Saltar para: Posts [1], Pesquisa [2]

Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

CARTAS DE CAMILO MARIA DE SAROLEA

 

Monteverdi.jpg

  

     Minha Princesa de mim:

  

     Ainda o sol não tinha / trazido ao mundo o dia, / de sua casa sozinha / já a donzela saía... Assim repeti comigo, em português, a primeira quadra do Lamento della Ninfa, madrigal de amor do Monteverdi:


          Non havea Febo ancora

          recato al mondo il di

          ch´una donzela fuora

          del próprio albergo uscí.


     Sai ela para a noite ainda, a alvorada tarda. E firmando-se no chão que lhe foge, olhando o céu que não vê, pergunta a Amor pela jura feita: 

          Amor, dov´è la fe´

          ch´el traditor giuró?

 

     O mesmo segredado sopro que me lembrou o Orfeo, de que te falei em carta anterior, quando discorria sobre Wagner e Nietzsche, leva-me agora deste madrigal novamente ao Richard Wagner em Bayreuth, a esse passo em que o filósofo visionário procura arrebatadamente entender, na música do compositor cuja promessa ele tanto admira, o seu próprio impulso de um sentido moral imperativo, mais determinado pelo instinto dionisíaco da natureza humana do que por qualquer formalismo. A intuição de Nietzsche, que é uma inteligência do mundo e de si, e dessa relação, pode parecer-nos turva ou perturbada, Princesa de mim, quiçá por ser tão entusiasticamente sincera... Será longa a transcrição que te traduzo, mas elucidativa: Encontro no Anel do Nibelungo a música mais moral que conheço, por exemplo na cena em que Brunhilde é acordada por Siegfried; Wagner atinge aí uma elevação e uma santidade na emoção que lembra a incandescência dos glaciares e dos cumes cheios de neve dos Alpes: ergue-se ali a natureza, tão pura e tão solitária, tão inacessível e tão impassível, iluminada pelo amor ; as nuvens e as trovoadas, e mesmo o sublime, estão abaixo dela. Se de lá deitarmos um olhar para trás, para Tannhäuser e o Holandês, sentimos como se fez o homem Wagner: os seus começos sombrios e ansiosos, a sua impetuosa prossecução da satisfação, a sua procura obstinada de poder e da embriaguez do prazer e, muitas vezes, o seu desgosto, as suas tentativas de deitar fora o fardo, os seus desejos de esquecer, de se negar, de renunciar  --  a torrente inteira ora se precipitava num vale, ora noutro, e cavava um caminho nas gargantas mais profundas  --  na noite dessa corrida furibunda e meio subterrânea, uma estrela surgiu no firmamento, uma estrela de triste brilho, que ele reconheceu e chamou: Fidelidade! Fidelidade desinteressada! Porque brilharia ela com um fulgor mais vivo e mais puro do que tudo, que segredo encerrará a palavra Fidelidade, para todo o seu ser? Pois que em tudo o que ele pensou e poeticamente concebeu, forjou a imagem e o problema da fidelidade, há nas suas obras uma série quase completa de todas as formas possíveis de fidelidade, entre elas as mais esplêndidas e mais raramente pressentidas: a fidelidade entre irmão e irmã, entre amigos, do servo ao seu senhor, a de Elisabeth a Tannhäuser, de Senta ao Holandês, de Elsa a Lohengrin, de Isolda, de Kurwenal e de Marke a Tristão, a fidelidade de Brunehilde ao voto mais secreto de Wotan  --  para citar apenas o princípio da série. É a mais autêntica experiência original vivida por Wagner em si mesmo, e ele venera-a como mistério religioso: exprime-a pela palavra Fidelidade. Não se cansa de a exteriorizar sob mil formas diversas e, na plenitude da sua gratidão, de a cumular de tudo o que ele tem e pode de mais magnífico  --  maravilhosa experiência, maravilhoso conhecimento: uma das esferas do seu ser permaneceu fiel à outra, por um amor livre e despojado de qualquer egoísmo, a esfera criadora, inocente e luminosa, manteve-se fiel à esfera sombria, indomável e tirânica.

