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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

LONDON LETTERS

 The post-factual politics, 2016

Tenho por mim que, ao fim do dia, quanto sobrevém é a vera natureza humana de cada qual. Daí a indispensável ironia para gerir o choque entre pontos de vista e mensurar as diferenças entre as potenciais consequências. A campanha referendária sobre a permanência ou saída do reino da European Union está oficialmente etiquetada como a lying game. — Chérie.

Qui n'a point argent en bourse ait miel en la bouche. A transformação de um ato capaz de moldar muitas vidas num baile de máscaras tem implacável relatório da House of Commons. O cross-party Treasury Committee não deixa pedra sobre pedra nos argumentários de Bremainers e Brexitters, a uns e outros acusando de desinformar os eleitores com arrazoados fantasiosos. — Yep! A good man out of the good treasure of heart brings forth good things, an evil man out of the evil treasure brings forth evil things. O G7 grifa o alerta de catástrofe por retirada continental e Monsieur Jean-Claude Juncker adverte os Leavers com represálias de Brussels. O English Channel é a nova fronteira marítima na crise dos migrantes. Turkey aprova lei das imunidades parlamentares e o President R Erdogan engendra uma arma política contra os deputados curdos. Na never ending global tour, Mr Barack Obama abraça os sobreviventes da nuclearizada Hiroshima.

A mild weather with a few showers em London. Uns belos 20 graus e harmonioso Chelsea Flower Show na retina contrastam com o circo político que roda pelo país nos berrantes autocarros da batalha referendária e balde de água gelada lançado do Palace of Westminster sobre os artistas. Se o Great Spring Garden leva à final doze orgulhosos hortelões e dúzia de admiráveis obras florais, já o debate europeu antes apresenta um ramalhete de personagens cada vez mais a esgrimir razões a little bit silly. Mas vamos por etapas, quando o purdah impede HM Government (e o par Civil Service) de intervenção em matérias eleitorais e a guerra civil nos Tories entoa cânticos de desafio à liderança do Premier David Cameron. A exposição da Royal Horticultural Society repete o sucesso anual a que a todos habituou, desde que, em 1912, abre portas à criativa excentricidade dos +/- amadores jardineiros locais. Health, Happiness & Horticulture é lema a pontuar o tema de 2016: “to champion the benefits of greening-up our grey spaces,” sob benção da Queen Elizabeth II e no âmbito da Greening Grey Britain Campaign. Nesta linha de amenidades também Downing St serena os fogos a lavrar entre os mineiros da Tata Steel (em acelerada operação de venda, sob o espetro do desemprego) e os Juniors Doctors (em expedito compromisso de novo acordo laboral, após cinco inéditas greves no NHService).

As espécies na mostra de Chelsea contêm muitas perennials, aquelas plantas e flores that come back year-after.year-after.year. A contar os dias para o Chilcot Inquiry sobre a Iraq War, lemos, ouvimos e vemos Mr Tony Blair aqui, ali e acolá. Em destaque nas Sunday Politics, qual true garden-lover insuscetível de libertar obra prima, o ex primeiro ministro trabalhista acaba a escalpelizar a paisagem política onde renasce o New Old Labour. E surpresa, surpresa! O padrinho da Third Way adverte que, entre outros demagogos, o sucessor RH Jeremy Corbyn é (1) "a result of the way the world works these days," (2) "a big challenge for the centre;" e (3) "a very dangerous experiment for a major western country to get gripped by this type of populist policy making, left or right." Mais, em estilo daquelas peonies que oferecem todas as cores except the blue: "I do think the centre ground needs to work out how it recovers its... gets its mojo back, and gets the initiative back in the political debate because otherwise... these guys aren't providing answers, not on the economy, not on foreign policy."

Que a salada de ideias no Labour Party é assaz pitoresca, na conjuntura, confirmam múltiplas sondagens onde o Right Honourable ‘Comrade’ Jez Corbyn não descola face a agastado PM publicamente desafiado por ministers & backbenchers aborrecidos com súbita e feroz eurofilia. O commentariat espelha o caos e os efeitos do Project Fear brotado do Number 10. Regressado à primeira linha pública com a eleição do Mayor of London e a defesa da integração europeia, até o has been RH Ed Miliband anima o Tweetminster com a quimera de estar routing back to the Labour leadership. Misterioso? Não, de todo. Com os reds envoltos no anyone but Corbyn, os blues persistem no fog in the Channel. Avulta aqui o quem, o quê e o como do documento do prestigiado Treasury Select Committee. Atendendo ao quem-é-quem nas fileiras In/Out do euroreferendo, o dedo em riste dos MPs é grave. Respetivamente lideradas pelo Prime Minister Dave Cameron e o Chancellor George Osborne vs RHs Boris Johnson e Michael Gove, a composição do TSC diz do lato desagrado face às campanhas em curso: seis Conservatives, quatro Labourites e um SNP. A censura? Logo na abertura do relatório "The economic and financial costs and benefits of the UK’s EU membership," o Chairman Andrew Tyrie é seco: "The arms race of ever more lurid claims and counter-claims made by both the leave and remain sides is not just confusing the public. It is impoverishing political debate.” A reguada do Con MP por Chichester gera glosa polifónica. Um só exemplo, pois que a isto chamo caçar um bando de perdizes com um só tiro de caçadeira. Escrevendo na Spectator, Mr Peter Oborne reflete o estado de espírito da crescente ala crítica governamental: “The Chancellor and PM are trying every dirty trick in the Blairite book to win a Remain vote.” Em causa estão dolosas artes de plantação ficional em… dodgy dossiers. Nos trilhos do empoeirado voto de 23rd June: Only 23 days to go…

Em dias históricos tão densos quanto os que assinalam as terríveis batalhas de Verdun (France, na I World War) e Jutland (North Sea, na I WW), entre adornos de flores e elites de pinóquios, há ainda um número oficial a assombrar Britain. O censo é fresco e denota a metamorfose observável no berço da mais velha democracia ocidental e na coroa de defensora da fé – o que é mais que as letras na pound coin que escoltam a imagem da Queen’s head com a frase ELIZABETH II D.G.REG.F.D. para significar “Elizabeth II Dei Gratia Regina Fidei Defensor.” Pois o reino de Elizabeth II, by the Grace of God, Queen, Defender of the Faith está a perder os laços com o altar. Em cada 100 bretões, 44 declaram-se cristãos e 8 afirmam professar outras religiões mas 48 dizem não ter fé alguma. — Well! Do remember Master Will in “Richard II:” The love of wicked men converts to fear, that fear to hate, and hate turns one or both to worthy danger and deserved death.

St James, 30th May                     

Very sincerely yours,

V.

A VIDA DOS LIVROS

De 30 de maio a 5 de junho de 2016.

