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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

CARTAS DE CAMILO MARIA DE SAROLEA

 

 

Hassan Khader

 

   Minha Princesa de mim:

 

   Cheguei ao fim da minha carta anterior a falar-te de noosfera e Teilhard de Chardin. Mas não era o que tinha para te dizer, nem é disso que te quero falar nesta carta. Tampouco irei repetir as minhas considerações acerca da consolidação de poderios financeiros concentrados, a nível mundial, não controlados politicamente, face oculta de um capitalismo que regula os nossos hábitos... Antes te vou referir, Princesa de mim, um artigo publicado no Shaffaf, centro de informação árabe que está na rede, em francês e inglês, com orientação independente. A tese do autor, Hassan Khader, é, em resumo, a seguinte: o terrorismo islâmico não resulta do ressentimento árabe contra o ocidente, antes é consequência do poderio petrolífero. Traduzo alguns trechos do artigo sobre o contágio do homem doente:

 

   Omar Mateen, o assassino de Orlando, que se reclama do Daesh, poderá trazer um número incalculável de votos ao candidato à presidência americana Donald Trump, mas também a candidatos da extrema-direita em vários países europeus. Assim, o Daesh contribui para remodelar o nosso mundo no sentido de inaudita selvajaria, sem fim à vista. E já sabemos que democracia e liberdade, tal como os conceitos de cidadania, igualdade e direitos humanos, adquiridos depois do inferno da 2ª Guerra Mundial, não são irrevogáveis. É certo que há mais de uma matriz do pensamento do Daesh, e podemos mesmo ir buscar as suas raízes a séculos atrás. Mas tal não nos fará desistir da resolução de dizer que o Daesh é, antes do mais, um problema árabe. É um produto do mundo árabe, desse mundo que se tornou no homem doente do nosso planeta. A sua doença afeta a Terra inteira. O fenómeno Daesh não pode ser compreendido se não levarmos em conta, e à cabeça, o súbito sentimento de poderio que os Árabes tiveram com os rendimentos do surto petrolífero (em meados dos anos 70), sentimento que tinham esquecido há séculos. A riqueza petrolífera foi uma viragem. Foi ela que pôs na ordem do dia deles o projeto de islamizar o mundo à força de biliões de dólares e com a colaboração de bancos, empresas, associações, reuniões e conferências, sempre com carácter transfronteiriço.

 

 

   Antes de regressar ao Shaffaf, deixa-me que te diga que tampouco podemos esquecer o ressentimento histórico, não só, nem tanto, o desgosto ou saudade dos passados impérios árabes e do otomano, mas sobretudo o que resulta das ocupações europeias de terras muçulmanas, no século XIX / XX, e, já no XXI, das agressões bélicas nelas movidas pelo Ocidente. Antes deste ter metido o nariz no Iraque, Afeganistão ou Síria, por exemplo, não havia ataques terroristas. Mas tal lembrança não invalida a tese de Hassan Khader que, depois de observar que não houve Daesh durante a guerra da Argélia, nem aquando da ocupação israelita de Jerusalém oriental ou da mesquita Al-Aqsa, nessa cidade, que tanto humilhou o Islão, conclui que isso se deveu a não ser ainda omnipotente o petróleo. Observa ainda como o projeto de islamização do mundo não se afirmou na sequência da derrota na Guerra dos Seis Dias (em 1967), mas depois da "vitória" árabe na guerra de outubro (Guerra do Kippour, em 1973). Os fatores determinantes foram a renúncia do Egipto ao seu papel de líder do mundo árabe, aceitando apenas um lugar secundário, a reboque da Arábia Saudita. E o artigo prossegue assim:

 

   Os iniciadores do projeto de islamização não tinham certamente previsto criar o Daesh tal como este nos aparece hoje. Por isso os seus financiadores e orientadores se viraram contra ele, tal como ele contra aqueles. Isto simplesmente confirma que qualquer projeto de engenharia política e social comporta riscos, a saber, pode escapar aos seus criadores...  

[...] Assim, se o Daesh é um dos resultados do projeto de islamização fomentado pelas monarquias do Golfo, também podemos refletir sobre as razões do seu êxito ideológico e a sua capacidade de recrutar e levar jovens, na flor da idade, a fazem-se explodir no meio de uma multidão. Há, primeiro, a ideia de que o Al-Qaeda e os talibãs derrotaram a União Soviética no Afeganistão (em 1989). Isso concorda com o mito do islão das origens, o tal que derrotou os impérios persa e bizantino. Esta parelha da ilusão afegã e do mito das origens vai inscrever os jiadistas numa história sagrada, que anda a par com a convicção de que se aproxima o fim dos tempos. É o carburante sentimental e simbólico que alimenta todos os movimentos messiânicos. Podemos também atribuir o surto do Daesh à teoria do investigador francês Olivier Roy, segundo a qual a nossa época está marcada pela «santa ignorância», a saber, religiões despojadas do seu contexto cultural e da sua história, conservando apenas uma fé divorciada da cultura.

 

 

Para consultares diretamente o Shaffaf, visita metransparent.com.

 

 

   Camilo Maria

 


Camilo Martins de Oliveira

 

A FORÇA DO ATO CRIADOR

 

A complexidade dos anos sessenta abre perspetivas de mudança.

 

A ironia de Alexandre O’Neill em ‘País Relativo’ na ‘Feira Cabisbaixa’ (1965) dá-nos a imagem fidedigna do que era Portugal, nos anos sessenta, num tempo de transições. Com a força do non-sense o poeta ilustra bem como tudo estava a mudar. O ‘país relativo’ de que falava O’Neill era o lugar de muitos paradoxos e contradições. O país estava a mudar lentamente, mas num movimento uniformemente acelerado. Depois da candidatura do General Delgado, da tentativa do golpe da Sé (1959), do caso do navio ‘Santa Maria’ e da operação dirigida por Henrique Galvão (um antigo fiel do regime, amigo de Delgado), do início da guerra colonial, da revolta dos estudantes de 1962, tudo se ia transformando.

 

A ‘Feira Cabisbaixa’ retrata o absurdo das situações, o choque entre o arcaísmo e a modernidade. ‘País purista a prosear bonito / A ver se faz tão chique e tão pudico, / Enquanto a língua portuguesa se vai rindo, / Galhofeira comigo’. O país relativo contrapõe-se ao país absoluto (‘purista a prosear bonito’). As perspetivas caladas, os cantos surdos, os sufocados sonhos, os orgulhosamente sós, a autosatisfação iam passando à história. A solidão e um certo convite à mediocridade alimentavam uma claustrofobia de que a cultura desejava libertar-se. A atitude oficial é de isolamento em relação às correntes internacionais, mas em contrapartida a abertura de fronteiras revelava a um tempo o absurdo da atitude e a sua insustentabilidade. Era a consideração de uma nova luta imaginária porque todos sabiam que a modernização exigia liberdade política e de criação. E as emigrações testemunhavam essa obrigação. A abertura e a sua necessidade torna-se mais forte do que todos os constrangimentos.

