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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

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A FORÇA DO ATO CRIADOR

  

O Hotel do Mar
 

O Hotel do Mar (1958-1964), desenhado por Francisco Conceição Silva, situa-se em Sesimbra, numa encosta de forte declive, exposta a sudoeste. Entre o mar e o castelo, o hotel abrange uma admirável vista sobre a baía e o velho casario.

O Hotel do Mar faz parte das novidades que surgiram a partir dos anos cinquenta nos programas hoteleiros. A existência de hábitos novos no que respeita a férias de sol e de mar; a viragem para sul; a descoberta do Algarve; e o anúncio da construção da ponte sobre o Tejo (cujo contrato de construção foi assinado em 1957, vindo a inaugurar em 1966); fizeram de Sesimbra, antiga vila de pescadores próxima de Lisboa, um dos primeiros pólos de atração deste turismo.

Nos anos cinquenta, a par da produção de grande qualidade e em pequeno número e a par da continuação do programa das pousadas de promoção oficial, tende a iniciar-se o boom turístico dos anos sessenta, protagonizado pelo setor privado.

Inaugurado em 1963, o Hotel do Mar foi um dos primeiros a contrariar a tendência dos grandes hotéis que utilizam o modelo do paralelepípedo perfeito – como o Grande Hotel da Figueira da Foz (inaugurado a 1953), construído paralelo ao mar, ou como o Hotel Ritz (1952-59), edificado no cimo do Parque Eduardo VII, em Lisboa. Ao invés, o Hotel do Mar integra-se organicamente num aglomerado urbano caracterizado pela tradição e pela vida em torno do mar. Francisco Conceição Silva optou por fragmentar o volume, de modo a adaptar o conjunto naturalmente à encosta. O hotel pretendia ser uma presença discreta, tentando manter a vista a quem circula pelo arruamento que se desenvolve a norte. Conceição Silva caracterizou duas zonas importantes do hotel – o corpo dos quartos e a sala de convívio.

O corpo dos quartos, pela sua orientação, permite um contato direto com o mar e com o sol. Setenta quartos estão distribuídos por 4 pisos. Desenvolve-se uma ideia de dentro para fora. O quarto é o elemento principal do hotel e por isso a relação entre o espaço interior e exterior, a sua intimidade e utilização, foram cuidadosamente estudados de modo a garantir uma vida independente das zonas comuns do hotel. O corte do conjunto, em degraus, permite que o espaço exterior, privativo de cada quarto, seja utilizado como um seu prolongamento, mantendo a necessária intimidade. A varanda descreve o módulo do quarto. Entre o interior do quarto e a varanda, Conceição Silva criou uma janela com bancos fixos, tal como se encontra na arquitetura popular portuguesa. E estas referências à arquitetura popular são muito importantes para a formalização do hotel porque cada quarto é como que uma unidade branca que existe no meio do casario branco, nas encostas de uma povoação piscatória.

A sala de convívio, por sua vez, destaca-se de todo o conjunto. Constitui-se como uma torre vigilante aberta ao horizonte, referenciada a um passado militar de Sesimbra. As quatro galerias dos quartos convergem para esse ponto, permitindo uma independência de acessos ao centro de reunião de maior interesse na vida comum do hotel.

Todo o conjunto adota a utilização de materiais construtivos correntes na região (espessos muros rebocados e caiados, a cerâmica e a madeira), valorizado ainda pela aplicação de elementos cerâmicos da autoria de Querubim Lapa.

A dimensão e a qualidade do hotel do Mar consolidaram e promoveram o atelier de Conceição Silva até então inexistente. O autor, desde início dos anos cinquenta, desenvolvia inovadoras obras de interior, nomeadamente em projetos comerciais – por exemplo o projeto da Loja da Rampa (hoje infelizmente destruída), de 1955, experimentava uma renovadora liberdade de criação ao manipular escultoricamente a rampa helicoidal como sendo o centro do espaço. Foi João Alcobia, decorador e proprietário da casa Jalco (que promoveu, em 1952, uma exposição de mobiliário da autoria de Francisco Conceição Silva), que encomendou o projeto do hotel em Sesimbra.

O Hotel do Mar marca, para Conceição Silva, o começo de uma longa série dedicada a esse tipo de férias, mas também o princípio de uma produção arquitetónica ligada a grandes operações imobiliárias e a novos grupos económicos emergentes. O atelier Conceição Silva constituiu um facto singular no panorama português e conseguiu transformar-se numa grande empresa que integrava todas as valências do projeto. No atelier colaboraram, entre outros, os arquitetos Maurício de Vasconcelos, Tomás Taveira, Manuel Vicente, José Daniel Santa Rita, Bartolomeu Costa Cabral, Arsénio Cordeiro e Pedro Vieira de Almeida e, também por exemplo os artistas plásticos Sá Nogueira, Jorge Vieira e Querubim Lapa. Obteve a sua expressão máxima no empreendimento turístico de Tróia (1970-74) e revelou a nova força das atividades terciárias na cidade de Lisboa com o edifício Castil, na Rua Castilho.

Ora, com o Hotel do Mar, o arquiteto criou um projeto de crescimento turístico para Sesimbra. Conceição Silva propôs por isso, que a ocupação turística se desenvolvesse para poente, de modo a preservar a vila histórica e a sua relação com a envolvente natural. Nos dias de hoje, o hotel é diferente daquele que o arquiteto inicialmente planeou. Um ano depois da sua inauguração, em 1964, surgiu uma piscina a céu aberto, sobre a qual foi construído um segundo conjunto de quartos. E em 1989, houve uma terceira fase de construção, já não da autoria de Conceição Silva mas do seu antigo associado Maurício Vasconcelos, que introduziu novas construções na encosta.
 

Ana Ruepp

CARTAS DE CAMILO MARIA DE SAROLEA

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Tiziano - Alegoria do Tempo governado pela Prudência
 

    Minha Princesa de mim:
 

   Refletindo sobre as muitas hesitações, variações e debates, à volta da necessidade de se reforçarem medidas preventivas, dissuasoras, e até repressivas, de atos terroristas, suas ameaças, seus suspeitos ou presumíveis perpetradores, Michel Eltchaninoff publica, no nº 98, de abril de 2016, da Philosophie magazine, um artigo intitulado Le Sabre et l´Esprit. Começa assim: Estamos aborrecidos com a força. Por um lado, precisamos dela, na nossa vida privada, para enfrentar a doença, o luto, para não cairmos no desespero ou na depressão. Nos momentos difíceis dizemos: "Sê forte!" Também preferimos viver num país poderoso e respeitado, do que num estado débil e periclitante. Mas, por outro lado, sentimos então vergonha de nós.

