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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

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CARTAS DE CAMILO MARIA DE SAROLEA

 

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Minha Princesa de mim:

Nestes dias em que continuo obrigatoriamente recolhido, venho relendo Nietzsche e, por tabela, escutando Wagner. Surgem-me questões e histórias diversas, talvez me tenha alertado para elas uma afirmação de Heidegger, a de que a ruptura entre aqueles dois representa, afinal, uma viragem da História...

Conheceram-se pessoalmente e tornaram-se grandes amigos em 1868, quatro anos antes da publicação, em Leipzig, da primeira obra filosófica de Nietzsche, intitulada Die Geburt der Tragödie aus dem Geiste der Musik (podes traduzir por O Nascimento da Tragédia engendrada pelo Espírito da Música) e dedicada a Richard Wagner, no mesmíssimo ano em que se colocou a primeira pedra do teatro wagneriano em Bayreuth. (Não te esqueças, Princesa de mim, de que o compositor teria a idade do pai do filósofo, entretanto falecido, o que dá outro peso psicológico à admiração deste por aquele). Dois anos antes, em 1870, já Nietzsche proferira uma conferência sobre O Drama Musical Grego, em que traçava até às artes dramáticas da Grécia antiga a linhagem das formas essenciais do teatro europeu, apesar de apontar desfasamentos de terminologia ou designações: um Heleno não reconheceria nada que corresponda à sua tragédia; muito pelo contrário, teria a impressão de que a estrutura e as linhas essenciais da tragédia de Shakespeare foram tiradas do que se chama a nova comédia ... Mas afirmara que o que um Ateniense concebia como tragédia podemos nós arrumá-lo no conceito de ópera!  Apoia-se, aliás, numa carta de Voltaire ao cardeal Quirini, e é facto que, mesmo antes, já no século XVI-XVII, quando, diz-se, a ópera nasceu em Florença, ela se reclamava herdeira da tragédia antiga, pretendia (tal como Wagner e Nietzsche defenderiam) ser uma obra de arte de síntese (Gesamtkunstwerk). Mas muitos consideram o Orfeo de Monteverdi a primeira ópera, teatro recitado e cantado, em que a música apoia a palavra e o tema, sem todavia deixar de valer por ela própria, como poderás entender por esta carta coeva de Don Cherubini Ferrari ao duque Vicente de Gonzaga:
O poeta e o compositor representaram tão bem os sentimentos, que nada há a dizer. A poesia é bela como a escolha do tema...   ... Finalmente, no respeitante à música, somos forçados a confessar que ela iguala em beleza a poesia, e que a serve tão bem que seria completamente impossível substituí-la por outra mais bela. Assim recordei o fim feliz da versão monteverdiana de Orfeu e Eurídice, sobretudo essa alegoria final do triunfo da música que é Apolo convidar Orfeu para o Olimpo... 
Levou-me esta lembrança a pegar numa biografia de Monteverdi, escrita por Maurice Roche para a colecção Solfèges, da Seuil, em 1959: Quanto a Monteverdi, preocupa-se antes de mais com sublinhar o carácter das personagens e as mudanças de situação; para fazê-lo, os meios que emprega, apesar de sumários, são revolucionários e proféticos. Assim, cada intervenção é marcada por uma modificação da tonalidade e do aparato orquestral; cada personagem se reveste da sua própria cor instrumental. Quer isto dizer que a música também dá fala às personagens, aos seus sentimentos e emoções, às situações que vão enfrentando...