 

Desde os jovens estudantes aos milicianos na guerra de África, passando pelos emigrantes e por uma nova geração de escritores e artistas, um pouco por toda a parte havia novas questões. 

O velho país agrícola, com um quarto da população analfabeta, ia-se movendo. O afluxo das populações às cidades e ao litoral reforçava os dualismos e a desertificação dos campos e do interior.

 

‘Uma coisa que ajudou muito a década de setenta foi a grande emigração, sobretudo para França. O êxodo maciço que esvaziou aldeias inteiras e populações do interior. Sobretudo para a Europa, para as cidades, sobretudo Lisboa. Foi a década em que começaram a aparecer os bairros clandestinos que se começaram a construir à volta de Lisboa, principalmente. O primeiro foi a Brandoa. Foi uma novidade.‘ (Nuno Teotónio Pereira, 2008).

 

No início dos anos sessenta (Ver reportagem BARRETO, António e PONTES, Joana ‘Portugal, Um Retrato Social – Mudar de Vida. O fim da Sociedade Rural.’, Público – Comunicação Social S.A., volume 3, 2007), para fugir da pobreza (em grande parte do país não havia serviços de saúde, educação, correios e bancos; faltava água canalizada, eletricidade, telefones e esgotos), muitos portugueses abandonam o campo – uns partem para a emigração, os restantes ficam para trabalhar na indústria, na construção civil e nos serviços. Com o fim da sociedade rural e com a vinda para a cidade, os portugueses mudaram de vida. Com os novos empregos as pessoas podiam viver melhor. No final dos anos sessenta já havia mais dinheiro – as novas classes médias mudavam de casa, compravam carro e eletrodomésticos e começavam a fazer férias. Uma parte dos portugueses acedeu ao consumo de massas. Durante o período designado por Marcelismo, viveu-se nas cidades um clima de euforia. As cidades aumentaram rapidamente – Lisboa e Porto tiveram de acolher a população vinda do campo. Foi então que cresceram os subúrbios – Loures, Amadora, Vila Nova de Gaia, Matosinhos, Almada. A partir do início da década de setenta, o Estado e as autarquias fizeram um grande investimento nas infra-estruturas. Os serviços e as instituições também cresceram. E por todo o país surgiram escolas, bancos, correios e serviços públicos. As localidades ficaram mais perto umas das outras. A sociedade ficou ligada.

O mundo político ganha novos atores, os anos de 1961 a 1963 são especialmente movimentados. A tradicional hegemonia, desde 1945, do neo-realismo dá lugar a novas tendências, de que é exemplo a revista ‘O Tempo e o Modo’. Mas a pressão maior vem da economia, que regista um crescimento a ritmos muito elevados e inéditos, dando lugar a novas classes médias mais informadas e naturalmente desejosas de um país onde as liberdades públicas fossem reconhecidas como acontecia na Europa.

 

Ana Ruepp 

UM ESTRANHO ENIGMA - capítulo V

 

E nisto Jaime nauseado, não era a primeira vez que lhe dava, em situações de pânico, uns ameaços de vómitos que nunca se decidiam, ficavam ali a atormentá-lo, a embrulhar-lhe o estômago, curioso, pensava, ele que dava piruetas, fazia rodopios, saltava à altura de parapeitos sem vertigens, uma vez até de um terceiro andar, caramba, era um skater reputado lá no bairro, o seu próprio corpo devia mostrar alguma consideração por ele mesmo, e esta sensação que não o abandonava, o andar de embarcadiço, o olhar de marinheiro ausente, já afastar-se do Bar do Bill, enjoado com o cheiro a charro, alheado das interpelações pouco lúcidas do Nelson abraçado à morta ou à gémea da morta, ia dar no mesmo, que coisa, ele até tinha um olhar felino, calculava com precisão as distâncias, raramente se estampava e se acontecia, era defeito do material, um deck bambo, o parafuso do truck que se soltava, as rodas já sem aderência, os amortecedores manhosos, que o Rastapoupolos até nem era mau tipo, mas toda a gente sabia que na oficina dele as peças não vinham em primeira mão, e por isso custavam um terço do preço, mais trabalho lhe dava embalá-las no invólucro certificado a dizer «à prova de contrafação» do que faná-las aos betos das avenidas, coitado, não era mau tipo, a intrujice estava-lhe no sangue, ninguém do bairro levaria a mal se ele confessasse que tiveram muitas andanças e outros donos aqueles skates desmontados, grande maluco o Rastapopulos, devia ser o único brother que Jaime conhecia que tentava adaptar a sua imagem à alcunha que um dia um setôr lhe colocou, vinha de uma banda desenhada qualquer, parece, coisas de cotas, mas a malta achou graça, era exótico e ficou assim, e lá teve o bacano de deixar crescer rastas até às omoplatas, apesar de ter cabelo fino, quase louro, e duas entradas que ameaçavam alopécia precoce, diabos, o enjoo não o largava, também dar de caras com uma morta, e ver a sua réplica minutos depois, sabia lá se tinha ou não sinal na coxa, ainda por cima vinham-lhe à cabeça umas tatuagens demasiado familiares, já tinham passado por baixo dos seus olhos, ou dos seus dedos, numa destas noites de nebulosa, um dragão enrolado a soprar labaredas, funesta coincidência, e isso ainda lhe dava mais tonturas, precisava de acalmar, recuperar forças para enfrentar a fúria da mamã Rosa, por causa da maldita chave, e ainda a da bófia, por causa de um crime que não cometeu, pensando bem, antes a bófia do que a mamã Rosa, não lhe daria tréguas, ela bem o avisou que devia usar uma corrente nas presilhas das calças para não perder a chave nos seus saltos mirabolantes, mas onde se viu um skater de corrente, ia ser a chacota do bairro, pensando bem, antes a fúria da Mamã Rosa, no elenco das iras que tentava hierarquizar, do que ser gozado pelos manos, pá, que um homem não é de ferro, até no pé sentia uma dor, era capaz de ser uma dor reflexa e só agora a sentia, o melhor era beber mais um pouco de água e foi ao passar pelo chafariz que deu por ela, a chave, a rebrilhar, entre as golfadas intermitentes, passou os dedos pelas reentrâncias, não havia dúvidas de que era a sua chave, estava safo, da polícia, da Mamã Rosa, da morta e da sua gémea e nisto passa-lhe a náusea tal como chegara, só aquela dor no pé, que ele, de tão feliz, fazia por ignorar, agora, prometia-se, iria portar-se bem, manter-se à sombra durante uns tempos, bastou para o susto, e nem é tarde nem é cedo, rumaria de seguida à oficina do Rastapopoulos que, além de outras coisas, também fazia duplicados de chaves, era muito dotado o rapaz, estranha esta sensação agora de estar a ser observado, bem o sabia, a sua fama no bairro não o deixava passar incógnito, mas geralmente recebia olhares de apreço ou de medo, não este tipo de olhar de soslaio e que ele não sabia descodificar, bem, havia de averiguar mais tarde, tinha de gozar bem a sensação de alívio, respirar fundo, começava a ouvir uns rumores, grupos de pessoas que comentavam o incêndio, que foi logo extinto pelos bombeiros, antes assim, que se não fossem os soldados da paz a arrombarem a porta nunca dariam pela morena, que se safou por pouco da overdose, diz quem viu que até sangrava pelo nariz, enquanto a transportavam na maca, excelente, meu, não havia morte, não havia homicídio, e se não fosse ele a atear o incêndio a tipa não se salvava, top, queria lá saber da gémea, do sinal na coxa, desde os chuis não suspeitassem, tá-se bem, algo lhe dizia que ainda seriam muito felizes os três, quem sabe, Jaime gostava e sonhar e saltar alto, mexericos, sirenes da polícia, só não percebia bem porque o olhavam, na rua, tão insistentemente, daí a nada haveriam de conhecer a fúria de um Jaime irritado, não era bonito de se ver, ai não era, não, e já ia chegando à oficina do Rastas, sempre cheia de clientela, novos rumores, novas conversas, tinham descoberto uns ténis meio derretidos no pátio da morena, número 43, a polícia procurava um skater incendiário e descalço, Jaime conectou os neurónios à dor no pé, era um facto, tinha andado este tempo descalço, toda a gente cochichava à sua passagem, e além disso, sangrava de um dedo mindinho.  