   Ao lê-lo, lembro-me de umas voltas de Luís de Camões ao mote De que me serve fugir / de morte, dor e perigo, se me eu levo comigo? Não resisto a transcrevê-las para ti:

 

          Tenho-me persuadido,

          por razão conveniente,

          que não posso ser contente,

          pois que pude ser nascido.

          Anda sempre tão unido

          o meu tormento comigo,

          que eu mesmo sou meu perigo.

          E, se de mi me livrasse,

          nenhum gosto me seria.

          Que, não sendo eu, não teria

          mal que esse bem me tirasse.

          Força é logo que assim passe:

          ou com desgosto comigo,

          ou sem gosto e sem perigo.
 

   E, deparando com perplexidade, com esse tal "mas que podemos fazer?", logo me ocorre o recurso a São Tomás de Aquino, pois a palavra que me veio à mente foi Prudência. Como muito bem assinala o teólogo dominicano Marie-Dominique Chenu, que aqui passo a traduzir, para o Doutor Angélico, a inteligência - inclusive a inteligência da fé -  é a regra, tanto da ação como do pensamento. Assim sendo, a inteligência não devia então ser, ela própria, para nos guiar a vida, a sede de uma virtude? de uma virtude de certo modo supervisora de todas as outras, incluindo as emoções exteriores do amor, e introduzindo na sucessão das nossas ações singulares e efémeras uma luz racional, nessa altura reguladora? Assim chegamos à pedra angular da moral de São Tomás, essa que ele tão longamente construiu, único entre os seus pares, e cuja originalidade hoje está tão mal conservada, quer pelos moralistas, quer pelos espiritualistas. Dessa virtude intelectual, o próprio nome, na linguagem moderna, lhe aponta a desvalorização doutrinal: para os moralistas, como no nosso dia a dia, a prudência é tratada como uma virtude menor, como uma habilidadezinha feita de precaução e astúcia, conferindo uma segurança empírica e um precário saber viver e saber fazer... E Chenu sublinha que, diferentemente, para Aristóteles e, na esteira deste, em São Tomás, prudência significa precisamente essa disposição estável, graças à qual a razão discerne, escolhe, impera, na mobilidade e variedade das nossas ações, a verdade da sua ordem para o fim último. Verdade prática, que nem os princípios gerais, nem as ciências, nem a própria sabedoria, podem determinar, pois está imersa na irredutível singularidade das ações e das situações. Verdade experimental, portanto, mas assegurada pela perfeita posse de um estar em andamento, graças à justa proporção dos meios ao fim, que nem boas intenções nem ardores místicos fornecem. A prudência não vem juntar-se, exteriormente, à razão e à vontade, como dever que se imponha à liberdade, para a constranger: antes é a própria razão, tornada perfeita, no seu juízo e nas suas escolhas. Interioriza, personaliza a lei, a tal ponto que só aí, em minha consciência, posso decididamente falar de obrigação. O virtuoso é a regra viva da sua ação; a sua razão apenas à sua certeza prática deve a última determinação da sua obra.

   É claro que só os ditadores, seja qual for a sua ideologia ou projeto político - e também os fundamentalistas religiosos que, por esse mundo e essa história, sempre vão surgindo, seja qual for a sua fé ou falta dela - não podem tolerar tal liberdade de consciência, porque ela se furta à aquiescência cega, simplesmente alienada num qualquer ensinamento, certo ou errado, de outrem, do presumido mestre ou comandante. Ora a prudência é a virtude, intelectual, da observação, mais do que da observância; da escuta e do diálogo, mais do que da indiferença ou contestação, tantas vezes emotiva e irracional, do outro; a prudência estuda, não se precipita a condenar, procura compreender, não quer impor. Na segunda parte, II, quaestio 47, 1, da Summa Theologiae, São Tomás de Aquino retoma, interpretando-a à luz de Aristóteles, esta expressão de Santo Agostinho, tão bonita - e que já tantas vezes te repeti, Princesa de mim: Prudência é um amor que escolhe com sagacidade... 

   Hoje, como sempre deveríamos ter feito, rezemos para que seja sagaz o nosso amor dos outros (Deus omnisciente está onde há amor), e amorosa a nossa sagacidade (até para não ser estúpida).   


   Camilo Maria 

 

Camilo Martins de Oliveira

ÉSQUILO


 

ÉSQUILO e para ele as palavras de Aristófanes:

« Ó tu, que foste o primeiro dos Gregos a construir torres de palavras majestosas e criaste um mundo de trágica ilusão»
 

De facto para se compreender hoje a cultura do mundo ocidental, é indispensável o conhecimento dos textos que Grécia e Roma nos deixaram. Que se não duvide que o Saber não se atinge, nem o percurso até ele, nos é suficiente para o atingir. Talvez cheguemos até reflexos que nos elucidam das nossas limitações, e ter essa ideia é já tanto! Parece paradoxal, mas assim é. Os valores estéticos, onde incluo os da linguagem, são-me muito caros, e, bem gostava de ter aprendido várias línguas - incluindo o grego - como indispensável acesso às literaturas. Queria ter conseguido ler os grandes autores no original já que nenhuma tradução o substitui.

Não obstante, eis-me de novo e de novo com Oresteia escrita já quase no fim da vida de Ésquilo que nascera em 525-4 a.C.

Como se sabe é Oresteia constituída pelo Agamémnon, as Coéforas e as Euménides, verdadeira obra-prima da literatura dramática de sempre. Drama e lirismo afrontam as profundas questões morais e religiosas que se colocam ao homem num mundo em permanente crise. Crise esta que, na interpretação-sentir da obra esquiliana, atinge mesmo os próprios deuses, também eles procurando a justiça perfeita. Contudo, a Justiça irá lutar contra a Justiça: Clitemnestra e o seu direito de mãe a erguer-se contra o direito do filho. E homens e deuses procuram uma solução, mas uma solução que, implacavelmente quebre de uma vez por todas a cadeia de culpa e da sua expiação.

Julgo ter chegado até mim, e muito, através de Ésquilo, o compreender a diferenciação entre culpa pessoal e hereditária, quais rainhas de destinos rasgados na alma dos homens, face a numerosos deveres que entre si se contrastam. Quantas vezes a assunção da responsabilidade de um acto, implica a ofensa a um dever? E eis-nos no cerne dos conflitos que inaugurarão eras, criarão novos árbitros de vida e de morte, enfim, sempre vinculados ao destino que não levanta hipótese alguma de libertação. E reinventa-se a polis? E são os homens reinvestidos na função de julgar?!