Celebrámos na semana que passou o aniversário, 93!, de Eduardo Lourenço, que acaba de publicar um pequeno e delicioso livro «Crónicas Quase Marcianas» (Gradiva, 2016). Hoje publicamos as palavras proferidas em sua homenagem, aquando lhe foi entregue o Prémio Vasco Graça Moura.

Eduardo Lourenço.jpg

O CULTO DA INDEPENDÊNCIA
A atribuição do Prémio Vasco Graça Moura – Cidadania Cultural a Eduardo Lourenço constitui um ato emblemático de reconhecimento de um percurso intelectual de grande coerência, marcado pela independência de espírito e por uma grande disponibilidade para fazer da reflexão crítica sobre a cultura um desafio permanente à criatividade e ao inconformismo. E a referência a Vasco Graça Moura, poeta e ensaísta, cidadão comprometido, para quem a cidadania e a cultura eram irmãs gémeas, é fundamental, uma vez que sabemos bem não só a admiração que devotava a Eduardo Lourenço, mas sobretudo o sentido da compreensão crítica do magistério do ensaísta, por integrar a cultura portuguesa numa perspetiva ampla e universalista. Se relermos «Heterodoxia», percebemos que o seu autor soube, a um tempo, romper com as leituras unilaterais e as interpretações marcadas pelo preconceito, sem perder a lucidez que permite ver as virtualidades dos diferentes pontos de vista, colocando-se na perspetiva do outro e do diferente. É certo que essa atitude leva por vezes a simplificações ou a abusivos entendimentos, no entanto, a leitura atenta de uma obra tão diversificada e complexa permite entender a força da lição ensaística, na linha de Michel de Montaigne, como insuscetível de qualquer mitificação. Daí a importância do célebre texto publicado em «O Tempo e o Modo» sobre António Sérgio, em 1969, onde (por fidelidade ao espírito crítico) o escritor marca novos terrenos, salientando, porém, o essencial da lição do autor da «Educação Cívica». E pode dizer-se que há no ensaísmo português uma coerência que se articula e enriquece mutuamente, desde a Carta de Bruges do Infante D. Pedro até Herculano e Garrett, continuando na Geração das Conferências Democráticas, na «Renascença Portuguesa», no «Orpheu», na «Seara Nova», na «Presença» e na fecundidade da poética e da narrativa das últimas décadas, que Eduardo Lourenço tão bem soube compreender numa visão premonitória, panorâmica e plural, publicada na revista «Raiz e Utopia» (decisivamente marcada pelo seu magistério e pela referência, diferente mas complementar, de António José Saraiva) no fundamental ensaio «Psicanálise Mítica do Destino Português». O ensaísmo português reforça-se em termos europeus e universalizantes com Eduardo Lourenço – herdeiro da genealogia do que Unamuno designou como «o século de ouro português» («paixão que nenhuma ironia, nenhuma fraqueza mundana puderam de todo apagar»), a que soube adicionar com suprema originalidade o complexo acervo do universo de Pessoa e do «Orpheu».


UM CRÍTICO A ABRIR HORIZONTES
Se é um português que fala, o certo é que a sua reflexão abre horizontes, recusando uma visão fechada ou retrospetiva da nossa identidade, abrindo-lhe novas dimensões, não providenciais ou mitológicas, mas capazes de integrar o imaginário crítico num diálogo diacrónico e sincrónico de diversos tempos e culturas. O autor de «Portugal como Destino» é uma personalidade multifacetada que se singulariza pela coerência entre um pensamento independente e uma permanente atenção à sociedade portuguesa, à sua cultura, numa perspetiva ampla, avultando a reflexão sobre uma Europa aberta ao mundo e nunca fechada numa qualquer fortaleza encerrada no egoísmo e no preconceito. Em lugar de alimentar uma ilusão sobre qualquer lusofonia paternalista ou uniformizadora, o ensaísta alerta-nos para a exigência de entendermos a modernidade como um ponto de encontro entre a racionalidade ou o idealismo e a emotividade dramática e poética. É a imagem e a miragem da lusofonia que têm de ser encaradas a partir da «chama plural» que leva a entender que língua alguma é invenção do povo que a fala, já que é a fala que o inventa. Sob a influência inequívoca de Antero de Quental, como reconheceu em «Poesia e Metafísica», o pensador exprime a sua grande admiração pelo facto de o voluntarismo do autor dos «Sonetos» não abdicar «da referência ética, no sentido mais radical, e esta, por sua vez, só encontra o seu fundamento na referência metafísica e o seu cumprimento como ideal último naquela aspiração que ele designou de “santidade”. Que no final da sua vida a tenha concebido mais sob a forma budista que cristã nada retira à exigência que nela se encarna. A esse título, Antero é o único intelectual comprometido com a ação que não transigiu com o comum espírito do seu tempo». No entanto, «os homens de alta exigência ética e mística – e Antero foi um deles – são sempre um pouco arcaicos» - como salienta, com aguda lucidez, num tempo demasiado carregado de leituras fechadas e definitivas. E se falamos da importância de uma geração que só por ironia pode ser qualificada de vencida, tão grande foi a sua influência, como só acontece para situações absolutamente excecionais, temos ainda de voltar ao facto de ter sido Eduardo Lourenço a ver no «universo» de «Orpheu» o que vai muito para além da circunstância em que se afirmou.


SEMPRE HETERODOXO
Lembremo-nos apenas do estranho encontro de Fernando Pessoa com Walt Whitman. O ensaísta desmistifica-o, dá-lhe uma dimensão diferente da mais difundida e diz-nos: «não foi apenas um só poeta que Pessoa encontrou ao encontrar-se com W. W., mas dois, e mesmo uma multiplicidade imanente deles, a tal ponto a visão de Whitman é a visão mesma da diferença e da multiplicidade cantadas por si mesmas». E assim se chega à chave para a estranha relação de Alberto Caeiro e Álvaro de Campos. O autor de «Folhas de Erva» não é um «mero otimista beato em êxtase permanente diante dos múltiplos aspetos do real, mas antes um otimista trágico que compreendeu um dia o mistério indecifrável da coexistência do bem e do mal, do sol e da chuva dos dias, da luz e das trevas»… Afinal, trata-se de compreender, como demonstra o conjunto da obra de Amadeu de Sousa-Cardoso, que o «universo» de «Orpheu» está na linha de querer ser e agir ao ritmo da civilização de Garrett e Antero. Whitman fez de Pessoa «um outro» - mas, em lugar de ser «o grande Cais anterior e divino», foi «apenas, mas decisivamente, o mais vasto porto cintilando ao sol das coisas reais que o olhar vidente de Fernando Pessoa estava destinado a contemplar». Dou apenas o pequeno exemplo de uma capacidade de ver para além do imediato. E é essa leitura de enigmas que permite encontrar elos de coerência e continuidade na coexistência do heterogéneo e do ausente. Em tempos de incerteza, Eduardo Lourenço representa uma voz de esperança, que apela ao diálogo e à paz, com salvaguarda da liberdade de consciência e do sentido crítico. A sua heterodoxia mantém-se viva e atual em nome do compromisso cívico com a liberdade e uma responsabilidade solidária. A cidadania cultural que se reconhece, corresponde a um apelo permanente e insistente – só o inconformismo, a vitalidade criadora, a compreensão da História e da incerteza, a consideração da diversidade e da complexidade podem valer a pena.