UM ESTRANHO ENIGMA
| Folhetim de Verão CNC 2016

Ilustração © Nuno Saraiva [Direitos reservados] 

 

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A LÍNGUA PORTUGUESA NO MUNDO

 

X - A LÍNGUA PORTUGUESA NA UNIÃO EUROPEIA

1. Dos idiomas falados na União Europeia (UE), uns estão em crescimento, outros em regressão, alguns eventualmente em extinção no longo prazo. Apesar de a nível europeu o português não ser das línguas mais faladas, o mesmo não sucede se tomarmos como referência o critério objetivo do crescimento demográfico e do número global de falantes. Das línguas oficiais da UE, o português está em décimo lugar, a seguir ao alemão, francês, inglês, italiano, espanhol, polaco, romeno, neerlandês e grego. Em termos globais, é a sexta língua mais falada, a terceira do ocidente, a primeira do hemisfério sul, a terceira de África e do continente americano, a segunda das línguas românicas, latinas ou neolatinas, uma língua da Ásia, internacional e global, dispersa mundialmente, com futuro, impondo-se por si mesma como fator demográfico e geopolítico. Uma língua global no mundo, uma “pequena” língua na UE, estando acima de idiomas mais falados na União, como o francês, alemão, italiano, polaco, romeno, neerlandês, ou mesmo no todo europeu, como o russo e o ucraniano. Também mais falada que o japonês, na Ásia.

Sendo pluricontinental, com uma projeção mais dispersa que o espanhol, com grande procura na China, América Latina, África, suplantando hoje a sua procura, em termos mundiais, a de algumas línguas tradicionais, como o italiano, alemão e japonês, não tem na Europa o espaço que merece. A Europa e seu eurocentrismo tende a considerar as línguas em função da sua população europeia, bem como do nível de desenvolvimento e poder dos respetivos países. Sucede que o português não vale apenas pouco mais de 10 milhões de habitantes, nem o limitado espaço geográfico habitável dos seus falantes europeus, nem a sua deficitária economia, mesmo sendo Portugal um país desenvolvido à escala planetária. Sendo o português a terceira língua europeia mais falada no mundo, a seguir ao inglês e espanhol, é lamentável que não tenha um lugar correspondentemente proporcional na Europa, nomeadamente, e para o que agora nos interessa, na UE.

2. A UE é a organização supranacional e estadual mais avançada a nível do estatuto juslinguístico dos seus membros, consagrando e instituindo o multilinguismo, um pluralismo linguístico geral e uma igualdade linguística de direito, que quis fazer jus ao princípio da igualdade linguística. Só que, a igualdade linguística de facto, é cada vez mais residual, com crescentes regimes especiais e exceções ao regime linguístico geral, em que o multilinguismo já há muito passou a trilinguismo, a um clube cada vez mais restrito de línguas dominantes: o inglês, o francês e o alemão. O futuro das línguas dominadas, entre elas o português, através da sua subalternização factual, pode levar à sua secundarização de direito, podendo esta ocorrer pela substituição, mesmo gradual, do princípio da unanimidade pelo da maioria qualificada. Ou, em alternativa, por uma permissiva e pacífica posse do bem jurídico que são as línguas, com o argumento dos custos excessivos, dando azo àquilo a que alguns qualificam de usucapião linguística. Com a agravante de que no contexto da UE, do seu Parlamento e demais instituições, o português não tem maior preponderância que o maltês, o esloveno, o eslovaco, o dinamarquês, o sueco ou o finlandês, que sem desmerecerem respeito, como todas as línguas, não são similares.

Com a aludida tendência para a fixação de três línguas europeias oficiais e de trabalho, omitindo o português, o mesmo não se percecionando, por arrastamento, se fossem quatro, cinco ou seis, pergunta-se: qual o critério a adotar para escolher as línguas? Pelas que têm maior número de falantes natais na UE? Pelo número global de falantes das línguas da UE? Pelo número de países mais ricos e desenvolvidos da União? Pelos mais pobres? Pelo número global de países onde se falam línguas europeias como idiomas maternos ou oficiais? Pelos países maiores contribuintes líquidos para o orçamento comunitário? Pelo poder global dos países membros, mormente em termos políticos e económicos?

Seja qual for o critério proposto, para Portugal e a língua portuguesa, como prioridade estratégica, o mais aceitável é o do número global de falantes das línguas a nível mundial, apesar do baixo reconhecimento que a Europa e a UE têm tido no que toca a sancionar a dimensão geolinguística do português. Este critério da dimensão geolinguística do português, dado o seu número global de falantes e dispersão intercontinental, é também o que melhor defende os interesses da UE nas suas relações externas, a começar pelos económicos, podendo ser extensivo a outros idiomas em situação paralela, o qual nunca excluiria, nos tempos atuais, a língua portuguesa. É, pois, compreensível que a lusofonia e a Comunidade dos Países de Língua Portuguesa possam ser um contrapeso a esta tendência atual da UE, em coordenação, cooperação, comunhão e conjugação de esforços e intentos com os demais lusófonos e lusófilos, rumo a um critério e perspetiva mais global e universal, e não fundado num pseudoeurocentrismo de prestígio cada vez mais defensivo. 