Antes de Ésquilo foram compostas tragédias, é certo, mas também é certo que se foram desgastando com o tempo, enquanto, Ésquilo surge com solar capacidade de expor uma forma de arte em que, dotado de insuperável excelência, expõe os grandes problemas do homem. O Poeta expôs a vida para que outro futuro se construísse, e a trilogia temática de Oresteia é-nos assim colocada nos olhos do entendimento, trazida pela Antiguidade nas augustas palavras esquilianas, as mesmas que explicam a tirania e o seu confronto com a consciência cívica.

Graças à tradução do grego feita pelo Professor Catedrático Manuel de Oliveira Pulquério, tive conhecimento também do epitáfio que se crê talvez ter sido composto em Atenas depois da morte de Ésquilo.
 

«Este túmulo de Gela rica em trigo encerra os restos mortais do ateniense Ésquilo, filho de Eufórion. Da sua famosa coragem poderão falar o bosque de Maratona e o Medo de longa cabeleira que a experimentou.»
 

Assim se mostrou a vida entregue à comunidade e em defesa do futuro. No entanto, a sua vida tinha sido inteiramente doada à arte dramática sob os grandes temas da culpa e da expiação, do sofrimento humano e do sentimento que percorre a longa marcha do tempo. Agiganta-lhe a estatura este casamento dentro de si conseguido e transmitido. A atenção constante às ciladas sob os pés, quando pisam os tapetes de púrpura. A Sorte e o ornamento, a angústia em que a razão se perde. O grito de Orestes aos frágeis de memória:

 

Estes ultrajes não te fazem despertar, pai? 

 

Teresa Bracinha Vieira

 

Estudos:
Lebeck, The Oresteia, Harvard University Press, 1971;

M.O. Pulquério, Estrutura e função do diálogo lírico-epirremático em Ésquilo, Coimbra, 1964.

Traduções

Ammendola, Eschilo : Agamennone, Florença, «La Nuova Italia» Editrice, 1955;

Mazon, Eschyle, Tome I, Paris, Les Belles Lettres, 1953; Tome II, Paris, Les Belles Lettres, 1955

ATORES, ENCENADORES - LXXIII

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COMENTÁRIO A UMA ENCENAÇÃO DO “FREI LUIS DE SOUSA”

Faremos aqui um breve comentário à encenação de Rogério de Carvalho no “Frei Luís de Sousa” levado à cena pela Companhia de Teatro de Almada no Teatro Joaquim Benite. E isto porque, em primeiro lugar, são sempre bem vindas, para não dizer necessárias, as re-encenações deste grande texto referencial. Mas também porque o espetáculo – que diga-se desde já, tem boa qualidade – concilia o rigor assumido do texto de Garrett, com uma versão moderna, renovada e renovadora: o que em si mesmo não só é obviamente legítimo como louvável pela afirmação de modernidade, mesmo que se discutam aspetos de conceção e execução.

Mas desde logo se diga que a integral do texto, encenado num registo de atualização de espetáculo, mostra a atualidade da peça em si no ponto de vista da criação direta de Garrett. Quer dizer: a peça, tal como a lemos, contem todos os valores da sua atualidade real no texto e potencial no espetáculo. E nesse aspeto, ainda dois comentários:

Em primeiro lugar, as próprias didascálias e notas de cena originais, tal como Garrett as concebeu e interpretou em 1843, podem ser devidamente “aplicadas” num espetáculo moderno, sem por isso o espetáculo deixar de ser moderno e atual. Trata-se aliás de uma expressão exemplar de teatralidade, repita-se, não só através das descrições de cena propriamente ditas, vastas e pormenorizadas na sua adequação “realista” à época do drama, mas também, modernas quando Garrett as concebeu e ainda hoje: uma versão rigorosa nunca será por isso menos eficaz na sua modernidade.

E essa modernidade concilia três planos epocais e estéticos: o da época da cena e da ação histórica (século XVII), o da época da criação da peça (século XIX) e o da época da encenação (século XXI). Nesse aspeto, insista-se, o espetáculo concebido e dirigido por Rogério de Carvalho concilia bem os planos: aliás, tal como o próprio encenador recorda numa entrevista no programa coordenado por Ângela Pardelha, “o texto é um dos melhores textos dramáticos da literatura portuguesa”, pois “a modernidade do texto é evidente”. Assim é, com efeito: o que comporta a modernidade da encenação, mesmo que não se considere sempre ao mesmo nível o tratamento e o desempenho de todos os personagens.

E ainda um reparo: a intemporalidade e certa “abstração” cénica e cenográfica epocal é em si mesma bem-vinda, sem embargo, insista-se, da qualidade, no duplo sentido, das indicações cénicas originais. Mas apesar disso, registo na encenação uma certa “homogeneidade excessiva” que neutraliza um pouco a dramaticidade crescente – e não se fala aqui de suspense ou de premonição e fatalismo, por que o texto é hoje perfeitamente universal no conhecimento que dele se tem… o que permite em certa medida exercícios de homogeneização.

Pode no entanto discutir-se a “abstração” da cena do final do segundo ato, como sabemos crucial no contexto dramático. A didascália de Garrett é rigorosa, como o são aliás todas as indicações de cena. Aqui, impõe-se o significado dramático e simbólico da descrição do Ato Segundo, com a galeria de retratos e com a extraordinária cena final: 

“Romeiro (apontando com o bordão para o retrato de D. João de Portugal) – Ninguém” (Frei Jorge cai prostrado no chão, com os braços estendidos diante da tribuna. O pano desce lentamente)…”

E pode questionar-se aqui a encenação/interpretação que, segundo penso, de certo modo desdramatizou o conteúdo simbólico da cena de identificação do Romeiro-D. João de Portugal pelo próprio, apesar de figurar no retrato “noutros trajes… com menos anos – pintado”, como refere o Frei Jorge:

“Jorge – Procurai nestes retratos e dizei-me se algum deles pode ser.

Romeiro (sem procurar, e apontando logo para o retrato de D. João) – É aquele”.

Note-se bem: “sem procurar”…

No plano do texto em si, saliento sempre a grande fala final da Maria:

“(…) Esta é a minha mãe, este é o meu pai… Que me importa a mim com o outro? (…) Mate-me, mate-me se quer, mas deixe-me este pai, esta mãe que são meus (…) – Não há mais do que vir ao meio de uma família e vir dizer: «vós não sois marido e mulher? e esta filha do vosso amor, esta filha criada ao colo de tantas meiguices, de tanta ternura, esta filha é…» Mãe, mãe, eu bem o sabia… nunca tu disse mas sabia-o: tinha-mo dito aquele anjo terrível que me aparecia todas as noites para me não deixar dormir…”

No que respeita ao espetáculo, há certamente que o elogiar, com talvez um reparo relativo à conceção cénica ao longo dos três atos, a partir de um dispositivo uniforme de José Manuel Castanheira, contrastante com as notas de cena e descrições de ambiente de Garrett, curiosamente detalhadas e realistas. Mas nada disso prejudica o espetáculo, ainda valorizado pelas interpretações de Adriano de Carvalho, Alberto Quaresma, Afonso Fonseca, Carlos Fartura, Joana Castanheira, João Farraia, Marques d’Arede, Pedro Walter, Teresa Coutinho, Teresa Gafeira.