 

Guilherme d'Oliveira Martins
Oiça aqui as minhas sugestões - Ensaio Geral, Rádio Renascença 

JAPÃO: UM ITINERÁRIO DE MUITOS OLHARES

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6. O Japão e o entendimento do mundo
 

   Aqui chegado, procurarei ser breve, espero ser claro e farei por isso. Com algum receio de mim, arrisco recorrer a Alberto Caeiro e pedir, ao primeiro heterónimo de Fernando Pessoa, que me autorize a dizer que o entendimento japonês do mundo se revela num trecho do poema II do Guardador de Rebanhos, que seguidamente transcrevo:

 

          Creio no mundo como num malmequer,

          porque o vejo. Mas não penso nele

          porque pensar é não compreender...

          O Mundo não se fez para pensarmos nele

          (pensar é estar doente dos olhos)

          mas para olharmos para ele e estarmos de acordo...

 

          Eu não tenho filosofia: tenho sentidos...

          Se falo da Natureza não é porque saiba o que ela é,

          mas porque a amo, e amo-a por isso,

          porque quem ama nunca sabe o que ama

          nem sabe porque ama, nem o que é amar...

 

          Amar é a eterna inocência,

          e a única inocência é não pensar...

 

 

   Bem hajam! Muito obrigado pela vossa atenção! 

  

Camilo Martins de Oliveira

A FORÇA DO ATO CRIADOR

 Fratura urbana.
 

“We are passing through a stage in a long progress towards interpenetration, simultaneity, and fusion, on which humanity has been engaged for thousands of years.”, Umberto Boccioni, 1913

 

A Cidade é uma combinação de estratos distintos e justapostos. Não existe um único conceito que estruture e descreva uma cidade que atravessa o tempo. Assistimos, antes a sucessivas interpenetrações, simultaneidades e fusões de conceitos estruturais que definem uma cidade. O presente e o passado coexistem e justificam-se simultaneamente. O conceito que estrutura a cidade do presente só é percetível em confronto com a cidade do passado - rutura ou continuidade?

Nuno Grande em ‘O Verdadeiro Mapa do Universo – Uma Leitura Diacrónica da Cidade Portuguesa’ (2002) identifica oito períodos históricos importantes na cidade de Lisboa:

1.Muralha: A cidade que se define através da muralha é de limite e de fronteira perfeitamente demarcada. As portas são a única transição para o exterior. No exterior desta cidade formam-se núcleos conventuais, funcionalmente completos e independentes.

2.Rossio: Assiste-se ao extravasar da muralha, constitui-se a cidade das aforas fundada através do Rossio. O Rossio é, assim, um espaço polivalente de transição do exterior para o espaço definido dentro das muralhas.

3.Objeto (a cidade ideal): A construção do Bairro Alto, no séc. XVII, em Lisboa inicia a formação de uma nova conceção de cidade: a Cidade Objeto, como conceito de cidade ideal e erudita.

4.Traçado (a engenharia militar): A fundação da cidade moderna, em Lisboa, faz-se por vontade de um cataclismo natural-Terramoto de 1755. Eugênio dos Santos propõe para a Baixa uma matriz totalmente desenhada, traçada, essencialmente, a partir do espaço público, onde o desempenho das infra-estruturas é importante como sistema fundador.
5.Infra-Estrutura: Esta cidade funda-se, no séc. XIX pela integração de novas infra-estruturas na cidade (caminho de ferro, actividades portuárias, etc.). Em Lisboa assiste-se à expansão a Norte pelo traçado da Avenidas Novas - é a cidade da nova burguesia que se afirma através de fachadas opacas e festivas, abrindo-se com grande transparência para o interior do quarteirão.

6.Obra Pública: É a cidade como prolongamento do poder do Estado Novo. Em Lisboa, define-se pelos equipamentos, pelas radiais, pela expansão a Oriente, pela introdução de um Parque Natural da cidade e por ações sociais de habitação.

7.Fratura (Tempo Moderno): Esta é a cidade, dos anos 50 e 60, que duvida da cidade integrada e tradicional e manifesta-se através da Carta de Atenas.

8.Vazio e Emergência: Esta cidade define-se pelo espaço residual entre volumes emergentes, pelo crescimento incontrolado da periferia, pelo abandono e degradação do construído histórico.

 

No contexto de ruptura e descontinuidade urbana insere-se o período Fratura, ilustrando e justificando em parte a atual conjuntura urbana a que assistimos.

 

“A modernidade é uma estrutura histórica de câmbio, de uma prática social e modo de vida articulado sobre a transformação, a inovação, mas também sobre a inquietação, a instabilidade...”, Jean Baudrillard
 

Modernidade incontestada: Os CIAM (Congresso Internacional da Arquitetura Moderna) constroem uma unidade urbana em ruptura total com o vocabulário do passado. A estrutura é rígida e aparece como resposta social aos problemas gerados pela cidade industrial (aumento demográfico, êxodo rural, condições insalubres e inumanas de vivência nos novos bairros ocupados por operários). A resposta eficaz e imediata para a cidade, de então, que se expande sem controlo situa-se na concretização de conceitos como: espaço, ar e luz para todos sem exceção; separação evidente entre trabalho, habitação, lazer e circulação; libertação urbana da complexidade da cidade consolidada.

Estamos perante um formulário urbano restrito e abstrato?

Estamos perante uma causa. Objetiva-se solucionar as necessidades de todos com recurso a tecnologias massificantes e standardizantes (o fenómeno industrialização, aqui é fundamental), sobretudo porque se acreditava que a arte, a arquitetura e a organização urbana deixariam de ser um reflexo da sociedade existente para se tornarem um dos instrumentos privilegiados de sua reconstrução (Anatole Kopp, 2002).

O Belo, no modernismo situa-se, somente, no domínio das preocupações utilitárias. A habitação social coletiva é o meio programático de experimentação ideal.

O formulário, porém manifesta-se restrito assim que, no período que se segue à Segunda Grande Guerra, se torna urgente reconstruir. As convicções ideológicas são substituídas por convicções pragmáticas e eficazes. A fratura instala-se, inevitavelmente, na cidade de então.

