às prateleiras, e sobre as portas deslizantes dos gabinetes dos seus conselheiros, vemos aves, flores e plantas convencionais, sugerindo um shoin de tranquilidade e estudo... Dizem-nos que o poder tem também esfera própria, está acima, sim, mas não só pela autoridade imposta. Não tem apenas assento militar, tem estudo e sabedoria.

   De mãos dadas, percorremos agora o corredor das cicadáceas, o sotetsu no ma, com pinturas dessa espécie de palmeiras japonesas, que nos leva ao kuroshoin, pavilhão mais pequeno e discreto, onde eram acolhidos e conversados os fudai, senhores feudais de mais antiga fidelidade aos Tokugawa, de maior confiança e confidencialidade. Decoram as suas cinco salas pássaros e flores, e pinheiros ainda, mas lado a lado com cerejeiras e bordos, cujas cores lembram a primavera e o outono das vidas. São bem subtis os japoneses...

  E já chegámos ao sétimo, e último pavilhão, o shiroshoin, ainda mais pequeno e sossegado: era retiro e residência do condestável, envolto em pinturas ao gosto chinês, evocando montanhas impossíveis, lagos tranquilos e a indizível paz da mãe natureza. Como se o artista, depois do cansativo espectáculo da glória, quisesse o silêncio de uma qualquer verdade que o sossegue... E ocorrem-me esses versos do nosso Fernando Pessoa:

 

           Malhas que o império tece!

           Jaz morto e arrefece

           o menino de sua mãe!

 

   Ou seja: sic transit...

   Beijo-te a mão e dou-te um conselho (posso?):  nunca mais venhas de salto alto a visitas destas...

       Camilo Maria

 

Camilo Martins de Oliveira