De facto, Garrett é um grande (e moderno) dramaturgo, o “Frei Luís de Sousa” é uma grande (e moderna) peça. Merecerá sempre por isso a reposição.


DUARTE IVO CRUZ

 

 

LONDON LETTERS

Shakespeare as you like, 1616-2016

Quatrocentos anos serão uma eternidade na alma do homem, mas infinitas são as palavras que inventam a sensibilidade ocidental. Master William Shakespeare morre a 23 April 1616. Lega 38 peças e 154 sonetos, mais duas narrativas e uns quantos versos de uncertain authorship. Espetáculos de teatro, música, dança, entrevistas, livros e até poemas a pedido celebram a data.

Quem ama o inspirado universo do Bard of Avon sorri, apesar do excessivo branding dos tempos. — Chérie! Il ne faut pas juger du sac sur I'etiquette. O US President Barack Obama realiza a última visita oficial ao UK. Almoça com The Queen no Windsor Castle, reúne com o PM no N10, engarrafa o trânsito em Westminster District e advoga voto Bremain em Chicago style. As suas palestras atiçam o fogo da controvérsia. — Hmm! Shall I compare thee to the sounds of the Philadelphia‘s Liberty Bell? O Thames e St James acolhem a London Marathon da primavera com an supportive, colourful and noisy crowd. A crise dos migrantes ecoa na ementa dos líderes do G5 (US, UK, Germany, France & Italy) reunidos em Hannover, para ultimar a Transatlantic Trade and Investment Partnership. Com Mrs Hillary Clinton a solidificar posições entre os democratas, os rivais republicanos Ted Cruz e John Kasich coligam-se para travar o frontrunner Mr Donald Trump na USA Presidencial Race. Dois pássaros raros partem: Prince ‘The Purple Rain,’ aos 57 anos, e Billy ‘Me and Mrs Jones’ Paul, aos 81. Um ano após o terramoto que abala as montanhas do Tibet, o Nepal permanece terra devastada e esquecida.


The Queen and Her People (© Courtesy BBC).

Blue sunny skyes, white cold clouds and a fantastic merry atmosphere em Central London. Sabem os Londoners que os festejos da Queen at 90 abrem com a gun salute na Bridge Tower e só descem o pano com o Summer Official Anniversary, desta feita escoltados com a fanfarra partidária das May Elections e do June EU Referendum. Modestamente faço votos para que Her Majesty sele o ano com a Derby Winner. April é momento alto do calendário local também pelo 400th Shakespeare. Comemoro a travessia do bardo nas estrelas com a esplêndida A Play for the Heart: The Death of Shakespeare, de Nick Warburton (Tinniswood Award, em 2005). A peça foca os dias do fim do Good Old Master Will e passa-se na Mary Arden's Farm, o berço de Stratford-upon-Avon. O guião é simples: Um febril escritor entretece os últimos momentos em família com personagens da vida real e imaginária. O resultado é fantástico, pelas setas de pura emoção. Parcela do caleidoscópico BBC Shakespeare Festival 2016, o espetáculo tem direcção segura de Mrs Marion Nancarrow e é protagonizada por Mr Robert Lindsay e Mrs Susan Jameson ‒ um intenso William e a doce esposa Ann Hathaway, cruzando-se com impecáveis Oliver Chris (como John Fletcher) e Gwilym Lee (William Harvey) a par de Nicola Ferguson (a filha Susanna Hall), Nick Underwood (o genro John Hall), Sam Brough (um dos gémeos, Hamnet), James Lailey (Unnamed gentleman) e Brian Protheroe (The Voice). Afinal, quem é the man with bloody hands?


Master William Shakespeare ou a imagética filigrana de ideias e de palavras (© Courtesy BBC).

RH Theresa May entra na campanha referendária após o President Barack Obama voar sobre o Atlantic Ocean para intervir a favor da permanência do UK na European Union e em vésperas de Madame Marine Le Pen atravessar The Channel para cá defender exatamente o contrário. As fronteiras dos interesses estão a jogo, pois. Não admira que as sondagens apontem um voto still in the air. A semana é do tipo The Sound and The Fury, com Mr William Faulkner como comandante do Air Force One. Como recordarão, a estória decorre no Mississippi e centra-se nos Compson ‒ família aristocrática sulista a braços com a dissolução dos laços e da reputação. Tudo agora gira em torno de providencial visita do Mr President. Que diz, na essência, o senhor de Washington? Que o British People vote Remain e saiba que, caso contrário, irá “at the back of the queue” quando quiser renegociar um acordo comercial com os USA.

Mais, além da prometida década perdida e do you just can’t: Que os jovens recusem “the isolationism, pessimism and cynicism.” Ainda: Que “love the guy, Winston Churchill,” cujo busto no first day do mandato retira do Oval Office para o 2nd Floor da White House. Os comentários vacilam: A threat! A friend advice? Acrescem dúbias notas sobre o Great Glorious Empire, a “Kenyan ancestry” e “two lame ducks indulging in a final quack!” Ora, com os Junior Doctors em greve por estes dias e a endividada cadeia de moda BHS com “11,000 jobs at risk” na montra da High Street, explorando a divisão entre os inflamados Tories, já o inefável Shadow Chancellor RH John McDonnell verseja sobre a queda do governo… nas ruas. No mais do impreciso sufrágio de 23rd June: Only 58 days to go…

O melhor da semana, porém, vem do RH Jeremy ‘Mr Nice’ Corbyn na House of Commons. Durante o tributo a The Queen@90, distanciando-se da penosa rudeza inicial para com o trono, o republicano dos quatro costados delicia as galerias com o público elogio pelo seu “clear sense of public duty” e ainda a referência de preferir líderes provindos de "a finer vintage." Well! For all the ducks i' the river, between to quack or not to quack, let us sing the Sonnet #24 of Master Will: Mine eye hath play'd the painter and hath stell'd / Thy beauty's form in table of my heart; / My body is the frame wherein 'tis held, / And perspective it is the painter's art.

St James, 25th April                    

Very sincerely yours,

V.

A VIDA DOS LIVROS

 

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De 25 de abril a 1 de maio de 2016

 

Miguel de Cervantes (1547-1616) e William Shakespeare (1564-1616) apenas coincidem na circunstância da morte. Os seus passos não se cruzaram em vida, mas aparentemente morrem no mesmo dia, o que permite uma associação de lembranças. Contudo, o certo é que são referências fundamentais na literatura moderna, na sua criação e consolidação.