Modernidade questionada: O pragmatismo sem convicção, imposto à cidade Moderna do pós-guerra e as fraturas que gerou, justificou novas experiências urbanas. Essas experiências inserem-se no contexto Neo-Realista gerado no Sul da Europa e ‘onde se repegavam conceitos subalternizados pelo Movimento Moderno – lugar, continuidade tipológica, identidade cultural – a partir de análises e de modelos sociológicos assentes num conhecimento direto e empírico da realidade.’(Nuno Grande). Esta nova atitude permanecia coordenante com o Moderno na causa social que reivindicava e descrevia-se discordante na ruptura que evitava ao entender a cidade consolidada.

 

Ana Ruepp

JAPÃO: UM ITINERÁRIO DE MUITOS OLHARES

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5. Arte e literatura: subtileza, silêncio e sombra
 

   Sendo basicamente uma tradução seu Nihon Bunka Shi (História da Cultura Japonesa), o ensaio do professor Ienaga Saburo intitulado, em inglês, Japanese Art: a Cultural Appreciation, percorre a evolução faseada da cultura nipónica, desde a idade da pedra até ao fim da era Edo. Pretende assim identificar as principais fisionomias do desenvolvimento dos vários aspetos da cultura japonesa durante o que se pode chamar período anterior à modernização -- isto é, o período anterior à Restauração Meiji de 1868 e a resultante introdução, em larga escala, de aquisições da ciência e tecnologia ocidentais, tal como da revolução industrial, que por sua vez conduziram ao desenvolvimento de uma sociedade capitalista. Como digo no prefácio deste meu itinerário, o Japão que desta vez viemos visitar é sensivelmente esse, ou seja, o que começa no século VI / VII, com reminiscências das tradições antigas, anteriores ao registo escrito, e se prolonga até quase ao fim do século XIX, quando o Império do Sol Nascente começa a tornar-se -- e a impor-se como -- uma forte potência mundial. Para simplificar, digamos que se trata do Japão clássico.

   Nas suas conclusões, o professor Ienaga aponta como primeira característica da cultura japonesa, ao longo da história, a falta de interesse na questão do conflito. E recorre ao filósofo e historiador Tsuda Sokichi (1873-1961) para afirmar que "bem", para um japonês, significa conformidade à ordem social e às autoridades, do mesmo modo que opor-se-lhes é "mal". A distinção entre bem e mal desenha-se claramente nesta definição. Mas "bem" não é apanágio de uma pessoa de altos ideais e devoção ao melhoramento de toda a humanidade. Em vez disso, significa o tipo de pessoa que sempre se dedica à manutenção do status quo e que obedece às leis do que se chama giri, palavra que é por vezes imperfeitamente traduzida por "justiça social", mas que traz com ela conotações de toda a espécie de obrigações e responsabilidades. [Sobre o giri escrevi a páginas 161 e 162 do meu Fomos em Busca do Japão, ilustrando com um exemplo respigado na literatura japonesa da era Meiji, precisamente do romance autobiográfico A Bailarina de Mori Ogai (1862-1922)]. Continua Ienaga: Pelo contrário, uma pessoa má será aquela que tenta dar rédea livre aos seus próprios desejos pessoais, e não, necessariamente, a pessoa fadada viciosa, de diabólica natureza, que considera o mal uma fonte de regozijo e que tenta espalhar destruição na própria vida humana. Tsuda fez esta análise sobre a literatura do período Edo, mas eu creio que pode ser vista como um comentário sobre uma característica que persiste através da cultura japonesa. Subjacente a este pensamento, há muita subtileza: não se dramatiza a luta entre o bem e o mal, as razões desta devem ser achadas no mais profundo da alma e condição humanas, têm a ver com o homem e a sua circunstância, sim, não somente com as obrigações do giri, mas, mais ainda, com a natureza ou a lembrança desse cordão umbilical, já que a frase de Ortega y Gasset -- estou sempre a lembrá-lo -- el hombre es un transfuga de la naturaleza encontra, na cultura japonesa, na literatura como nas artes plásticas, o sentimento contrário, esse de que o ser humano está indissociavelmente unido à natureza... A ideia de culpabilidade é outra. A pintura nipónica sempre privilegiou os temas da natureza, designadamente os símbolos -- retratados na fauna e na flora -- da sucessão das estações, ilustração clara do círculo do tempo, ou de como é aparente o conflito, já que as caras -- ou as verdades -- são aparências do mesmo ser. Daí serem inúteis e perigosas as palavras e as definições, mas sempre útil e generoso o silêncio, tal como essa busca da sombra em que se abrigam os segredos da alma e da concórdia. Silêncio e sombra são irmãos gémeos: para se escutar bem, é necessário fechar os olhos; e estes veem melhor quando não se distraem por aparências. Há um exercício de tiro ao arco, ainda hoje praticado, de inspiração zen, que nos ensina a acertar bem no centro do alvo se tivermos os olhos fechados no momento do disparo. Diz Pascal que le coeur a des raisons que la raison ne connaît pas; parafraseando, digo agora que le coeur a des visions que la vision ne connaît pas...

   Para primeira abordagem de todos esses temas, digo quanto baste no Fomos em Busca do Japão. Mas, para este itinerário de muitos olhares, parece-me interessante, pensando sobretudo em visitas a templos de Kyoto como o Shoren-in, o Chion-in, o Nanzenji, e mesmo o Myoshinji, ou ainda o palácio Nijojo, falar da pintura de interiores -- sobre portas deslizantes, paredes, divisórias e biombos -- do período Heian, em que os temas são tirados da natureza ou de acontecimentos humanos. A esse universo se tem chamado "pintura das quatro estações", não só porque estas se encontram identificadas pelo curso dos astros, pela flora e fauna, mas porque as pessoas também surgem nos atos sociais pertinentes a cada época, conformes a calendários estabelecidos: peregrinações, festivais, celebrações em templos, etc. O professor Ienaga Saburo observa bem que ambas [as cenas da natureza e as com pessoas] são apresentadas em harmonia, nunca em conflito. Por exemplo, se o tópico for ameixeiras em flor, a pintura mostrará algo como raparigas entrando num jardim para ver as árvores. Se o assunto forem gansos selvagens, as aves provavelmente surgirão associadas a viajantes… ...Quando são ostensivamente dedicadas à descrição de coisas naturais, as pinturas incluem o humano, porque os pintores olhavam o homem e o seu ambiente natural como intimamente ligados entre si. Mesmo no género de pintura conhecido por "meisho-e", ou pinturas de lugares famosos, representações objetivas de cenas populares eram frequentemente meras cópias de pinturas das quatro estações com acrescentamento de trechos de poemas. (Há, neste museu, um biombo do 1º quartel do século XVIII, representando Itsukushima, célebre santuário shintoísta rodeado de templos budistas, precisamente na "ilha do templo" ou Myajima, em frente de Hiroshima, que comentarei precisamente pelo modo como anima com gente a representação de um lugar famoso]. Pinturas tratando do amor de homem e mulher, assunto de interesse puramente humano, tratado ao jeito de novelas, ligam as aventuras amorosas às mudanças de estação. Estes e outros exemplos semelhantes tornam claro que a pintura Yamato-e -- ou de tradição nipónica -- interpretava e exprimia o homem e a natureza numa relação de inseparável unidade. E não só a pintura que, aliás, como já referi, surge muitas vezes a integrar a caligrafia de um poema, mas de outros modos vários a sensibilidade japonesa vai insistindo nessa relação ontológica com a natureza. Quem tiver lido, ou vier a ler, o Genji Monogatari, ou qualquer haiku ou demais poesia japonesa -- ou mesmo romances modernos, como os do prémio Nobel Kawabata -- notará certamente que está lá, sempre presente, uma qualquer marca dessa intimidade da natureza no ser humano. Esta nipónica alma, enquanto modo muito próprio de pensar e sentir, deve-se, creio, ao tal amae -- que gosto de definir como a saudade irrecuperável do leite materno ou como uma espécie de resistência a transfugir da natureza -- talvez, quiçá, também ainda, ao mito inicial de um totalitarismo telúrico, ou à sageza budista de que ganhar é não desejar... Amae é aspirar-se à benevolência para connosco. Seja o que e como for, nos momentos críticos -- assim reza a História -- o ninjo dos afetos foi sendo vencido pelo giri das obrigações, por esse imperativo de disciplina e lealdade social, que levou tanta gente a morrer pelo seu chefe ou senhor, inclusive cometendo sepuku ou harakiri, se entretanto poupados pelo inimigo, desde os samurai das guerras feudais aos kamikaze que, aviadores suicidas, gritavam na 2ª Grande Guerra Tenno Henka banzai!, longa vida ao divino imperador...