     E assim cheguei, hoje  --  vê tu bem, Princesa  --  ao adeus musical de Gustav Mahler, à sua 9ª sinfonia... Nesta manhã cinzenta, vem-me à memória aquela amizade reticente e a mútua admiração céptica entre Mahler e Richard Strauss, que o primeiro referiu assim: Schopenhauer fala algures da imagem de dois mineiros que, a partir de dois extremos opostos, cavam uma galeria e, naturalmente, acabam por se encontrar na sua progressão subterrânea. As minhas relações com Strauss parecem-me assim perfeitamente definidas. É curioso o recurso a Schopenhauer, também mestre filósofo de Wagner e desse Nietzsche, que ele mais tarde invocará para se diferenciar de Strauss, classificando-se, a si mesmo, como Untzeitgemäss (desactual), sendo então Strauss o Grande Actual  --  numa evidente referência às Considerações Inoportunas (ou desactuais) de que já te falei, e onde está incluído o Richard Wagner em Bayreuth...

     Mesmo que não lhe tenha dado os retoques que aplicava às suas obras por altura dos primeiros ensaios, nem  nunca a tenha ouvido  --  a estreia foi dirigida por Bruno Walter, fiel amigo, em Junho de 1912, um ano depois da morte do compositor  --  a 9ª é uma sinfonia acabada, a última obra que Mahler concluiu na vida. Há quem diga que, se a 8ª era a sua missa (não te esqueças, Princesa, de que Mahler era judeu, mas grande admirador da missa de Bruckner, como em carta antiga te contei), a 9ª foi o seu Requiem... Pessoalmente, prefiro escutá-la como Suma, no triplo sentido de resumo, sumo e cume. É  --  e assim já lhe chamaram  --  uma sinfonia de adeus, onde se recordam músicas, melodias, temas, formas, regras e inspirações, como num filme que passasse as cenas mais marcantes de uma vida. Observa Habakuk Traber que a polifonia, a saber, a arte de combinar várias vozes autónomas, lógicas em si, para delas fazer um todo com sentido e convincente, percorre a 9ª de Mahler, do primeiro ao último andamento. E verá ainda, no primeiro, andante comodo, passos de música de câmara, cantos de pássaros, tal como as formas do lied, rondo e sonata clássica. Constantin Floros, por sua vez, encontrará no segundo andamento todos os tipos de dança que aparecem na obra de Mahler: o ländler moderado, os dois tipos de valsa, o ländler lento. Note-se que eles têm tempos bem distintos uns dos outros. Mas nesse andamento surgem ainda evocações de melodias e canções populares, a recordar o sul germânico, a Boémia e a Baviera da juventude do compositor. Todas essas memórias se sucedem, na hora do adeus, num testemunho de fidelidades íntimas, de tão antigas... Depois de ter escutado uma interpretação de Claudio Abbado (Berliner Philarmoniker, Berlim, Setembro de 1999), e outra do Otto Klemperer (New Philharmonia Orchestra, Londres, Fevereiro de 1967), ouço agora uma do Leonarde Bernstein (Concertgebouw, Amsterdam, Junho de 1985). Disse este maestro   --  creio que num testemunho filmado sobre a 9ª sinfonia, Four Ways of Saying Farewell  (quatro modos de dizer adeus)  --  que para se tocar qualquer sinfonia de Mahler, é preciso dar-lhe todo o nosso coração, o nosso corpo, a nossa alma, tudo. E devemos correr riscos. É preciso ter a coragem de tocar essa última página da 9ª, em que a música morre num andar tão lento que praticamente não conseguimos segui-la. É disso que se trata. De uma desintegração. Sobre o mesmo passo, escreveu Klemperer, numa nota de programa: A resolução de toda a sinfonia, chega com o último andamento, o Adagio. Ironia, sarcasmo, ressentimento, sejam de que natureza forem, desaparecem. Apenas fica a majestade da morte  --  a morte tal como os versos de Claudius no Der Tod und das Mädchen de Schubert a mostram: "Bin Freund und komme nicht zu strafen", venho como amiga e não para castigar.

     Quantas vezes, ao longo da já longa vida, me terá ocorrido, minha Princesa de mim, que este tempo litúrgico do Advento  -- que, quiçá, já tão poucos nesta cristandade sabem o que é  --  será, talvez antes de qualquer esperança desenhada, o momento da expectativa... Quem virá aí, que misericordioso amigo nos virá dizer, a todos os homens de boa vontade, que certamente não merece castigo a íntima fidelidade de uma vida?

    
          Camilo Maria 

 

Camilo Martins de Oliveira