 

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[Foto: DN] 

 

UMA COINCIDÊNCIA DE DATAS

Começando pelas datas, a verdade é que no curioso ponto de encontro das datas da morte – 23 de abril de 1616 - temos um pequeno equívoco, de facto sem importância. Enquanto a Inglaterra seguia o calendário juliano, a Península Ibérica adotava já em 1616 a contagem gregoriana. Eis por que razão, o dia 23 de abril, que os biógrafos referem como data possível do falecimento, de ambos não corresponde ao mesmo momento, mas sim a uma diferença de dez dias…

O certo, o certo é que, apesar dessa divergência momentânea, podemos associar as duas grandes figuras, pois representam, nas respetivas singularidade e originalidade, o início, cada um a seu modo, de uma nova literatura, que convencionamos designar de moderna… Miguel de Cervantes é, pode dizer-se, o introdutor do romance moderno – e, falando da língua portuguesa, podemos acrescentar que D. Quixote é com a «Peregrinação» de Fernão Mendes Pinto o começo de um novo capítulo extraordinário na história das narrativas… Com efeito, mais do que um relato autobiográfico, a «Peregrinação» é uma prodigiosa apresentação, picaresca e trágica, de uma vida de aventuras, que pressupõe a multiplicação das personagens e das respetivas peripécias. Os contemporâneos julgaram ser mentira essa prodigiosa proliferação de experiências, mas hoje sabemos que foi a criação literária a estar em causa, centrada na diversidade dos testemunhos que contêm um inequívoco fundo de verdade… Assim, D. Quixote e a Peregrinação são duas obras centrais na construção da moderna literatura ocidental… E lembramo-nos do surpreendente epílogo da obra-prima de Cervantes: «Senhores, mais devagar! (…) – O que lá vai, lá vai. Ontem fui louco, hoje estou são de juízo. Fui D. Quixote de la Mancha e sou agora, repito, Alonso Quixano, o Bom. Possam Vossas Mercês perante o meu arrependimento e verdade restituir-me à estima que lhes merecia e o senhor tabelião tenha a bondade de continuar…». Apesar desta tentativa de D. Quixote renegar a ponta de loucura que dominara a sua movimentação, os seus companheiros irão desejar que tudo continue na mesma, como se de um sonho se tratasse que deveria continuar… A verdade é que, se Cervantes faz a crítica, certeira e indesmentível, dos males dos romances de cavalaria – sendo o cavaleiro da triste figura a personificação de uma doentia figuração de quem se deixara arrastar por aventuras fantasiosas retiradas de uma mistura ilusória da imaginação e da vida -, o certo é que estamos perante uma outra atitude que tem a ver com a realidade que nos cerca. O quixotismo é o enfrentamento da realidade com sonho e sentido utópico – mas Sancho Pança procura reconduzir as coisas ao concreto e ao senso comum. Daí o paradoxo existente entre a recusa de continuar a loucura e o desejo dos circunstantes que tudo se mantenha…

 

ALMA DE UM POVO

Miguel de Unamuno disse um dia que a filosofia em Espanha se lhe apresentava na «alma» do seu povo como «a expressão de uma tragédia íntima análoga à tragédia da alma de D. Quixote, como expressão de uma luta entre o que o mundo é, tal como no-lo mostra a razão da ciência, e o que queremos que seja, segundo o que nos diz a fé da nossa religião. E nesta filosofia reside o segredo do que nos é apontado, mas que estamos longe de saber o que é». Miguel de Cervantes faz-nos o relato das desventuras de alguém que, a um tempo, nos fala de um tempo passado, assim como sonha com conquistas inverosímeis… Diversa é a atitude de William Shakespeare, ainda que haja uma evidente convergência no sentido crítico. É a alma do povo que ambos, o espanhol e o inglês, procuram…

De facto, as obras do britânico, centradas na procura de compreender o género humano, ora usando das referências míticas ou históricas (Hamlet, Otelo ou o Rei Lear), ora recorrendo a temas intemporais (como em «A Tempestade»), procuram sensibilizar o público para uma reflexão crítica do mundo da vida. E que é o teatro senão o meio por excelência para a representação crítica da humanidade? Apesar de a narrativa romanesca e o teatro terem destinatários e ritmos algo diversos, a verdade é que, desde o registo picaresco até à máxima circunspeção, do que se trata é de olhar a sociedade e de ver os caminhos diversos que a mesma pode trilhar. O caso de Próspero, duque de Milão, em «A Tempestade» é significativo. Aí sentem-se as influências de Erasmo de Roterdão ou de Montaigne, mas também do Ovídio de «Metamorfoses». É uma tragicomédia com laivos de commedia dell’arte – muito se aproximando da ideia do romance crítico. Talvez este seja um caso muito especial na obra de Shakespeare, em que há uma aproximação à narrativa… Para não falar de «Hamlet», importa lembrar «Lady Macbeth» e «O Rei Lear», onde os temas do poder e da sua atração estão bem presentes. O velho rei da Bretanha decide dividir o seu reino pelas três filhas – Goneril, Regan e Cordélia. Esta última, porque não segue a atitude aduladora das irmãs é expulsa da corte. A ambição, a cegueira, a corrupção do poder conduzem o reino pelos caminhos indesejados pelo rei Lear, que enlouquece, procurando reencontrar Cordélia. Esta será condenada à morte com o seu próprio pai, que assiste desesperado as este desenrolar dos acontecimentos, nada podendo fazer para reparar o seu tremendo erro de ter julgado erradamente Cordélia… Há um sério contraste entre a loucura do rei Lear, que presencia a vitória de tudo aquilo que desejaria combater e a apoteose de «A Tempestade», numa ilha perdida, pela mercê de um mago, em que os vivos saúdam a alvorada de uma idade de ouro… Também o quixotismo revela essa contradição entre o sonho e o absurdo – o que, à distância, permite ver a força da literatura, a unir os geniais trajetos de Cervantes e Shakespeare…

 

Guilherme d'Oliveira Martins
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CARTAS DE CAMILO MARIA DE SAROLEA

 

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   Minha Princesa de mim:
 

Nunca fui, tanto quanto possa recordar, protestante, nem contestatário. Contestei muito, protestei, quiçá mais do que me soía, nunca de tal fiz ofício, nem vício tive. Seria, para mim - admito e compreendo que, para outros, não o seja - uma falta de gosto. E detesto o desprazer. Não o que outrem me possa provocar, mas apenas o que possa ser, tão só, capricho meu, essa teimosia superficial, com pretensões a coisa íntima e firme, inabalável convicção... como se aceitável fosse, e pudesse durar, qualquer bizarra birra do meu humor! Claro que tenho embirrações e acessos de fúria, mas passam depressa. Ao fim e ao cabo, sempre pensei assim: acaba, afinal, por ser mais cómodo, confortável, talvez, ou certamente, inteligente, sermos nós a perceber os outros. Mas é preciso lá chegar...

