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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

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CARTAS DE CAMILO MARIA DE SAROLEA

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   Minha Princesa de mim:

 

   Quando, há anos atrás, me arrisquei a traduzir cartas do Marquês de Sarolea à Minha (sua, dele) Princesa de mim (dele), nem sonhava com meter-me nesta alhada de lhe continuar o hábito epistolar e acabar indefinidamente escrevendo cartas a esta (tu mesma) indefinida Princesa de mim. Talvez deva esclarecer melhor o assunto, já que tanto insistes em limpar o teu nome e seres absolvida de qualquer eventual responsabilidade pelos meus devaneios senis... E já o fiz, sabes bem que sim, mas repeti-lo-ei ao editar em papel de livro, como tantos insistem, as cartas da minha crise. Por agora, vou dormindo sestas, e escutando-me. Sem disfarce nem traduções, escrevo-te umas cartas, relatos simples do meu pensarsentir. É sempre bom partilhar.

   E falando de partilha, deixo-te agora esta mensagem tão linda que recebi de velho amigo, feliz com a dádiva de neto seu: hoje o Rodrigo (tem sete anitos) ficou em casa, doente, e para não ser só TV mandei-o para o quarto fazer uma cópia. Assim foi, mas apareceu também com uma oração que escreveu (juro que não lhe pedi para escrever nem ajudei com nada!):

  Oração de Jesus: A vida é a melhor coisa que nos aconteceu. A vida é tudo para nós. A vida tem que ser bem aproveitada. A vida fez um favor e nós temos que retribuir esse favor. Nós agradecemos a graça e a bondade da vida.

   Sem querer meter-nos em filosofias, nem fazer epistemologia (ou seja, evitando irritar-te!...), lembro o famoso dito cartesiano: penso, logo existo. Talvez nem seja preciso pensar muito, a vida é um dado, não só no sentido de estar aí sem que eu tenha feito por isso, mas como dádiva... Assim escreveu o Rodrigo: A vida fez um favor e nós temos que retribuir esse favor.  Drogado em leituras, pensamentos e lembranças, ocorre-me um passo das Obras de António Mora (Fernando Pessoa), quando se refere ao paganismo do heterónimo Alberto Caeiro: Como o que está na inteligência tem de estar primeiro nos sentidos (aqui dito sem inútil filosofia, mas apontando apenas o facto material), o paganismo tinha que ser instintivo, de sensibilidade, antes de poder ser novamente uma ideia formada e consciente. Era preciso, para que pudesse renascer o paganismo, que começasse por aparecer um pagão. Digo-te eu: para que nasça a vida é só preciso que haja vida. Neste sentido, a vida humana é a consciência inata dela própria: vivemos e sabemos que vivemos, simplesmente porque estamos vivos. E creio que o paraíso eterno mais não é do que viver com o Deus dos vivos. O inferno não terá fogueiras nem gemidos, será simplesmente o esquecimento da vida, o nenhures dos mortos, nada.

   Todos nós conhecemos pessoas que padecem de síndromas estranhos, malefícios esquisitos, que desde meninas as retiram da vivacidade de qualquer convívio social. Não lhes falamos nem as escutamos, mas, mesmo assim, comungamos com elas na vida. Respeitamo-las, quiçá com mais sentido e cuidadoso carinho, por nelas reconhecermos a vida que nós próprios somos, porque, diz o Rodrigo, a vida é a melhor coisa que nos aconteceu, a vida é tudo para nós. A atenção ao outro, o cuidar dele, é o nosso único modo possível de, como lembra o Rodrigo, nós agradecermos a graça e a bondade da vida. Arrisco-me a dizer-te, Princesa de mim, que a alegria da vida é sempre necessariamente recíproca: na vida dos outros reconhecemos, como num espelho, a nossa própria vida. Pensossinto, mesmo, que esse é o nosso modo comum de sermos todos Mãe, essa cuja vida, apesar dos incómodos, enjoos e cuidados, se alegra na felicidade que sente vibrar no seu ventre.

   Assim termino esta carta, bem mais jovem do que quando a comecei. É certo que a doença, sofrimento e morte de tantos amigos, recentemente, me abalaram, sobretudo por me doer a dor deles, e por me faltarem, repentinamente, memórias e marcos do meu percurso nesta terra. Mas, afinal, o miúdo Rodrigo, profeticamente, veio lembrar-me de que todos temos uma única referência comum, que é a vida. Essa que, diz São João na sua epístola, se manifestou: vimo-la, damos testemunho dela e anunciamo-vos essa Vida eterna...   ...para que também vós estejais em comunhão connosco...   ... Tudo isto vo-lo escrevemos, para que a nossa alegria seja completa.

                         

                                           Camilo Maria

 

Camilo Martins de Oliveira