 

11 de julho de 2016
Joaquim Miguel De Morgado Patrício 

Das Rosas Todavia (pág. 11)

 

 

 

 

 

 

Un chant se lève en nous qui n´á connu sa source et qui n’aura d’estuaire dans la mort.

Saint- John Perse

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Agora resta a loucura de pôr

os pensamentos por escrito

como quem arrasta frutos resistentes

 

e de seu sumo as palavras

antes que a memória

a si se espume

 

e meu passaporte

de monção tanto se turve

que nem à mesa

 

a toalha eu reconheça

essa onde sempre

me enredei em rendas

 

de bilros opalinos

e que, às vezes, já restituo

à ocultação.

 

Teresa Bracinha Vieira

(in "DAS ROSAS TODAVIA", ed. Dinalivro)

 

CARTAS DE CAMILO MARIA DE SAROLEA

  


   Minha Princesa de mim:

 

   Em carta anterior à minha última, já te falava de condicionantes que dificultam maior liberdade de interpretação do Corão e mais dinamismo progressista do Islão. Tal questão é também abordada por Michel Onfray:

 

   Tudo começa com um problema que deu lugar, na filosofia muçulmana, a abundantes debates: foi o Corão criado (tese mutazilita) ou é ele incriado (tese axarita)? Tudo decorre da resposta que se der a esta pergunta. Se o Corão foi criado, foi-o por homens que, mesmo inspirados por Deus, podiam ter-se enganado, porque é humano errar. Se não foi, é diretamente palavra de Deus; consequentemente, é verdade absoluta, e cada vírgula é vontade de Deus...  ...O mutazilismo permite tornar a razão em instrumento de leitura do Corão, porque faz dele um livro escrito pelos homens e podemos lê-lo com os mesmos olhos com que lemos Homero, enquanto o axarismo faz da fé o a priori necessário a qualquer leitura: devemos acreditar, ponto, parágrafo.

  
   E Onfray, conhecedor de correntes contemporâneas do pensamento islâmico, sabe como as muitas contradições detetadas entre passos do Corão - que não se explicam mutuamente, mas antes se excluem - têm justificado a orientação mais racional das escolas muçulmanas herdeiras do mutazilismo (que nasceu em Bassorá, no século VIII). E, em favor dela, cita também este trecho da sura III do Corão: «Há um só Deus, o Poderoso, o Sábio! É Ele que sobre ti faz descer o Livro. Neste encontramos versículos claros - a Mãe do Livro - e outros figurativos. Aqueles cujo coração se inclina para o erro agarram-se ao que é dito em figuras, pois procuram a discórdia e são ávidos de interpretações. Mas só Deus conhece a interpretação do Livro. Os que estão enraizados na Ciência dizem: "Nós cremos nele! Tudo vem do nosso Senhor!", mas apenas os homens dotados de inteligência dele se lembram.»

 

   Pessoalmente, pelo conhecimento que vou tendo de escritos de pensadores islâmicos do nosso tempo, creio que se vão afirmando - à margem e contra o fanatismo de muitos imãs e o terrorismo de alguns movimentos, e também governos, islamistas - correntes e escolas teológicas e sociais que se comprometem com a modernidade do islão e lhe descobrem uma versão universalista que já não assenta em qualquer império.

 

   Nesse sentido, também se impõe uma limpeza do nosso olhar para o mundo. E eu, que não subscrevo, nem a nomenclatura das civilizações que Huntington propõe, nem quaisquer teorias de conspirações ou da fatalidade de conflitos - mas antes e sempre insisto na procura e partilha de pontes e pontos de encontro - recorro aqui a um texto desse professor da Universidade de Harvard:

 

   O Ocidente é a única civilização que teve um impacto importante e por vezes devastador sobre todas as outras. A relação entre o poderio e a cultura do Ocidente e o poderio e culturas das outras civilizações é também uma das chaves do mundo civilizacional. Na medida em que aumenta o poderio das outras civilizações, a atração que apresenta a cultura ocidental esbate-se, e os não-Ocidentais ganham confiança nas suas culturas indígenas e vão-se implicando mais nelas. O problema central das relações entre o ocidente e o resto do mundo é por conseguinte a discordância entre os esforços do Ocidente - em particular da América - para promover uma cultura ocidental universal e a sua declinante capacidade para fazê-lo.

   A queda do comunismo exacerbou esse fenómeno, reforçando no Ocidente a ideia de que a sua ideologia democrata liberal teria triunfado globalmente e seria portanto universalmente válida. O Ocidente, particularmente os Estados Unidos, que sempre foi uma nação missionária, pensa que os não-Ocidentais deveriam adotar os valores ocidentais, a democracia, o livre-câmbio, a separação dos poderes, os direitos do homem, o individualismo, o Estado de direito, e conformarem as suas instituições a estes valores. Há minorias que abraçam estes valores e os defendem, no seio de outras civilizações, mas a atitude dominante, nas culturas não-ocidentais, antes vai do ceticismo à rejeição. O que parece universalismo aos olhos do Ocidente, parece imperialismo alhures.

 

   Estamos aqui em acordo. Mas isto que se disse não pode ser justificação para conflitos. Simplificando, direi que, tal como a cristandade europeia gerou iluminismo e laicidade, os ideais "ocidentais" de liberdade, igualdade, fraternidade, não impostos, mas simplesmente propostos, se poderão acasalar em sociedades e culturas que, como tudo no mundo, e nas nossa vidas, vão mudando, tomando sempre novas qualidades. Ou melhor: como diz, ao João Semana (Nicolau Breyner)médico agnóstico da série da TV com o seu mesmo nome, o padre reitor António (João d´Ávila), na hora em que ambos, gastos pela vida, morrem na igreja da vila que Júlio Dinis inventou para As Pupilas do Senhor Reitor: Os homens não valem pelo que pensam, mas pelo que amam...

 

   Mas, da "civilização ocidental", o que recentemente mais contagiou o mundo, outras culturas, foi o gosto do dinheiro, o culto das finanças, o prazer do consumo. A tal ponto que no dia-a-dia das vidas humanas já menos se apercebem fatores culturais de identidades e diferenças, mas cada vez mais motivos normalizadores de comportamentos económicos. Nesse sentido, à parte pormenores aparentes que os distinguem, o chinês médio, o carioca, o "yankee", o "alfacinha", têm condutas cada vez mais semelhantes, com as suas TV, os seus frigoríficos, automóveis, computadores e "net". Os mesmos desportos os entusiasmam e enchem estádios, e ei-los que escutam as mesmas músicas, da clássica à "pop", passando pela "world", etc... O contacto generalizado faz-se hoje sem filtros, quem disponha de um computador pessoal tem acesso à omnipresença, sem outro controlo além do seu próprio. Que cultura ou culturas se vão tecendo e como nos envolverão é algo talvez ainda do foro da ficção. Tudo sempre foi mudando - todo o mundo é composto de mudança - mas hoje muda depressa e muito imprevisivelmente. Até se fala de trans-humanismo (neologismo inventado em 1957 pelo biólogo Julien Huxley, irmão de Aldous, o autor do Brave New World) e pós humanismo, este querendo já significar o advento de uma nova espécie humana, de vidas longas e quiçá eternas, de uma nova inteligência (artificial?) liberta da gravidade dos nossos corpos biológicos, algo como a noosfera de que falava Teilhard de Chardin...

