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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

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CARTAS DE CAMILO MARIA DE SAROLEA

 

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   Minha Princesa de mim:

 

   Porque estamos em quadra de Natal e, em tempos de incertezas e medos, nos confrontamos com raças, religiões e culturas, que já estão em nossa casa  --  e certamente inspirado pelo exemplo do papa Francisco, que não hesita em ir ao encontro dos nossos irmãos muçulmanos  --  decidi procurar, na tradição literária arábico-islâmica, textos que nos falam de Jesus Cristo, ou o põem a falar para nós. No próprio Corão, Jesus tem lugar de eleição, sendo referido três vezes mais do que Maomé mesmo. E Maria, Mãe de Jesus, é a única mulher cujo nome é ali mencionado . Vou à sura IV, intitulada As Mulheres, que fala também dos infiéis e, referindo-se a eles, diz no versículo 155: Eles não acreditaram em Jesus. Inventaram contra Maria uma mentira atroz. E logo depois: 156 - Levámos à morte o Messias, Jesus, filho de Maria, o apóstolo de Deus. Não, eles não o mataram, não o crucificaram: substituíram-no por outro indivíduo parecido com ele, e aqueles que debatiam o caso estavam, eles próprios, na dúvida. Não tinham um conhecimento preciso, tudo era apenas suposição. Não o mataram realmente, Deus elevou-o até Ele, e Deus é poderoso e sábio.  157 - Não haverá um único homem, entre aqueles que tiveram fé nas Escrituras, que não creia nele antes de morrer. No dia da ressurreição, Jesus testemunhará contra eles (os infiéis).

   Tais infiéis confundem-se com os judeus, tal como se depreende do versículo 154 do mesmo passo do Corão: Mas eles violavam o seu pacto, negavam os sinais de Deus, levavam injustamente à morte os profetas, diziam: os nossos corações estão envoltos em incredulidade. Sim, Deus selou os seus corações. São infiéis, só uns poucos ainda creem. Não arriscarei grande erro se te disser, Princesa, que o facto de Jesus ser chamado, no Corão e pela tradição muçulmana, Espírito de Deus e Palavra de Deus, atesta como, desde o início, o islamismo considerou que o cristianismo, não só se inscrevia na sucessão de Abraão, pai dos povos, como era ainda um passo mais perfeito ao encontro da revelação do Deus Único. Aliás, o islão nasce numa região povoada de comunidades cristãs, nem sempre concordantes nas suas narrativas da vida de Jesus ou quanto aos seus ensinamentos e respectivas interpretações. Eram tempos anteriores à fixação dos textos canónicos e das doutrinas dos primeiros concílios. Sobrevivem muitos textos que as exprimem, sobretudo sírios e etíopes, como, mais tarde, os bizantinos da cultura helenística. Assim se explicam também os apócrifos, designadamente os evangelhos que forneceram à piedade tradicional da cristandade cenas e motivos de devoção, como as que ainda hoje descobrimos nos nossos presépios. Do mesmo modo encontraremos paralelos entre eles e histórias e ditos de Jesus, profetas e santos, no acervo de literatura islâmica que vai do nosso século VIII (2º da Hégira) ao XVIII (12º da era muçulmana).

   Os Khalidi são uma família palestina, muçulmana, residente em Jerusalém desde o século XI. Em 1948, o avanço das forças sionistas obrigou-os a fugir da cidade santa e a procurar refúgio no Líbano. Família secular de escritores, juízes, historiadores, dedicam-se, hoje ainda, à investigação e ensino universitário, em Beirute e um pouco por todo o mundo. Tarif Khalidi, nascido em 1938, em Jerusalém, tem assim sido professor, inclusive em Harvard. E foi precisamente a Harvard University Press que publicou, em 2001, um livro do Prof. Tarif Khalid, intitulado The Muslim Jesus, onde reuniu mais de trezentos episódios e ditos atribuídos a Jesus pela tradição islâmica pós corânica. Dois dias depois do Natal, para ti, Princesa de mim, traduzo este primor, escrito por Ibn al-Hajjaj al-Balawi no nosso século XII/XIII (6º/7º da Hégira), em tempos anteriores mas próximos da Legenda Aurea de Tiago Voragino:

 

   No santuário, com Maria, encontrava-se um dos seus primos, chamado José, que a servia e falava com ela, separados por um biombo. Foi o primeiro a saber da sua gravidez, o que o preocupou e entristeceu, receando ainda que pudessem achar aquilo vergonhoso e de má reputação. Por isso disse a Maria:

   -- Maria, pode haver uma planta sem semente?

   -- Sim  --  respondeu ela.

   -- Como assim?  -- perguntou ele.

   -- Deus criou a primeira semente sem planta. Mas então poderias dizer: "Se não tivesse procurado a ajuda duma semente, isso teria sido muito difícil para Ele!"

   -- Deus me livre!  -- disse José.  -- Pode uma árvore crescer sem água nem chuva?

   -- Não sabes que as sementes, as plantas, a água, a chuva e as árvores, todas têm um único criador?

   -- Pode haver crianças ou uma gravidez sem um macho?

   -- Sim!

   -- Como assim?

   -- Não sabes que Deus criou Adão e sua mulher Eva, sem gravidez, sem um macho e sem uma mãe?

   -- Sim. Conta-me então o que te aconteceu

   -- Deus trouxe-me a boa nova duma Palavra d´Ele, cujo nome é o Messias Jesus, filho de Maria.

 

   Pensossinto muitas vezes que as tradições populares, como as visões dos místicos, são modos bonitos de contar histórias e levar-nos, despojados de nós, a uma contemplação feliz do mistério de tudo. E, não sendo pretensiosos, também ajudam à amizade dos outros. Feliz Natal, sempre!

                                                                             Camilo Maria   

 

Camilo Martins de Oliveira