Por outro lado - e perdoa-me, Princesa, o deslize - também me dá riso. Vê tu bem como as coisas são: quanto menos nos queixarmos do que nos parecem ser os disparates dos outros - e em nossos segredos menos fecharmos as nossas certezas - tanto mais nos banharemos no regozijo deleitoso da aparição da verdade... Ou será engano? Até pode ser, ninguém nos engana tão maravilhosamente como nós mesmos. Já reparaste em que quanto mais certezas tivermos para nós e para querer impor aos outros, mais longe ficamos do convívio ou, como alguém sublinhou, da alegria do amor?

Até parece nó górdio, mas não é. Antes fosse, que o dito se desfaz com uma catanada, ou simples faca afiada. O problema da alma humana é ser um cadeado sem instruções sobre a volta evidente que se deva dar à chave. Tanto dá para um lado como para o outro. Alvitram, por aí, que o preço da consciência é a liberdade. Ou vice-versa. Ambas as versões estarão certas, nunca saberemos mesmo, à point [como também se diz do fim da cozedura ou da afinação de um queijo], por onde haveremos de começar. Aí está o que dá graça à vida, e eis o que abre a vida à graça. E a graça, pensossinto eu, é o presente de Deus. 

Assim pomos o dedo na chaga de todos os chamados "fundamentalistas", os tais que, de fundamentos só têm os que a sua miopia alcança... São também conhecidos por "radicais", mas são bem superficiais as raízes que os sustentam. Nada há mais feio do que julgarmo-nos proprietários da verdade, como se esta tivesse dono humano possível. Nem nada mais estúpido do que não perceber que qualquer realidade é sempre duas: aquela que mal conhecemos e a ideia que fazemos dela. A humildade é, supinamente, uma virtude da inteligência. Também, portanto, condição imprescindível do diálogo. Este só é possível quando aceitamos que poderá ser perspicaz outro olhar, de um ponto de vista diferente do nosso, e que talvez até aperfeiçoe a nossa perceção. A grande lição do jardim zen, seco, de Ryoanji, em Kyoto, é nunca conseguirmos contar as quinze rochas, ou ilhas perdidas num mar de gravilha penteada, apenas com um só olhar de uma qualquer perspetiva possível. Temos de andar à volta, e de olhar de vários lados, para compreender que, de cada vez, há sempre, pelo menos, uma que nos escapa ao conto. Não há ciência nem obra humana possível sem a condição prévia do reconhecimento da nossa imperfeição. Nem vida de pessoa ou instituição se pode melhorar sem se entender que o bem e a beleza, qualquer verdade, nunca estão possuídos nem terminados. A sina de qualquer vida, o fado do espírito humano, é a demanda infinita, uma ascese, uma ascensão. Do universo sabemos, ou julgamos saber, que se expande. O próprio Deus, sendo a única verdade ontológica, é infinito. Por isso me parece triste e feia toda a pretensa apropriação de Deus, como se Ele coubesse em qualquer conceito nosso. Gente que se reclama de muita religião esquece-se, por vezes, de que norma nenhuma define Deus nem a nossa relação com Ele. A mística é a contemplação do Infinito...Rezar talvez não seja pedir o que desejamos, pois só se deseja o que se viu, ou vê, ou julga ver. Será, tão somente, pedir que se nos abra a alma. Para as coisas que devemos esperar...
 

   Camilo Maria 

 

Camilo Martins de Oliveira

A FORÇA DO ATO CRIADOR

  

O Centro das Artes Casa das Mudas de Paulo David.
 

No topo de uma encosta junto ao mar, situa-se o Centro das Artes Casa das Mudas (2001-2004), no concelho da Calheta, na zona oeste da Madeira, a vinte minutos de distância da cidade do Funchal.

A colocação de um programa tão importante – com espaço para exposições temporárias e permanentes, auditório, biblioteca, loja, cafetaria, restaurante e uma ampla zona de animação cultural para ateliers e oficinas artísticas – numa zona menos urbana e mais periférica da ilha vem dar ênfase à zona da Calheta, completando o centro cultural já existente. A ideia de atribuir a um programa excepcional um edifício de excepção que se destaca no contínuo da cidade é aqui contrariada através da realização de um projecto que está camuflado, escuro, quase inexistente, completamente fundido na rocha e na montanha.

Paulo David (1959) projecta a Casa das Mudas de modo a enfatizar a primordial experiência do lugar. A inserção na encosta faz esquecer que a arquitectura é artifício, sendo aqui antes afirmada como própria natureza. Utilizando a geografia como matéria de projecto, Paulo David determina o Centro das Artes como sendo um objecto construído que é em simultâneo ausência e presença. Ausência, porque a Casa das Mudas é rocha escavada, fim de cidade e começo de paisagem e que pertence unicamente àquele lugar. Presença, porque a Casa das Mudas geometriza, controla e recorta a natureza transformando-a numa experiência organizada e construída.

O projecto de Paulo David parece basear-se numa ordem natural e os materiais utilizados evidenciam uma fusão com o suporte rochoso. O Centro das Artes escava-se na encosta utilizando a mesma pedra vulcânica (o basalto) que caracteriza aquela região.

Como se de um pequeno núcleo urbano se tratasse, o programa está disperso por pequenos volumes que se organizam segundo diversos vazios que ora se abrem ora se fecham para o mar. A experiência do lugar, em puro, permitiu ao arquitecto produzir um objecto arquitectónico que se gera no contexto elementar da natureza. Uma vez construído, o objecto tem a capacidade de voltar a oferecer ao utilizador a experiência essencial e primária daquele lugar.

O projecto de Paulo David trás à memória as Termas de Vals, na Suiça, projectadas por Peter Zumthor. As termas, tal como a Casa das Mudas, apesar de se integrarem num conjunto construído existente (hotel), fundem-se formal e materialmente na pendente do lado poente do vale. A sua descoberta como elemento construído na paisagem é inesperada porque pela escala, pelo encaixe no terreno, pela pedra aplicada em todo o edifício, pelo carácter horizontal, pela geometria e pela ordenação do programa, o natural impõe-se ao artificial.