   Mas, ficando pelos afetos, não posso deixar de referir, para além do Byodo-in, sobretudo pela expectativa do sol que iluminará Amida, mas também pela harmoniosa integração do templo na natureza circundante, o santuário de Toshogu, em Nikko, a nordeste de Tokyo, exemplo máximo do que já chamei barroco Tokugawa, ainda mais conivente com a verdura e o porte do bosque que o rodeia. Outra visita imperdível, como a Villa de Katsura, a sudoeste de Kyoto, insuperável arquitetura de segunda residência da nobreza nipónica, em que cada sala se vira para o silêncio e sombra da meditação interior ou se abre para a surpresa constante da visão da natureza. Até tem uma destinada a ver-se a lua cheia...

 

Camilo Martins de Oliveira

VILARINHO DAS FURNAS

São Bento de Porta Aberta fica muito perto de Vilarinho das Furnas, a bela aldeia enterrada viva, em nome da civilização que, só destruindo uma outra que por lá vivia e bem na lei natural da vida, se conseguiu impor em tirania total, ou não fosse na suposta defesa de qualquer coisa que não dos homens e das mulheres, ou das suas legítimas esperanças de salvaguarda ao seu viver em justa paz.

São Bento de Porta Aberta não se consolará nunca neste colo de pedras condenadas a morrer sem triunfar.

E eu só assim sei mostrar a cúpula do mundo.

 

Teresa Bracinha Vieira

Maio 2016

ATORES, ENCENADORES (LXXVII)

  

O ESPETÁCULO TEATRAL EM CAMÕES E ANTÓNIO RIBEIRO CHIADO

Recuamos hoje até meados do século XVI.

O espetáculo teatral, ao longo dos anos de 500, terá perdido a dinâmica e a abrangência que Gil Vicente lhe legou. E mesmo a nível de textos, a qualidade regista como que uma quebra, em relação aos parâmetros vicentinos, mas também ao conjunto de outros géneros e expressões literárias e artísticas.: o que não significa uma total ausência de valor.

Há aqui um certo paradoxo. Todos bem sabemos que não é na vertente dramatúrgica que Camões atinge os píncaros excecionalíssimos da sua obra. Mas também todos temos consciência de que António Ribeiro Chiado atinge o seu mais elevado nível precisamente, na vertente dramatúrgica.

 E não estamos a compara-los entre si. Ou melhor – até podemos dizer que, na especificidade das dramaturgias respetivas, o Chiado não desmerece tanto: mas no conjunto global das criações respetivas, qualquer comparação seria perfeitamente descabida, para não dizer absurda!...

Posto isto, o que nos interessa agora é evocar o espetáculo teatral da segunda metade do século XVI: e encontramo-lo diretamente evocado em duas peças que precisamente retratam e documentam o meio teatral da época. São elas, o “Auto de El-Rei Seleuco” de Camões e o “Auto da Natural Invenção” do Chiado. Sem entrar em méritos relativos ou comparativos, salientamos entretanto um aspeto aglutinador: ambas as peças, cada uma a seu modo e a seu jeito, põe em cena situações de “teatro no teatro”: representações de peças por grupos de amigos ou familiares.    

O “Auto de El-Rei Seleuco” terá sido escrito entre 1543 e 1549 e evoca uma figura destacada da corte de D. João III, o Cavaleiro Fidalgo Estácio da Fonseca, Almoxarife e Recebedor das Aposentadorias da Corte. Trata-se com efeito de uma récita de teatro representada em casa do próprio Estácio: e a anteceder o Auto propriamente dito, temos uma cena em que o próprio dono da casa dialoga com um chamado moço-criado sobre o espetáculo que irá ter lugar e os atores respetivos:

«Estácio – São já chegadas as figuras?/Moço – Chegadas são elas quase ao fim das suas vidas./ Estácio – Como assim?/ Moço – Porque foi a gente tanta que não ficou capa com frisa, nem talão de sapato que saísse fora do couce. Ora vieram uns embuçadetes e quiseram entrar pela força: ei-lo arrancamento na mão: deram uma pedrada da cabeça do Anjo e rasgaram uma meia calça ao Ermitão; e agora diz o Anjo que não há-de entrar, até não derem uma cabeça nova, e o Ermitão até não lhe porem uma estopada na calça. Este pantufo se perdeu ali; mande-o vossa mercê apregoar nos púlpitos que não quero nada alheio./Estácio – Se ela fora outra peça de mais valia, tu botares a consciência pela porta for apara a meteres em tua casa»…

Ora bem: no próprio “Auto de El-rei Seleuco” o Chiado é expressamente referido com alguma ambiguidade. Num diálogo entre dois personagens, Martim Chinchorro e o Escudeiro Ambrósio, este conta como contratara o Moço Lançarote:

«Ambrósio - Aqui me veio parar às mãos, sem piós nem nada; e eu por gracioso o tomei; e mais, tem outra coisa: que uma trova fá-la tão bem como vós, ou como eu, ou como o Chiado»…