De Wagner músico deve, em geral, dizer-se que deu língua a tudo o que, na natureza, não queria ainda  falar. Nada deveria ficar mudo. Aurora, floresta, nevoeiro, precipícios ou cumes, arrepio da noite ou luar, neles mergulha e dá ouvidos aos seus desejos secretos: eles também querem uma ressonância. Se Schopenhauer diz que há na natureza, animada ou inanimada, uma única e mesma vontade que tem sede de existir, o músico acrescenta que essa vontade quer, a todos os níveis, uma existência sonora. Isto escreveu Nietzsche sobre Wagner, o mesmo compositor que o filósofo comparava a uma floresta em pleno crescimento, um surto de forças extremamente diversas que, longe de se empurrarem umas às outras para a sombra, mutuamente se equilibram, de tal modo que se podem erguer todas juntas para formarem um todo...
Este seria o Wagner muito admirado, o mesmo que Nietzsche -- quando acreditava na exemplaridade histórica da música alemã, fruto do sofrimento do povo germânico -- considerava o poente incandescente de uma rota astral de que Bach era o nascente e Beethoven o zénite. Curiosamente, é no próprio texto da sua IV Consideração Inoportuna,  intitulada Richard Wagner em Bayreuth  -  que também é notícia congratulatória da primeira pedra daquele teatro em 22 de Maio de 1872  -  que já encontro as razões ou sentimentos pessoais que levarão o filósofo a afastar-se do compositor. Este dissera então, a dado passo do seu discurso, transcrito por Nietzsche: Só vos tinha a vós, amigos da minha arte, da minha obra e da minha criação mais própria, para quem me voltar a fim de encontrar participantes nos meus projectos: só a vós podia pedir o concurso necessário à minha obra, para a apresentar pura e não desfigurada àqueles que pela minha arte testemunham uma inclinação sincera, mesmo que ela não tenha podido ainda ser-lhes apresentada senão em forma impura e desfigurada.
Nietzsche pressentiria, nessa tarde em que acompanhara Wagner, o início de nova era na história da arte.

Escreve: Nenhum presságio, nenhuma transição, nenhum intermediário anunciara um empreendimento como o de Bayreuth; ninguém mais, além de Wagner, conhecia a lonjura do caminho a percorrer até ao fim, nem qual seria o fim. É o primeiro périplo à volta do mundo no domínio da arte; e, segundo qualquer aparência, não foi só uma arte nova que foi descoberta, mas certamente a própria arte. E, adiante, exortava: Quanto a nós, discípulos da arte ressuscitada, teremos tempo e vontade do sério, do sério profundo e sagrado...   ... "Fazei silêncio e sede puros! Fazei silêncio e sede puros!" Só sendo aqueles que escutam esta voz, só assim, conseguiremos essa amplidão do olhar com que devemos contemplar o acontecimento de Bayreuth: é só nesse olhar que este acontecimento está prometido a um grande futuro! Mas por ocasião do primeiro Festival de Bayreuth  --  que, aliás, também desgostou Wagner, não só pelo sarilho financeiro que foi, mas pela fraca qualidade que lhe achou  --  Nietzsche considera que o compositor terá começado a conciliar-se com pietismos cristãos e, sobretudo, com o novo Reich, cujo imperador era Guilherme I. Cheira-lhe a nacionalismo germânico, quiçá eivado de romantismo histórico, num sentido que retira à música de Wagner a legitimidade dionisíaca que a tornaria, e à música alemã, no arauto da arte restaurada contra a forma apolónica... E ainda não sabia, quando já se afligia com o que considerava serem as concessões de Wagner  --  que já conhecia a glória  --  ao nacionalismo e antissemitismo germânicos, assim traindo a afirmação trágica do sofrimento, essa a que Gilles Deleuze, muito mais tarde, chamaria laceração dionisíaca, ainda não sabia, então, que, depois de morto ( em1900), a sua irmã Elizabeth, defensora das teses da pureza ariana, e detentora dos direitos sobre a sua obra, que desvirtuaria a seu gosto, o tornaria, com apoio e subsídios de Hitler, no filósofo do nazismo, a ele que toda a vida detestara o nacionalismo alemão, o socialismo e o antissemitismo... 
Ora, como acima te conto, Princesa, para Nietzsche, a obra wagneriana de Bayreuth deveria ser o lugar geográfico, teatral, musical e cultural desse ressurgimento da arte dramática, que ele já defendera em O Nascimento da Tragédia, obra dedicada a Wagner. Como já terás lido numa qualquer biografia de um ou de outro, em Outubro de 1873, Nietzsche escreve o seu Apelo aos Alemães, em que reafirma: Os responsáveis políticos da prosperidade alemãencontrarão aí [na renovação das artes alemãs que Bayreuth incarna] a ocasião capital para tomarem em consideração a necessidade que o povo tem, hoje mais do que nunca, de ser purificado e consagrado pela magia sublime e temível da arte autenticamente alemã, a menos que a paixão nacional e os instintos políticos violentamente desencadeados, assim como as marcas que, sobre o rosto da nossa vida, traça a perseguição da felicidade e do prazer, imponham à nossa posteridade o reconhecimento de que nós, os Alemães, começámos a perder-nos quando, finalmente, nos tínhamos reencontrado.
O sublinhado é meu, a intuição de Nietzsche, sessenta anos antes do triunfo nazi na Alemanha, quarenta e cinco antes da derrota na 1ª Grande Guerra, e dezassete antes da sua própria morte, é profética e surpreendentemente certeira.  E o Apelo, que se destinava a publicação pela comissão organizadora do Festival de Bayreuth, foi afinal rejeitado pelos delegados das organizações wagnerianas. Ora, começa aí o desentendimento que levará ao posterior Nietzsche Contra Wagner, desencontro que eu talvez consiga resumir (sem esgotar, claro) recorrendo a ambos os intervenientes. Também o compositor pensava que escolhera aquele lugar para iniciar a restauração da arte dramática alemã, e escreveu: Nenhuma arte exerce sobre a imaginação e os sentimentos de um povo uma influência tão poderosa como os espectáculos dramáticos quotidianos. Se temos boas razões para duvidar de que a influência extremamente problemática do teatro na Alemanha se deve ao estado moral da nação, e se além disso reconhecemos que o resultado actual dessa influência é, ele mesmo, consequência de um gosto público falseado, devemos, pelo contrário, proclamar, bem alto e insistentemente, que é dever imperioso dirigir e apoiar energicamente o teatro que tende a depurar o gosto e os costumes necessariamente influenciados por tal gosto. E o facto de termos despertado a atenção dos chefes da nação para estas considerações não me daria a menor satisfação, se tal pudesse ser o resultado do empreendimento que acabo de anunciar. E esse será o apoio do público alemão e o primeiro festival, com a representação da Tetralogia, iniciada em 13 de Agosto de 1876, na presença do imperador Guilherme I.