O conjunto da Calheta é unitário e compacto, porém revela uma variação e uma complexidade de espaços interiores. O desenho dos vazios exteriores, que se lêem por entre volumes construídos, baseia-se em alinhamentos que vêm do pequeno núcleo urbano contíguo. Esses vazios incluem escadas, pátios, corredores, túneis e rampas de acesso à cobertura que é percorrível, permitem a ligação das diversas funções e possibilitam ainda uma relação mais próxima e aberta ao mar. A luz natural entra nos volumes através de incisões verticais e horizontais. O exterior é preto e o interior branco. Os espaços expositivos, colocados contiguamente e desenhados de modo flexível, admitem o carácter mutável e imprevisível da produção de arte contemporânea – de tamanhos variados, estão dispostos de modo a permitir uma série de combinações para o seu uso. Todas as infra-estruturas técnicas estão camufladas. O espaço do auditório apresenta um desenho minucioso, de modo a construir ‘uma capela de acústica brilhante e reverberante’, revestido com painéis de mogno.

A geografia torna-se corpo na arquitectura de Paulo David. O arquitecto madeirense licenciou-se na Faculdade de Arquitectura da Universidade de Lisboa, em 1989. Colaborou com João Luís Carrilho da Graça, em 1989 e com Gonçalo Byrne, de 1988 a 1996. Em 1996, estabeleceu o seu próprio escritório no Funchal, sendo de 2000 a 2004 docente na Universidade de Arte e Design da Madeira. Em 2003, cria Paulo David Arquitectos.

A experiência de trabalhar dez anos com Gonçalo Byrne permitiu a Paulo David fundar uma prática disciplinar que dá grande importância ao contexto, considerando cada lugar de projecto único e irrepetível. De Gonçalo Byrne assimilou igualmente uma arquitectura que parte sempre de uma ideia fundadora e que é fruto da reacção

com o sítio, com o programa e com o tempo. Por isso os princípios da arquitectura de David são determinados a partir do contexto natural, através de um vocabulário formado pela geografia, pela geologia, pela topografia e pelo clima do lugar – tal como acontece no projecto das Piscinas do Atlântico e do Passeio Marítimo das Salinas, na Câmara dos Lobos (2002-2006). Os objectos construídos por Paulo David ao serem colocados na paisagem tornam-se fenómenos naturais que se reduzem ao elementar (escavam, protegem, são para ser percorridos e hierarquizam). E sendo assim, na Casa das Mudas a presença da rocha e a relação directa com o mar torna-se então física, geometrizada, torna-se arquitectura. Com a Casa das Mudas, Paulo David recebeu o prémio Mies Van der Rohe, em 2005.


Ana Ruepp

CARTAS DE CAMILO MARIA DE SAROLEA

 

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   Minha Princesa de mim:
 

Sabes - já te lo tenho dito - que me acontece falar com os ausentes. Não me refiro apenas aos mortos, mas a toda a gente que não está presente, gente da qual nem sei se, por qualquer telepatia, me ouve, ou por acaso sabe que me fala, ou o que me está a dizer. Isto nada tem a ver com espiritismo nem superstição. É só saudade, ou ainda, se preferires, uma comunhão que anima o teatro de relações que nos habita. No cerne deste mistério de ser humano está o sermos relação. Um elo, uma nota insubstituível no concerto do mundo e da vida. Não é por saber que penso, que eu sei que existo. É, tão só e mais simplesmente, porque sempre me surpreendo em relação. Saber de mim é como abrir os olhos pela manhã olhar à volta, sentir-me vivo porque me relaciono com o que vejo, ouço e cheiro. Assim também a minha vida interior é a minha intuitiva relação comigo, com o nó que sou, em que se ligam Deus, que ainda não conheço, e os outros todos que conheço e me compõem. A consciência de mim é, necessariamente, a consciência da minha relação. Nesse sentido entendo o Ortega e Gasset que diz yo soy yo y mi circunstancia. Esta não é  acessória, é a parte de mim necessária a que eu mesmo me surpreenda como existência.
Um dos achados mais felizes da teologia cristã é o da Santíssima Trindade, o mistério de Deus uno em três pessoas, como se o Ser, o Quem, absoluto e transcendente, precisasse de relações ao seu nível, para se entreter pela eternidade. O próprio Deus não pode ser sozinho, existir é comunicar. Também assim talvez se explique a Criação que, aliás, no Cristianismo, não é deixada ao abandono pelo Criador transcendente, antes virá a ser habitada por Ele, incarnado na humanidade de Jesus. Não só a ideia de Deus seria absurda sem a Criação, como não faria sentido sem a sua relação mútua.

O relacionamento é uma exigência do ser, não por complementaridade ou modo de perfeição apenas, mas por imperativo ontológico, se assim me posso exprimir. Por isso mesmo a todos nós acontece falarmos sozinhos, e Fernando Pessoa criou heterónimos. Cito Teresa Rita Lopes [In Pessoa por Conhecer I: Roteiro para uma Expedição, Lisboa, Estampa, 1990]: Era uma vez um homem que tinha várias sombras. Chamava-se Pessoa, como por acaso. Desde muito cedo começou a conversar com elas: cada sombra representava o seu papel. Mas não pretendo falar-te aqui de heterónimos: seja o poeta um fingidor, ou um eterno peregrino do dédalo da sua intimidade, um gerador de ficções pessoais, ou simples confessor de amores e emoções, ou algo entre tudo aquilo que já foi e poderá ainda ser, ele, também, é essencialmente uma necessidade de comunhão, ao ponto de procurar as palavras que digam o indizível, como qualquer artista se exprime sem jamais saber se só para as sombras que o habitam, se para todos tantos que ele nunca saberá quem são.

Não me lembro já de se alguma vez te contei uma estranha experiência que fiz, ou sofri: sem que os médicos acertassem ou concordassem, exigi, farto de insuportáveis dores, que me operassem. Vivia, então, em Bruxelas, acabava de regressar e uma missão a Barcelona e Genebra. Cheio de dores de barriga, amaldiçoei as refeições da Iberia - companhia em que viajara - mas nada acontecia que me aliviasse, talvez não fosse da comida. Deitado, lancei mão a um livro do Dr. Spock, desses que tínhamos em casa, para avaliarmos maleitas dos filhotes. Concluí que, afinal e com certeza, estava com uma apendicite aguda. Os sábios físicos duvidavam, a cara metade exigia análises, eu achei que o tempo estava a passar e exigi, como te disse, que me operassem. Milagre! Assim fizeram, fui para a clínica, e lá se mexeram, já passava da meia noite! Era, sim, uma apendicite aguda, estava quase a fazer uma peritonite... Talvez por terem pensado que seria só um abrir e fechar que lhes desse razão, os clínicos terão decidido dar-me uma anestesia curta. Eis senão quando acordo, no meio daquilo, a ouvi-los dizer que cheirava mal, ainda bem que se operou, etc... Eu ouvia tudo, mas não conseguia abrir a boca nem articular uma só palavra... Lembro-me de tentar, desesperadamente, sinto-o como se fosse hoje: ouvia tudo, mas não podia responder, não conseguia comunicar. E ali me quedei, mudo e impotente, numa tremenda angústia. Até que o médico anestesista, sentado a meu lado, despertou também e disse: "Já passou muito tempo, vou repetir a dose!". Outra vez ouvi e calei. Nunca mais esqueci.