Por sua vez, o Chiado, no “Auto da Natural Invenção”, põe também em cena um diálogo preparatório da representação de um espetáculo em casa de uma figura do corte. Falam o Dono da casa e o criado Almeida:

«Dono – Almeida!/ Almeida – Senhor?/ Dono – Vem cá, vem cá! Sabe se há-de tomar o porto/hoje este auto, ou se é morto./Almeida – E o autor onde está?/ Dono- Em casa de teu avô torto,/ ou marmelo pela perna!/ Quem seus rapazes governa/sua casa é mais rapaz, e rapaz que tratos traz/ com quem a malícia inverna./ Que te mandei todioje?/ Almeida – Que mandou Vossa Mercê?/ Dono – Já nada pois que assi é/ não hade Deus que tenoja»…

O Auto acaba por ser feito, apesar das restrições do Dono, para quem o Auto é devassidão, confusão, desonra e risco de segurança da casa. Talvez porque, como escreveu Luciana Stegagno Picchio, «A Natural Invenção tal como as peças espanholas e inglesas que tratam do mesmo assunto, põe-nos em contacto direto com a menosprezada e pitoresca chusma de comediantes que em Portugal no seculo XVI já tinha assumido uma fisionomia própria bem definida» – expressão rigorosa do meio teatral da época… (in “História do Teatro Português” – 1964, pag. 102). Aliás o designado Autor é, na época, muitas vezes, o que hoje designaríamos como encenador: mas desses, nem se fala!  

E vejamos, para terminar, ainda uma referência ao Chiado, na comédia “Aulegrafia” da autoria de Jorge Ferreira de Vasconcelos. Aqui, dialogam dois personagens, D. Galindo e D. Ricardo:

«D. Galindo – Ah desumana cegueira,/ que trago os olhos quebrados/ para chorar/ todos os gostos passados (…)/ D. Ricardo – Isso é vosso?/ D. Galindo – Senhor, não. É do escudeiro Chiado./ D. Ricardo – Em algumas coisas teve veia esse escudeiro» …

Teófilo Braga enfatiza esta citação e relaciona-a com a referência de Camões que acima se transcreveu: «não carecia de mais para a sua imortalidade». (in “História da Literatura Portuguesa – Escola de Gil Vicente e Desenvolvimento do Teatro Nacional”- 1898 pag. 83).

DUARTE IVO CRUZ

A LÍNGUA PORTUGUESA NO MUNDO

Estátua_da_Justica_(Palácio_da_Justica_do_Porto)

VII - O DIREITO DA LÍNGUA  

Língua e Direito são fenómenos culturais, dinâmicos, evolutivos, sociais e universais. Ambos têm vida e se transformam, tendo a tradição, atualização e evolução como traços comuns. São mutáveis, factos culturais de vocação normativa e conhecedores da polissemia. Se o Direito é um sistema de normas, a Língua, com as suas regras gramaticais, também o é. Há uma ligação e parentesco entre estas duas realidades, com reflexos e consequências na proteção das línguas, em conjugação com os respetivos interesses dignos de serem tutelados juridicamente, o que está estreitamente relacionado com o direito da língua e os direitos linguísticos. Direitos linguísticos que podem ser vistos como direitos positivos dos ordenamentos jurídicos internos ou supranacionais, ou como direitos humanos de terceira geração, sejam autonomizados ou absorvidos pela noção de identidade etno-cultural ou pelo direito do património cultural. Tais direitos, aceitando a trilogia de valências de âmbito material, espacial e temporal, estão intimamente relacionados com a proteção do “corpus” ou materialidade da língua, com o equilíbrio entre diferentes línguas no plano nacional, internacional ou supranacional e, por fim, à volta da necessidade da sua preservação e dos limites da sua difusão e expansão.  

O que nos transporta para o estudo do direito da língua, um direito linguístico complexo, um direito objetivo e normativo de leis que fixa os direitos e as obrigações entre os indivíduos nas suas relações linguísticas. Um direito relacionado com a ciência jurídica, com a língua como meio de comunicação e a sua prática. Uma disciplina ou ramo embrionário e nascente da ciência jurídica.
O estudo metódico e rigoroso do direito da língua (ou linguístico), como direito objetivo, ainda não se autonomizou com dignidade, nem emergiu como disciplina jurídica ou ramo do direito, quer a nível doutrinário, da jurisprudência, da conceção e construção jurídica de conceitos, no sistema legal da maioria dos Estados de Direito, que saibamos, a começar pelos da União Europeia, desde logo por Portugal, onde é, no essencial, tido como parte integrante do direito cultural e do direito do património cultural. Se bem que se avance, trata-se ainda de uma lacuna injustificável numa era global de interação permanente com o fator língua. Ao invés do que já sucede com o direito de autor, da propriedade intelectual, do ambiente, bancário, cambial, financeiro, do consumidor, do mar, marítimo, do património cultural, do urbanismo, entre outros, por certo não menos meritórios, mas que, à partida, não merecem maior autonomização que o direito da língua, por maioria de razão sendo esta, pela sua natureza intrínseca, uma caraterística comum a todos eles.
Têm sido preferencialmente sociolinguistas a estudar a temática linguística numa perspetiva jurídica, dada a interdisciplinaridade entre a sociologia linguística e o direito da língua, sendo premente, em termos jurídicos, uma mudança de atitude, através de estudos e trabalhos regulares e sólidos de construção jurídica de conceitos, em detrimentos de meras análises pontuais de direito linguístico positivo ou comparado.

Refira-se, por fim, que entre as plúrimas valências da língua portuguesa, além de se poder falar da língua como um bem jurídico objeto duma disciplina ou ramo jurídico (embrionário e incipiente) da ciência jurídica ou do direito (sem esquecer a que a tem como objeto direitos subjetivos), há que ter presente a vertente relacionada com o seu papel como língua do Direito, incluindo o direito português, o direito lusófono, o euro-comunitário e o direito pactício internacional, por ser parte integrante da cultura lusófona, europeia, africana, americana, asiática e mundial. Omissões a suprir, com as necessárias adaptações e contributos dos restantes países membros da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa, através de uma política multilateral concertada e programada.   

02 de maio de 2016

Joaquim Miguel De Morgado Patrício   

LONDON LETTERS

    

A quiet Queen’s Speech, 2016

As métricas oferecem ângulos admiráveis sobre a realidade em volta. Her Majesty apresenta em 14 minutos o programa governamental para a nova sessão na House of Commons enquanto o líder da Most Loyal Opposition toma 41 a declarar que there is another way to run things. Já os Tories Euroceptics e os Labour MPs unem forças e introduzem uma emenda legislativa, histórica, aliás, pois a última data de 1924, a notar que falta no teor do Queen’s Speech 2016 exigível iniciativa para eximir o NHealth Service dos planos da Transatlantic Trade and Investment Partnership. — Chérie.