 

   Meu Deus, meu Deus, onde eu já vou, Princesa, a solidão põe-me a divagar, quando falo comigo mesmo torno-me perdido vagabundo, vou por onde não sei, nem ouço o que grito, mas apenas ecos vários do que já pensei ou me disseram. Paro aqui, espero por próxima carta, talvez acerte.

 

   Camilo Maria

 

Camilo Martins de Oliveira

 

LONDON LETTERS

 

Foreign Affairs, 2016

 

A excelência sempre fascina, pela qualidade e foco com que afronta ditas missões impossíveis. A PM Theresa May avança com esmero nos tratos europeus ao invés de medíocre deixa andar. Viaja ao continente. Revela arte diplomática.

Nas chancelarias logo circula proposta análoga à que, em February, Brussels liminarmente recusara a RH David Cameron: acesso ao mercado único com travão de sete anos na livre circulação de pessoas. — Chérie! Celá sert à prendre la température. Se a visão da Brexit door refaz laços lógicos no controlo das ameaças face à global insegurança crescente, o mapa do terror adensa em semana de ataques em Wurzburg, Munich e Ansbach (Germany). Aproveita às autoridades gaulesas mostrar zelo na fronteira de Calais. Os holidaymakers acampam na Dover A2 Highway em fila de 12 horas. — Humm! Mere words do not feed the dark friars. Já Ankara acelera dura purga dos adversários políticos do Turkey Leader Recepe T Erdogan. A US WHite House Race prossegue no trilho do fogo. Após a convenção republicana proclamar Mr Donald J Trump e o Indiana Governor Mike Pence como candidatos ao Oval Office, hoje, em Philadelphia (Pennsylvania), entre emails talk, apontam os democratas o duo Mrs Hillary R Clinton e o Virginia Senator Tim Kaine para suceder ao President Barack Obama em January 2017. A incerteza política soma no World monetary game, com os weather man pregando a necessidade de a good, old-fashioned economic depression. Melhor anda Mr Chris Froome na conquista do terceiro Tour de France. No mais é o Pokémon Go!


Hot, moist and lengthy days at London
. A calma retorna suavemente a Westminster Disctrict, entre magotes de turistas, firme mão em Downing Street e bom humor na House of Commons. O desempenho da new British Prime Minister é tal, que já é por cá cognominada de… T-Rex. RH Theresa May MP assemelha-se até a matricial tábua pitagórica com poder de multiplicação. A senhora pontua em várias latitudes. Visita Berlin e Paris a par de ida hoje a Belfast, para sucessivas conversações com a Bundeskanzlerin Angela Merkel e o French President François Hollandes mais a First Minister Arlene Foster e o Deputy First Minister Martin McGuinness. Muito dos frutos colhidos fica no recato diplomático, mas o que vem a público é interessante. Assim: O denominador comum dos encontros é o preparo das negociações da “UK's exit from the European Union,” com lembrete adicional que as relações britânicas com os seus vizinhos radicam nos séculos e não na série continental de tratados internacionais aberta em Rome 1957. Em Stormont tranquiliza as gentes sobre o futuro da “land border with the Republic of Ireland and Europe.” Em France ouve que, em princípio, o Palais de l'Élysée discorda do acesso comercial ao mercado único sem a livre circulação de pessoas, bens e serviços ― “It will be a choice facing the UK: remain in the single market and then assume the free movement that goes with it or have another status.” Em Berlin, porém, escuta que Germany visa “the strongest possible trade relationship with the UK, preferably with it inside the single market.” Vaporizando o ‘EU bad dream,’ em todas as chancelarias deixa a governanta pessoal garantia: “I place particular value on the precious bonds between our nations.”

 

Com o reino a celebrar os três anos do Prince George, a abordagem prática que HM Govt dá ao dossiê europeu, “with & for everybody.” tem outras facetas e alguns escolhos. O dinamismo externo compreende também deslocações dos Ministers Boris Johnson e Liam Fox aos USA enquanto o Chancellor Philip Hammond visita China para o G20 Summit em Chengdu e úteis conversas sobre a trade deal com Beijing. Todos exploram a TPT - Trans-Pacific Partnership e os "existing agreements" com Canada e Australia! Na frente interna, todavia, a Scotish First Minister manobra a eurófila maioria SNP em Holyrood. Apesar do rotundo «não» de London, RH Nicola Sturgeon todos os dias agita com novo referendo separatista enquanto promove esforços para travar o que classifica de “hard Brexit.” Emerge uma plataforma pró European Union, associando os Lib-Dems e os Greens, mas a iniciativa perde energia no Labour Party. Caos entrópico envolve aqui indecorosa guerra civil. Aliás, entre acusações cruzadas de bulying e lunáticas teses de conspiração envolvendo Blairites, Brownites e o MI5, para gáudio das Houses of Parliament, mesmo Mrs May cede a cotejar o líder RH Jeremy Corbyn com um “unscrupulous boss.” A PM explica o conceito nas suas first PMQs, como “one who exploits the rules to further his own career,” para demandar os trabalhistas ao estilo de Lady Thatcher: “Remind him of anybody?” Ainda na antecâmara da Brexit door, em tom menos jocoso, refletindo sobre o projeto federal e a democracia liberal, o insuspeito Lord Peter Mandelson assinala que "the European Union will not survive unless the benefits of economic integration are shared widely amongst its citizens."


Nos assuntos caseiros avulta ainda o name & shame em economia predadora, após um relatório da House of Commons desnudar o desnatamento da falida BHS perpretado por Sir Philip Green via fundo de pensões. O gigante caído na High Street é depois oportunamente vendido por £1, em peculiar operação assistida pela Goldman Sachs e de onde resultam 11,000 despedimentos. Ora, o Work and Pensions and Business, Innovation and Skills Committee radica o colapso da retalhista em “leadership failures and personal greed”. Em contraponto ao novo big yacht da esposa do (ainda) cavaleiro do reino que nestes dias preenche as páginas das revistas de férias, o Daily Mail da manhã sintetiza a case of greed com muitos espelhos na paisagem de fundo: “Pay up £571m or lose your knighthood.” O bilionário reage aos findings dos MPs e a cartaz nas montras sobre “the unacceptable face of capitalism” com ultimato dos seus advogados para desculpas parlamentares… em 24 horas! Aquém da legal action e do decent behaviour, recorde-se que a Lady do Number 10 ambiciona reformar a irresponsabilidade empresarial. 