Wagner sabia, com realismo, que precisava do apoio político, institucional, financeiro e popular para a realização do seu projecto. Mas Nietzsche era um incondicional da superioridade e força das ideias, não poderia deixar de repetir o que acima te referi :" Fazei silêncio e sede puros!". Por isso também começará o seu Apelo afirmando que é como sentinela que vigia e fala. É no seu Ensaio de Autocrítica, antecedendo, em O Nascimento da Tragédia, a Dedicatória a Richard Wagner, que ele se interroga: Sim, o que é o dionisíaco? ...   ... A questão fundamental é a da relação que o Grego tem com a dor, e o seu grau de sensibilidade. Manteve-se essa relação? Ou terá sido invertida? A questão é saber se a sua  procura sempre crescente de beleza, de festas, de alegrias, de cultos novos, nasceu da carência, do despojamento, da melancolia, da dor... Donde proviria então a procura oposta, e que lhe é cronologicamente anterior, a procura da fealdade, essa maneira franca e rigorosa que o antigo Heleno tem de querer o pessimismo, o mito trágico, a imagem de tudo o que é cruel, enigmático, destruidor e fatal no fundo da existência, --  donde proviria então a tragédia? Talvez do prazer, da força, de uma saúde transbordante, de uma excessiva plenitude? E qual será então, fisiologicamente falando, o significado desse delírio donde surgiu a arte trágica, tal como a arte cómica, o delírio dionisíaco? ... Que nos mostra essa síntese de bode e de deus no sátiro? A partir de que experiência, entregando-se a que impulso, foi o Grego obrigado a representar o possesso, o homem dionisíaco original, como um sátiro?  

Por apaixonante que seja continuarmos a leitura desse texto, pouparei tinta nesta carta, tentarei encurtá-la, dando-te a mão para percorrermos um atalho, dizendo-te apenas que, para melhor entendermos o que Nietzsche acima foi interrogando, temos de levar a sério a sua afirmação de que é a arte  --  e jamais a moral  --  que se propõe como a actividade propriamente metafísica do homem... E neste mesmo livro regressa, várias vezes, essa proposição escabrosa segundo a qual a existência do mundo apenas se justifica enquanto fenómeno estético...
Na perspectiva do jovem Nietzsche, a tragédia grega não é moralizadora, é uma resposta estética à angústia do sofrimento existencial, não é, como eu te  dizia noutra carta, acompanhar o cumprimento de um destino, é descobrir um destino cumprido. Aqui se encontram as duas forças da sua tensão dolorosa, pulsões primárias da natureza e da humanidade, Apolo e Dioniso, entre a aparência ilusória do mundo e o seu cego instinto.

Deixo-te com uma frase respigada do prólogo de Assim falava Zaratustra: É preciso ter ainda um caos em si, para dar ao mundo uma estrela dançante...

                           
                                                Camilo Maria

 

Camilo Martins de Oliveira