Penso nisso sempre que deparo com tantas situações de gente - até amigos muito queridos - que a ciência hodierna condena a prolongamentos de vida vegetativa, sem que ninguém saiba bem o que isso é... Será humano prolongar-se a respiração de alguém que já não comunica, nem sequer para se queixar? Que sabemos, que podemos imaginar da qualquer dor, bem mais funda, que quiçá o aflige?

Muita gente fala de eutanásia, por e contra, em nome de "princípios", que não são nem vida nem sofrimento, mas só umas ideiazinhas feitas. Seria melhor acalmarem o discurso e refletirem. Não é certamente legítimo infligir a morte seja a quem for... mas será justo, caridoso, cristão, prolongar a treva angustiante dum sofrimento com que não podemos comungar? Rezo, Princesa, por mais razão, isto é, por mais respeito por quem sofre muito, e mais confiança na misericordiosa ternura de Deus. O moribundo que já não fala connosco, quiçá já fala com Quem. Mas nem isso sabemos.

 

   Camilo Maria 

Camilo Martins de Oliveira

 

A LÍNGUA PORTUGUESA NO MUNDO

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Emigrantes de Domingos Rebelo

VI - ASPETOS NEGATIVOS DO USO CONFIDENCIAL DA LÍNGUA   
    

1. Em desfavor do uso confidencial da língua são feitas usualmente duas observações: o sentimento de posse de um bem de que se julga ser o único possuidor; o ocultar dos ouvidos dos outros algo pelo qual não queremos ser identificados.   Na primeira situação, somos confrontados com o uso, gozo e fruição de um bem que temos como nosso e que não queremos dar a conhecer, existindo uma comunidade, um povo, uma sociedade, um país de falantes que se tem como dono de uma língua, que se transmite por herança biológica, de pais para filhos, como algo de que não abdicamos, numa atitude que pode ir da jactância, soberba ou superioridade linguística, à manutenção da nossa privacidade.
Na segunda situação, ao esconder e guardar a confidencialidade de uma língua dos outros, ao não querermos ser identificados usando-a publicamente, estamos em presença de uma língua que comporta como carga negativa uma baixa consideração social pelos seus próprios falantes, não a considerando em igualdade de estatuto com outras, na sua perspetiva mais negativa e penosa.
Estas duas faces, interligadas entre si, são incapazes de lutar pela defesa, promoção e difusão de uma língua de exportação e de comunicação internacional. Por exemplo, impossibilitam o cumprimento do artigo 9.º, alínea f), da Constituição da República Portuguesa ao prever, como tarefa fundamental do Estado:  “(…) defender o uso e promover a difusão internacional da língua portuguesa”. Traduz um imperativo categórico que tem como linha programática uma utilização da língua portuguesa como língua estrangeira, a exportar, a disseminar-se para além da sua base geolinguística, expandindo-se para lá das fronteiras das comunidades e países lusófonos. Preferencialmente, tendo presente o princípio da cooperação internacional, visando a proteção e valorização do património cultural e linguístico comum, partilhado pelos povos lusófonos que se exprimem no mesmo idioma, o que é destacado por várias normas constitucionais respeitantes aos países de língua portuguesa: artigos 7.º, n.º 4, 15.º, n.º 3 e 78.º, n.º 2, alínea d), 2.ª parte.   
2. Se à retórica da língua como signo de confidencialidade, identidade e posse, adicionarmos uma inferiorização do nosso próprio idioma, no sentido de que se interiorizarmos que falá-lo em público é, face ao outro, um estigma que nos discrimina e apouca, tendo-o em baixa consideração, por confronto com o dos outros, é dar um tiro no próprio pé ou poluir a própria água que bebemos. Consentir objetivamente na discriminação linguística, de forma expressa ou tácita, por ação ou omissão, por  obsessão, endeusamento exagerado ou possessivo, por indiferença, ausência de autoestima, no curto ou a longo prazo, é pactuar com a glossofobia ou logofobia que lhe está subjacente. Permitir, sem sentido, que a língua portuguesa seja preterida por outra ou por um clube ou núcleo restrito de línguas estrangeiras, em termos institucionais, de estatuto ou de praxe, é aceitar a glossofobia e a endo-glossofobia. Se ao aprender e ser reconhecido publicamente como falante de uma língua, acrescer uma imputação negativa, é um passo perigoso para acreditarmos que também não possa interessar a outros, para não crer que a nossa própria língua não seja útil para outros fins que não os de servir exclusivamente a nossa comunidade e a nós próprios podendo, em extremo, acreditar-se que não serve àquela nem a nós.
Estudos relacionados sobre o uso e transmissão do português pelos nossos emigrantes, em países como a França e o Canadá, nos anos de 1988 a 2005, incluindo os seus descendentes e as camadas mais jovens apontavam, no essencial, para uma rejeição da língua e cultura portuguesa preferindo, a esmagadora maioria, a língua e a cultura dominante, dado que o idioma dos ascendentes estava associado a um passado de pobreza, a que não se quer regressar, a uma memória de um país que forçou os progenitores a emigrar, tantas vezes clandestinamente, na maioria analfabetos e integrando recursos humanos não qualificados. Reconhecendo-se ainda que, ao desconhecimento dos franceses e canadianos sobre a nossa língua e cultura, se juntavam preconceitos estereotipados de emigrantes competentes, bons na construção civil e como empregadas domésticas, mas geralmente sem formação e instrução, sendo pouco apelativos para despertarem interesse, nos locais, pela sua língua e cultura. O baixo nível sociocultural dos nossos emigrantes ajudou a criar uma auto-representação negativa, o que se vem alterando, com emigrações recentes mais qualificadas.
Há que inverter esta perceção, contestando a subestima, a inação e a retórica da língua como mera marca de confidencialidade, de afetos e identidade, por uma língua que se aprende e fala por ser útil, com potencial comunicativo, defendendo que os recursos gastos para a sua difusão interna e externa são sempre necessários, enquadrados numa estratégia assente na aposta de que a língua é um assunto cultural, económico e estrategicamente relevante, um produto cultural e económico de exportação com implicações científicas, tecnológicas e de imagem externa do país.    

11 de abril de 2016 
Joaquim Miguel De Morgado Patrício 

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