  


Em Summertime polvilhado por Pokémons haja tempo soberano para revisitar a história local. O Museum of London abre exposição interativa sobre os 350 anos do “Great Fire of 1666,” que destrói a medieval London e abre à hodierna capital do Thames. A mostra na City Gallery apresenta o burgo antes, durante e depois da catástrofe que tudo devora durante quatro infindos dias no reinado de Charles II. A September 2 escreve Mr Samuel Pepys em famoso diário: “Oh the miserable and calamitous spectacle!” Não obstante ocorrer por human accident, o fogo permeia as paixões, artes e engenhos do 17th century. Com a decapitação do King Charles, o Cromwell Interregnum e a Great Plague em inflamada memória, cedo giram puritanas leituras apocalípticas tentativamente resumidas em pragmático (e ora redivivo) Stuart fire engine. Ainda assim, lavram chamas políticas após oficial conclusão de a fogueira começar na casa do infeliz padeiro real Thomas Farrinor em Pudding Lane. Acresce alheado monarca, casado com D. Catarina de Braganza, sem herdeiros legítimos mas com 12 filhos derramados fora da corte. A Restauration vacila e irrompem originais guerras palacianas. Na acesa ecologia de St James, séculos antes da Schumpeter’s creative destruction, nascem então os Whigs e os atuais Tories. — Well! Bear in mind what Master Will writes in Julius Caesar when Brutus and Cassius are discussing the final phase of their civil war with the legions of Octavian and Marcus Antonius: There is a tide in the affairs of men. / Which, taken at the flood, leads on to fortune; / Omitted, all the voyage of their life / Is bound in shallows and in miseries. / On such a full sea are we now afloat, / And we must take the current when it serves.

 

St James, 25th July

Very sincerely yours,

V.

A VIDA DOS LIVROS

De 25 a 31 de julho de 2016.

Eduardo Lourenço, entrevistado pela Rádio Renascença sobre a vitória de Portugal no Campeonato Europeu, refletiu sobre um tema que bem conhece – o das fronteiras da identidade…


ÂNIMO PARA PORTUGUESES
«Os portugueses nem precisam desse contributo. Os portugueses são tão portuguesinhos, somos tão patriotas desde nascença até hoje que não precisamos deste tipo de suprimento de alma de uma vitória de futebol Mas, enfim, consola, sobretudo num contexto europeu como é o de hoje. A Europa está numa grande carência de sentido para ela própria. Discute a sua própria identidade. Algo incrível. Nós, sim, podemos fazê-lo». Eduardo Lourenço comentava a vitória portuguesa no Europeu de futebol, considerando-a como cura de um certo complexo de inferioridade. Esta vitória poderia, assim, contribuir para nos reconciliar com alguns fantasmas do passado coletivo, mas o ensaísta põe dúvidas sobre se faz sentido ainda alimentar essas sombras funestas. Afinal, os portugueses já não são atores secundários. E esta vitória foi um facto interessante, muito pouco mais. E se há um elemento curioso a salientar é que Fernando Santos demonstrou por a mais b que o improviso não é, não pode ser, característica dos sucessos portugueses. Somos invariavelmente melhores quando temos desafios muito exigentes e por isso alcançamos resultados positivos, o que decorre de muito trabalho, planeamento, organização e de muita vontade. Foi assim que agora aconteceu, Nada foi obra do acaso ou circunstância fortuita. Tudo resultou de uma preparação muito cuidada e cautelosa. Afinal, a equipa não se apresentava (com as exceções conhecidas) recheada de figuras excecionais. E, no entanto, pôde superar-se e contrariar todos os maus prognósticos e vaticínios. Não era «bluff» dizer que tínhamos limitações. Mas que é a inteligência senão a capacidade de resolver problemas, mesmo contra todos os contratempos e vicissitudes? O certo é que a equipa tinha respostas e argumentos fortes para se defender… E pô-los em prática e a render.

 

NADA DE EXTRAORDINÁRIO
O hábito de jogar bonito e de ter vitórias morais, deu lugar ao compromisso cumprido de chegar aos objetivos propostos, mesmo que tal exigisse sangue, suor e lágrimas. Eduardo Lourenço tem-nos habituado a encarar o tema da identidade como definição do que afirma e do que distingue, recusando a tentação do fechamento e da singularidade absoluta com todos os seus complexos de superioridade e inferioridade. Sobre este caso, de um confronto entre portugueses e franceses, Eduardo sente-se especialmente à vontade: «Enfim, os meus filhos são franceses, a minha mulher era francesa, de maneira que poderia estar um pouco dividido, mas não estou». Afinal, a identidade de uma cultura que é um cadinho de múltiplas influências, que se abriu para «dar novos mundos ao mundo», que é múltipla, complexa e aberta e que está repartida por toda a parte, permite compreender que o universal está representado no particular. Nesse sentido, pode compreender-se a proximidade, o pequeno orgulho dos grandes momentos, mas há que entender o que nos une e separa, quem somos e o que o que não podemos esquecer nos outros. Conscientes de quem somos e sem ter de provar o que quer que seja a alguém, sabemos que há tempos para nos regozijarmos e tempos para aceitarmos o facto de não termos conseguido. Não somos nem melhores nem piores, somos nós mesmos – com qualidades e defeitos, mais ou menos ciosos de nós… Ao visitarmos a exposição sobre a obra de José Escada na Fundação Calouste Gulbenkian, percebemos diversas coisas importantes sobre o amor que o pintor tinha a Portugal. Mais do que enaltecer o sublime, o que o artista deseja é manifestar a sua ligação a algo que único e irrepetível – o povo, as cores, as coisas, a «joie de vivre», os pequenos elementos de um autêntico exercício de artesanato e de paciência. Muitas vezes quase sentimos que temos glosas sobre um mote de Amadeo de Souza Cardoso com as inconfundíveis cores do seu Entre Douro e Minho. 