 Celui-la fait le crime a qui le crime sert. Austria vota a 50% em Herr Norbert Hofer para presidente. O engenheiro do FPÖ ‒ Freiheitliche Partei Österreichs é o primeiro político da far-right quase eleito nas democracias ocidentais desde a II World War. — Hmm! Who eats chicken, chicken comes to him. Julga-se saber que o Chilcot Inquiry censura severamente Whitehall e causa grave rombo reputacional nos decisores da Iraq War. A queda de um jet da EgyptAir no Mediterranean Sea eleva o alerta da ameaça terrorista. O Kosovo figura na mira do Isis. A New Yorker mede a passada na White House Race: "Columnists and magazines that a month ago were saying #NeverTrump are now vibrating with the frisson of his audacity." Uma mulher, afroamericana e abolicionista, Mrs Harriet Tubman, substitui o President Andrew Jackson nas notas de US $20. Antecipando as vagas do TTIP, o debate sobre o livre porte de armas começa no UK. Ativistas do Greenpeace escalam as colunas do British Museum em protesto contra mecenas petrolífero da exposição “Sinking Cities.” O Chelsea Flower Show abre amanhã as portas.

Light rain showers within a warm environment em Central London. A pompa e circunstância do State Opening of Parliament ainda está no ar, tal qual o spin & counterspin sobre as medidas mais abrasivas. Elizabeth II lê o discurso oficial do Cabinet no trono da House of Lords e na presença dos membros das duas câmaras, na sequência do rito do Black Rod. O mensageiro convocara os Commons para o ato da unidade política dos reinos unidos, batendo na sua porta, logo fechada em sinal de indisputável independência e só aberta depois de três toques. Segue-se a procissão de ministros e de deputados pelo Central Lobby, liderada pelo Speaker RH John Bercow, nesta sessão apimentada pela frieza do Opposition Leader RH Jeremy ‘Red’ Corbyn face a cordial Prime Minister David ‘Blue’ Cameron. Her Majesty abre o novo ciclo político com todo o fausto. A Imperial State Crown viaja até Westminster Square na Queen's Diamond Jubilee State Coach como símbolo maior da soberania da monarca. Ouve-se a orientação do executivo em sede parlamentar. Os conteúdos são relativamente inócuos, mas Downing Street enfatiza a reforma do sistema prisional e a prevenção do terrorismo a par de uma nova British Bill of Rights. Nesta linha programática de que algo importa mudar, soam os alarmes da segurança em Buckingham Palace com um intruso a escalar os muros da residência real. Segundo informação ouvida em Westminster Magistrates’ Court, o visitante é um indivíduo a cumprir pena de cadeia por homicídio, ocasionalmente "on license" e que persiste numa mesma questão ao ser detido após dembular dez minutos pelos jardins reais: "Is Ma'am in?" 

As atenções permanecem sobremaneira centradas na vivíssima campanha do referendo Yes/No à European Union.” Surgem mais consistentes sondagens quanto à disposição dos eleitores, denotando pendor Brexiter em England e Bremainer em Scotland com Wales e North Ireland somewhere between. Analisadas as cifras, sobra que os indecisos tudo decidirão ao fim do dia. A batalha dos argumentários prossegue, quente, muito quente, fogueada por interessantes estatísticas do mercado de trabalho: há mais 414,000 pessoas a laborar por cá, dos quais 50% são continentais! Ora, depois do aviso quanto a potencial rastilho da III World War, o dueto Cameron & Osborne agiganta o espantapardais financeiro: “Our economy in serious danger,” diz o PM; “Britain's economy would be tipped into a year-long recession if the UK votes to leave the EU, valida o Chancellor of The Exchequer. So, follow the money. O guião tem falhas. Se assim é, cabe perguntar, por e para quê agenda HM Government tão arriscada consulta? Alheio à confusa pugna de Blues on Blues (ou David vs Boris J), o Labour Party surfa a onda e aposta num Economic winner: a refundação do sistema capitalista, segundo a masterplan da honorável dupla Jez Corbyn & John McDonnell, exposta na Fabian Summer Conference 2016. No acelerar da contagem decrescente do voto de 23rd June: Only 30 days to go…

And now something not entirely different… A BBC 4extra tem no ar a dramatização de “The Churchills ‒ Speaking for Themselves.” O radiodrama ilumina os principais marcos da vida de um aristocrático casal que marca a história do século XX e baseia-se nas cartas trocadas entre Sir Winston Spencer Churchill (1874-965) e a esposa Clementine Ogilvy Hozier (1885-977), depois, por direito próprio, Baroness Spencer-Churchill. A correspondência abre aos primeiros contatos, em 1904, após uma dança em Crewe House, atravessa curta courtship em 1908 e mantém-se ao longo do casamento de seis décadas que baliza muito do mundo político no qual hoje vivemos e é desde logo marcado pelas duas guerras mundiais. Celebrado a 12 September na Church of St Margaret's, em Westminster, e nenhuma outra senão a paróquia anglicana da House of Commons, este é um enlace feliz e nele nascem Diana, Randolph, Sarah, Marigold e Mary.

A cuidada edição do correio privado cabe justamente à ativa Baroness Soames (falecida em May 2014) e “The Personal Letters” vêem estampa em 1999. A Four+ faz agora de Mercury e recupera as linhas de cumplicidade do doce casal, protagonizado nas sintonizadas vozes de Mr Alex Jennings (como W "Pug") e Mrs Sylvestra Le Touzel (C "Cat"). — Well! Always, with everybody and in all circumstances do as told by Master Will in “All's Well That Ends Well:” Love all, trust a few, / Do wrong to none.


St James, 23th May                     

Very sincerely yours,

V.

A VIDA DOS LIVROS


De 23 a 29 de maio de 2016.

«A Reconstrução de Lisboa e a Arquitectura Pombalina» de José-Augusto França (Biblioteca Breve, Instituto de Cultura Portuguesa, 1978) serve-nos de roteiro fundamental para uma peregrinação lisboeta, quando se encerra a Festa do Chiado 2016. E a Biblioteca Breve é uma preciosidade.


