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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

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A VIDA DOS LIVROS

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De 28 de dezembro de 2015 a 3 de janeiro de 2016

 

A antologia «Une Vie Écrite» de Eduardo Lourenço (Gallimard, 2015) acaba de ser publicada em Paris, com uma edição estabelecida sob a direção de Luísa Braz de Oliveira.

 

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UMA JUSTA INICIATIVA
Estamos perante uma justa iniciativa, dedicada pelo autor a sua mulher Annie, lembrando a função de exímia tradutora, como, aliás, fica demonstrado numa parte muito significativa dos textos que constituem este volume. Pode, pois, dizer-se que estamos perante uma obra escrita a duo – beneficiando os leitores das ideias do pensador e ensaísta e da fidelíssima tradução para língua francesa por uma notável hispanista, que muito bem conhecia o pensamento de seu marido e a riqueza da cultura portuguesa. Por isso, devemos deixar claro que a apresentação ao leitor francês deste notável conjunto de textos pressupõe o reconhecimento da importância da complementaridade entre Eduardo e Annie, o ensaísta e a especialista em culturas ibéricas – culturas em cujo âmbito a obra do autor de «O Labirinto da Saudade» se integra como uma das mais ricas e fecundas. O critério geral assumido por Luísa Braz de Oliveira revela-se extremamente correto, centrando-se em dois temas: a Europa e a Poesia – que permitem situar o ensaísta não só na tendência de abertura e cosmopolitismo em que é seguidor da Geração de Setenta com a atualização do modernismo de «Orpheu», mas também na compreensão, a um tempo heterodoxa e atenta às mais inesperadas particularidades de uma identidade cultural feita de inúmeros elementos, tantas vezes contraditórios… Dir-se-ia, assim, que, como incansável interrogador de mitos, Eduardo Lourenço pôde perceber o lado oculto das culturas da língua portuguesa. Basta lembrarmo-nos dos equívocos ainda presentes quando publicou no início dos anos 1970 «Pessoa Revisitado», que contrastam com a presença atual do poeta, que já não pode ser identificado com uma leitura mais ou menos unilateral da «Mensagem» ou psicanalítica dos heterónimos… E qual foi a «trouvaille»? «Bastou ler o que está nos poemas para descobrir a séria “comédia” heteronímica, quer dizer a intrínseca intertextualidade».

 

A PRESENÇA DE MICHEL DE MONTAIGNE
Comecemos pelo título desta antologia. «Une Vie Écrite» leva-nos a Montaigne e à essência do ensaísmo. Muitas vezes, injustamente, Eduardo Lourenço foi acusado de não ter obra sistemática. Só os desconhecedores do escritor podem cair nessa pobre tentação. Se dúvidas houvesse, basta lermos alguns dos textos ora reunidos. «Não há ensaísmo feliz (diz o autor). Na sua essência, é uma escrita do desastre pessoal ou transpessoal. Para ser mais justo, digamos que é uma estratégia natural de épocas calamitosas, como as de Montaigne, precisamente quando duas ordens de certezas opostas e igualmente imperiosas exigem o sacrifício do intelecto e da vontade». Se nos apercebermos do percurso do ensaísta português, verificamos como a intervenção de urgência foi importante – para demarcação de campos e para poder trilhar caminhos novos e inusitados. E não por acaso é Michel de Montaigne que surge como referência central deste encontro de textos. Mais do que um mestre da dúvida, cujo epíteto certamente recusaria, o interrogador da Torre, «nada ignorava do velho combate simbólico entre a alma com vocação eterna e o corpo com destino mortal, ou ainda mais metafisicamente, os elos obscuros entre o tempo e a eternidade». Daí que o nosso ensaísta refira que o célebre bordalês foi quem criou a primeira fenomenologia espontânea do Homem como Tempo… Por isso, Montaigne inventou a literatura em sentido próprio, do mesmo modo que criou «o exercício sem verdadeira matéria» que designamos como crítica… E aqui podemos compreender como Eduardo, ainda que no íntimo talvez tivesse gostado de ter obra mais sistemática, seguiu o caminho que Sívio Lima lhe indicou na aprendizagem coimbrã, em complemento com o magistério de Joaquim de Carvalho. No fundo, como Montaigne foi desejando trilhar caminhos incertos, multifacetados, fora de preocupação de escola, o que lhe permitiria assumir intuições que se revelariam fundamentais. Tal como Montaigne ou Bacon, perante o espetáculo das contradições e das diferenças, da fraqueza e da ignorância, o português não pretendeu reivindicar para a sua palavra qualquer estatuto divino, magistral ou dogmático. Daí os riscos da ambiguidade heterodoxa, mas a virtualidade extraordinária de procurar compreender os mitos no seu significado e nas suas limitações. «No sentido literal e em sentido profundo, há em Montaigne (diz-nos E. L.) uma autoconsciência do seu nada, que o aproxima dos grandes místicos barrocos e maneiristas».

 

POESIA, CULTURA E EUROPA
Sobre a Europa, como Vasco Graça Moura cedo compreendeu, ao promover a candidatura vencedora de Eduardo Lourenço ao Prémio Europeu de Ensaio Charles Veillon (1988), a propósito da publicação de «Nós e a Europa ou as duas razões», o ensaísta desde muito cedo exprimiu duas preocupações fundamentais – a necessidade de uma consciência europeia, capaz de ser fator de paz, de desenvolvimento, de coesão e de diversidade cultural, e a urgência de uma vontade política capaz de combater os egoísmos nacionais que foram responsáveis por trágicas guerras civis europeias com milhões de mortes. O espírito europeu que claramente se afirma desde muito cedo na obra do autor de «Heterodoxia» leva-o a ser uma voz crítica relativamente a lógica burocrática ou puramente utilitarista da Europa. «Uma Europa privada de ligações com os valores espirituais que ela criou, indiferente à sua herança e à sua riqueza cultural não seria mais que uma Disneylândia para a nossa pseudo-infância de europeus». Daí que haja uma preocupação especial ligada à Europa como cultura, a qual não poderia deixar de ser «um espaço de intercomunicação, onde se reciclasse em permanência o que houve e o que há de mais exigente, de mais enigmático, de mais inventivo na cultura europeia, concebido como uma cultura de diferenças sempre em busca do que poderíamos designar como “sabedoria”». Sem prejuízo das legitimidades nacionais, isso pressuporá a criação de uma legitimidade supranacional, que tem faltado. Não se trata de esquecer a componente funcional ou económica, nem de julgar erroneamente que Monnet teria preferido começar pela cultura em lugar da economia. Não, do que se trata é de compreender que o intelecto e a vontade têm de ser postos ao serviço de uma cultura democrática, aberta, pluralista, com poderes limitados e o predomínio dos valores da paz e da justiça. Tudo obriga a correr riscos, a começar na aceitação sem demora do desafio de sermos europeus de um tipo novo, cidadãos de uma «Europa mediadora e aberta ao mundo, porque com o domínio de si mesma»… É apaixonante encontrarmos um ensaísta que não renuncia a pôr a reflexão e a poesia em confronto e em ligação permanente – Camões, Antero, Pessoa… E compreende-se bem como o ensaio é o seu género por excelência – em nome de uma incorrigível liberdade de espírito.

 

Guilherme d'Oliveira Martins
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