 

…SOLUÇA O MAR
E, como diria, a sua alma gémea de poesia e arte, Sophia de Mello Breyner: «Me dói a lua me soluça o mar / E o exílio se inscreve em pleno tempo» (Livro Sexto, 1962). Como Unamuno bem pressentiu e Eduardo Lourenço interpretou, com rigor e perfeição, somos feitos de lirismo e de história trágico-marítima. Acaba, aliás, de sair na Fundação Gulbenkian o terceiro volume da Obra Completa de Eduardo Lourenço - «Tempo e Poesia», coordenado por Carlos Mendes de Sousa, onde podemos tomar contacto um percurso coerente e multifacetado que é muito mais do que um tratado, mas sim um repositório interpretativo único. Podemos invocar Cesário, Nobre, Pascoaes, Sá-Carneiro, Almada, Régio, Torga, Casais Monteiro, Nemésio, Mário Dionísio, Sena, Sophia, Eugénio até Manuel Alegre, Herberto, Ruy Belo, António Osório, Fiama, Vasco Graça Moura… Mais tarde ou mais cedo, encontraremos desde a poesia trovadoresca à rica poesia contemporânea, passando por Camões, Sá de Miranda, Bocage, Garrett, Herculano, Antero de Quental, João de Deus, Camilo Pessanha, Fernando Pessoa e todos mais… Se bem virmos as coisas, Portugal como palavra é uma eterna convergência da lembrança e do desejo, do amor e da provação, e a língua portuguesa, espalhada pelo mundo, plena de diferenças e desencontros, foi-se construindo nessa pluralidade magnífica e nessa complementaridade inesgotável… A língua portuguesa, temperada com mais açúcar ou mais especiarias, é o traço de união e de diferenciação. E se dúvidas houvesse João Guimarães Rosa leva-nos em busca da terceira margem, Baltazar Lopes da Silva introduz-nos nas diferenças e nos segredos dos crioulos, Mia Couto reinventa-nos em permanência, Pepetela e Agualusa põem-nos em contacto com as grandes superfícies de terra e mar, Raduan Nassar interroga e confronta as raízes em «Lavoura Arcaica»… Mas o ensaísta de «Labirinto da Saudade» é perentório: «Não temos nada que provar. O que tínhamos de provar ao mundo já provámos quando isso era uma novidade e constituía uma ação para a humanidade inteira. Temos sempre este complexo de ser uma pequena nação não tão visível como outras. Mas outras nações também não são visíveis». Não somos melhores ou piores, somos nós mesmos. Portugal é uma série de milagres. Herculano chamou-lhe vontade. «Não se sabe assim como é que há quase mil anos este país pequenino, aqui no canto da Europa, é ainda sujeito do seu próprio destino.». A História é uma batalha cultural, sempre. «A Europa define-se na sua relação com o que não é Europa. Só sabemos o que é Europa quando estamos fora da Europa. Na Europa temos uma experiência normal. É como a experiência de quem está em casa. Há até uma pluralidade de casas que, mais ou menos, têm afinidades entre elas. Isso é a Europa». Mas há ameaças e perigos, e até a indiferença e a acomodação. Falta a normalização connosco próprios. Perante tantos sinais de incerteza persiste uma miragem europeia. Contudo, a Europa fechada definha. Importa tirar lições, procurando caminhos que permitam encontrar a defesa de um pequeno e eficaz núcleo de interesses e valores comuns.

 

Guilherme d'Oliveira Martins
Oiça aqui as minhas sugestões - Ensaio Geral, Rádio Renascença

CARTAS DE CAMILO MARIA DE SAROLEA

 

 

 

   Minha Princesa de mim:

 

   Voltando a um dos temas do Penser l´Islam, de Michel Onfray, aqui traduzo a resposta escrita do autor a uma pergunta que lhe foi feita por Le Point, imediatamente após o atentado perpetrado pelo EI, a 13 de Novembro de 2015, no Bataclan, em Paris:

 

   No seu comunicado de reivindicação, o Daesh fala, referindo-se às vítimas do Bataclan, em "centenas de idólatras numa festa de perversidade". Será que essa gente odeia sobretudo o que nós somos?

   […] Com efeito, é uma guerra de civilização. Mas o politicamente correto francês proíbe que isso se diga, desde que Samuel Huntington fez excelentemente a sua análise em 1993. A civilização islâmica para que nos remete o Estado Islâmico é, na verdade, puritana. Faço observar que esta pergunta deixa entender que a França dispõe de uma "identidade nacional", que vemos melhor quando a identidade islâmica a põe à luz do contraponto histórico do momento. Mas como também é ideologicamente criminoso remetermo-nos para a identidade francesa, durante muito tempo nem se podia dizer que, na realidade, havia um modo de vida ocidental e que esse não era o modo de vida islâmico. Os turiferários do multiculturalismo confessam que há mesmo várias culturas e que, entre elas, algumas defendem o rock em noites de festa, enquanto que outras fazem desse evento "uma festa da perversidade". Têm todas as culturas o mesmo valor? Sim, dizem os tenentes do politicamente correto. Por mim, tenho tendência para pensar que é superior uma cultura que permite que a critiquem a qualquer outra que proíba que tal se faça e castigue com a morte qualquer reserva relativamente a ela.

 

   Sabes bem, Princesa, como penso que todos nós nos superamos, isto é, nos tornamos melhores, quando entendemos construtivamente as críticas que nos são dirigidas e sabemos, nós mesmos, exercer com prudência o espírito crítico. Digo aqui prudência no sentido de Santo Agostinho, que São Tomás gostava de repetir: A prudência é um amor sagaz. Quero, pois, deixar-te claro que não faz, para mim, qualquer sentido pretender que há hierarquias de culturas ou civilizações: costumo dizer que as culturas são, simplesmente, as circunstâncias das nossas vidas, ecossistemas das almas, a que naturalmente nos referimos, mas com os quais mantemos sempre uma relação dialética, que as faz evoluir. Falamos, por exemplo, da cultura europeia, mas essa não é hoje igualzinha à da Idade Média, ou da Renascença, etc., e até nos acontece dizer que está a mudar. Penso que tudo muda para sobreviver: para entendermos isto podemos observar, por exemplo, como o iluminismo e o laicismo se filiam na cultura cristã... No seu The Clash of Civilisations and the Remaking of World Order (1996), Samuel Huntington, a dado passo, escreve que civilização e cultura se referem à maneira de viver, em geral. Uma civilização é uma cultura em sentido lato. Estes dois termos incluem «os valores, as normas, as instituições e os modos de pensamento a que, numa dada sociedade, gerações sucessivas atribuíram uma importância fulcral» (Adda Bozeman, in Civilisations under Stress). Mas tal como a semente produz e o tronco sustenta, o núcleo e o esteio de uma cultura também vão criando ramos e folhas e flores e frutos, que se reconhecem na raiz comum e naturalmente se comparam com outras espécies e, por tal cotejo, também se identificam. Outra coisa deve ser o respeito mútuo: o direito à diferença é universal, não determina graus de superioridade, mas pressupõe, necessariamente, a salvaguarda da existência de todos e cada um. Posso achar que o rock - para usar o exemplo dado por Onfray - é festivo, ou perverso, mas tenho de aceitar que outrem goste do que me desgosta, e não tenha, do bem ou do mal, do belo ou do feio, o mesmo conceito que eu. Não me assiste, nunca nem de forma alguma, o direito de impor, nem me é permitido agredir.