O TERRAMOTO DESTRUIDOR
«Na altura do terramoto, um memorialista digno de fé, Ratton, descreve (a cidade de Lisboa) num “recinto fechado que abrangia o bairro da Alfama, bairro do Castelo, Mouraria, rua nova, Rossio, bairro alto, Mocambo, Andaluz, Anjos e Remolares”, contando no resto, que depois conheceu princípio de urbanização, Santa Clara e Sant’Ana, o Salitre, Cotovia de baixo e de cima, Boa Morte e Alcântara, “apenas algumas casas aqui e acolá, à borla de caminhos que atravessavam por terras cultivadas”». Duas obras resistiram da cidade antiga: um bairro contruído desde o século XVI, o Bairro Alto, que beneficiou da vizinhança de S. Roque e da casa professa dos jesuítas e o Aqueduto, quem França se considerava ser «a mais magnífica e a mais sumptuosa empresa do género». A catástrofe em quase nada atingiu estes dois elementos urbanos, mas, ao invés, o luxuoso Teatro de Ópera, inaugurado sete meses antes do terramoto, foi arrasado. Dois terços das ruas da cidade ficaram impraticáveis, das quarenta igrejas paroquiais, trinta e cinco desmoronaram-se, apenas onze conventos ficaram habitáveis. O Núncio Apostólico calculava que haveria quarenta mil mortos. Carvalho e Melo preferiu falar de 6 a 8 mil, mas o número correto teria sido de 12 a 15 mil… O rei D. José foi poupado, uma vez que estava em Belém, jurando a partir de então não mais desejar dormir em casa de pedra e cal. Daí ter sido construída no alto da Ajuda, a «Real Barraca», em madeira, que viria, mais tarde, a ser consumida pelas chamas. Perante um panorama desolador, haveria que «enterrar os mortos e tratar dos vivos», na fórmula tornada célebre da boca de Sebastião José, homem forte do novo tempo, mas que poderia ter sido proferida pelo duque de Lafões, Regedor das Justiças, que formava com o presidente do Senado da Cidade, marquês de Alegrete, e com o marquês de Marialva, Governador das Armas, a estrutura da governança de urgência. O futuro marquês de Pombal torna-se ministro do Reino e rodeia-se do Estado-Maior do Exército para tomar as medidas urgentes e lançar de imediato a reconstrução da cidade. Houve quem dissesse que emergiu um segundo terramoto – o político, mercê do futuro marquês de Pombal.


SOB O SIGNO DOS ENGENHEIROS
A Engenharia militar pontua, com decisiva influência. O General Manuel da Maia, engenheiro-mor, com os seus quase oitenta anos, e uma longa folha de serviços sob o reinado de três monarcas, apresenta as alternativas para a reconstrução: «as cinco hipóteses (…) podem classificar-se em duas ordens: na primeira vemos reedificar-se a cidade tal como era dantes, melhorada apenas pelo facto de serem novos os edifícios, mas vemos também (diz J.-A. França) alargarem-se as ruas para melhor serventia e maior formosura do conjunto, e vemos ainda, de acordo com uma prevenção constante de Manuel da Maia, reduzir os edifícios reconstruídos à altura de dois pisos sobre as lojas. Na segunda ordem de programas encontramos duas ideias radicais: arrasar o que restava da cidade velha, na sua parte central, ou baixa, mais danificada pelo terramoto, e planifica-la com inteira e conveniente liberdade; ou abandonar a Lisboa antiga ao seu destino, deixando os proprietários dos prédios derruídos agir à sua vontade, e edificar outra, completamente nova, para os lados de Belém, aliás menos flagelados pela catástrofe – ideia que, de resto, andava no ar e teve eco numa correspondência da altura para o “Journal Étranger” de Paris». Este trabalho de reflexão é muito rico. Maia inclina-se para uma profunda renovação. Além de Belém, fala ainda na hipótese de S. João dos Bem-casados (hoje Amoreiras) – ou até de Buenos Aires (ou seja, atual Lapa). Entretanto o jovem capitão Eugénio dos Santos, arquiteto do Senado da cidade, desenha arruamentos e edifícios, e para cada uma das ruas «a mesma simetria em portas, janelas e alturas». Os exemplos de Londres e Turim estão bem presentes, em nome do arejamento e do espaço para circulação. E aparece ainda o tenente-coronel Carlos Mardel (húngaro, chegado a Portugal em 1733, protegido da rainha Habsburgo), ao lado de Gualter da Fonseca e Elios Poppe. Prevalece o traçado ortogonal regular da autoria de Eugénio dos Santos (que morreria prematuramente em 1760), dois polos – o do Rossio e o a futura Praça do Comércio (antigo Terreiro do Paço). Havia que abrir espaços de grande dignidade, que definissem o espírito da cidade. Por outro lado, o Passeio Público «oferecia timidamente um contraponto ao sistema racional do pombalismo, como se apresentasse, no quadro do seu Iluminismo, a face da natureza que nele paradoxalmente se integrava, em possível anúncio romântico». Os prédios de rendimento obedecem uma disciplina racional e regular, segundo uma hierarquia no tocante aos requisitos de qualidade, sendo os prédios das três ruas principais ou nobres (que ligam a Praça do Comércio ao Rossio) de maior exigência. A disciplina é, no entanto, rigorosa quanto ao cumprimento de uma certa uniformidade racional. E há ainda as «casas nobres» que preocupam Manuel da Maia, sendo exemplos, o palácio Castelo Melhor, à entrada do Passeio Público, o palácio do conde de Valadares no Carmo (que viria a ser destinado mais tarde a estabelecimento de ensino, como o Liceu do Carmo), os de Sebastião José, na rua Formosa (hoje rua de «O Século») e das Janelas Verdes (este vindo de um Távora, condenado), além dos palácios Sobral no Calhariz, Caldas na rua da Madalena e Quintela na rua do Alecrim. Quanto ao ritmo da reconstrução, os testemunhos variam – há quem diga que quando Pombal sai do poder cerca de metade está concretizada, outros falam de um terço…


UMA OBRA PERSISTENTE
É a burguesia enriquecida pelos privilégios e monopólios (designadamente as Companhias brasileiras) que mais facilmente vai contribuir para a reconstrução. Note-se que as soluções encontradas são variadas, avultando a Companhia Reedificadora, formada por dois mestres-de-obras que tomam à sua conta a urbanização da encosta que vai da Cotovia a S. Bento. Já a modéstia das novas igrejas paroquiais deve-se à míngua de esmolas, heranças e legados. Quanto aos processos técnicos, refira-se o sistema de «gaiola» para prevenção contra os sismos, para garantir flexibilidade na ocorrência de terramotos. Na zona alagadiça da baixa, adotou-se o sistema de estacaria de pinho verde, tal como na cidade de Amesterdão, de modo a estabilizar a organização urbana. Numa abordagem pragmática, sem grandes laivos de genialidade criadora, as reconstrução da cidade deve-se a uma demonstração de eficácia – em ligação com as medidas nos domínios da economia, do direito, da educação, das manufaturas, das Companhias…Em suma, «o processo de Reconstrução é, no fim de contas, um processo autónomo, que podia correr, melhor ou pior, com maior urgência ou lentidão, independentemente das crises que se sucediam nos outros setores da ação de Pombal. A prova está em que, no momento desejado, o ministro pôde pôr (ou impor) um ponto final no discurso, fazendo erigir, numa Praça do Comércio menos de meio terminada, a estátua que glorificava o êxito da empresa».  

 

Guilherme d'Oliveira Martins
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