 

   Infelizmente, a História dos homens está infestada de crimes contra a própria humanidade, mas tal não implica que sejam uma fatalidade inevitável, nem me parece que sejam imputáveis a uma ou algumas culturas. A todos nós o mal espreita, e a todos nos chama o bem. Entre ambos está a santa liberdade dos filhos de Deus, que, aliás, só pode existir no respeito pelo outro, isto é, básica e necessariamente, pela vida.

 

   O mal dos séculos, Princesa de mim, não é a desobediência, antes será a ignorância, a inconsciência. Só na liberdade da consciência, aguçado e provocante, pode inscrever-se o princípio da paz: não há bem que nos valha por nos ser imposto, só em liberdade sabemos e podemos escolher o bom, belo e vero. Do mal e de males todos sofremos, por imposição de outros ou demissão nossa. O que quero significar, quando falo em dialética de mim com a minha cultura ou circunstância, é que não sou, nem ninguém é, apenas vítima. Ontologicamente, o ser humano é relação, interage, como hoje se diz. Eu não sou só produto de uma cultura - nem cultura alguma é monolítica e inerte – evoluímos com elas e elas connosco. Parece-me importante entender isto em tempos ditos de globalização. Para que seja em paz o necessário convívio global, impõe-se, desde logo, atualizarmos o princípio socrático: nosce te ipsum.

 

   Tenho mais para te dizer, Princesa de mim, já fugi ao tema que me trouxe... 

   Mas vai longa a carta, digo na próxima.

 

   Camilo Maria

 

Camilo Martins de Oliveira

 

 

A FORÇA DO ATO CRIADOR

 

Acerca da arquitetura de Tadao Ando (Parte II)

A herança do movimento moderno e a criação de uma linguagem individual.

 

'In 1969 I set up a small design office in Osaka. This was my first step toward resisting social injustice through my work as an architect.', Tadao Ando, 2012

 

No livro 'Tadao Ando. Conversations with Students' (2012) clarificam-se as referências mais importantes que ajudam a caracterizar a arquitetura de Tadao Ando:

 

1. A importância do contexto.

 

Tadao Ando acredita que a arquitetura requer elementos verdadeiros e tangíveis enraizados no clima e estilo de vida do lugar. Aspetos como o contexto geográfico e cultural, relacionados com a história e a identidade específica do local são essenciais. Mas também importantes são as experiências pessoais retiradas da vivência da arquitetura, de impressões e de memórias. 

 

2. A importância da intuição no processo de criação.

 

O processo de projetar em arquitetura requer uma consideração de diversos elementos, matérias e relações. É a intuição que consegue transcender todos estes domínios: 'It is within the logically indescribable or clearly unrecognizable that the unlimited potencial of analog thinking resides.' (Tadao Ando, 2012)    

 

3. A herança do movimento moderno. 

 

Para Tadao Ando a emergência do movimento moderno trouxe a oportunidade para homogeneizar o mundo das formas construídas - os arquitetos modernos acreditavam na arquitetura como volume, na geometria e na expressão adquirida através da proporção e dos materiais. Tadao Ando retirou grandes lições do Imperial Hotel in Tokyo de Frank Lloyd Wright, da Villa Savoye de Corbusier e da Casa em Farnsworth de Mies Van Der Rohe. Mas foi sobretudo através dos exemplos de La Tourette e da Unidade de Habitação de Marselha de Le Corbusier que Ando adquiriu a vontade em usar o betão na sua forma mais natural, mais escultural, mais liberta e expressiva.

 

4. A arquitetura tradicional Japonesa.

 

'Our neighborhoods became overwhelmed with banal, formulaic boxes. However, gradually, the ubiquity of the International Style led to the question: Does this truly enrich people's lives? Soon a rationalistic approach emerged that sought to reclaim a rich humanistic environment by merging architecture with a region's traditions, history and lifestyle.', Ando, 2012

 

Os materiais e as cores usados na arquitetura tradicional japonesa são muito específicos - vermelhos e verdes intensos aparecem em templos Budistas e as casas são construídas com os materiais na sua aparência mais natural. Ao trabalhar com uma limitada paleta de cores e materiais, os arquitetos são forçados a encontrar originalidade através de outras formas. De facto, no Japão existe uma cultura orientada para a natureza e por isso existe um incentivo para que se incorporem na arquitetura materiais e cores na sua forma mais natural. E é esta cultura que gera nos habitantes uma acentuada sensibilidade para todo fenómeno natural - por exemplo a presença delicada da luz numa casa é um elemento essencial, tal como descrito no livro 'In Praise of Shadows' de Juni'chirō Tanizaki. Ao viajar intensamente por todo o Japão, Ando tomou consciência do grande potencial da arquitetura tradicional e  da grande capacidade que a arquitetura tem em transmitir pensamentos e ideias. Ando acredita na transmissão espiritual da tradição.

 

5. A escultura de Isamu Noguchi

 

'Through more than ten years of interaction with him, I learned of the rigor and hardship of the artist's life. I came to truly realize that art gives rise to humanity itself.', Ando, 2012

 

De Noguchi, Tadao Ando aprendeu que se a pedra é manipulada demasiadamente nunca poderá ser uma escultura, porque a pedra morre. E por isso, Ando acredita sobretudo na importância do processo do pensamento que direciona  a execução do objeto criado. Basta por vezes uma pequena alteração a uma pedra para trazer à superfície a sua identidade e o mesmo se pode pensar da humanidade. Noguchi por sua vez aprendeu de Brancusi a desafiar continuamente os seus limites e a desenvolver com o máximo de profundidade e persistência os seus pensamentos e ideias -'each individual must work out his own truth'. 

 

'Architecture is born out of abstract ideas. However, when architecture is built within an existing context of place and diverse valise, dialog must occur as well. Architecture cannot exist without a relationship with the people who make up society.', Ando, 2012

 

Tadao Ando deseja então encontrar o espírito inserido na forma da arquitetura e assim recuperar um sentido de identidade e especificidade - ao incluir elementos naturais tais como luz, vento e água e ao expressar elementos da cultura local. Porém estão incluídos simultaneamente elementos que fazem parte de uma linguagem individual (porque a arquitetura resulta de um necessário conflito introspetivo para ser expressão de uma ideia) e universal ('Regardless of the period or style in which one is rooted, something universal can be learned from all architectural styles and cultures.', Ando 2012).

E por isso a arquitetura para Ando tem de se unir intensamente com a natureza e ser capaz de transmitir valores de simplicidade, estabilidade, homogeneidade, resistência e durabilidade porque o homem é um ser em constante relação e é mutável e suscetível de ser constantemente moldado.

 

'If you fail to cultivate within yourself a fight-back mentality, society will end up controlling you. Deciding to live with conviction will enable you to persevere. I truly believe that it is a commited approach to life that will allow you to play a vital role in society.', Tadao Ando, 2012

 

Ana Ruepp

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