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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

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UM ESTRANHO ENIGMA - capítulo I

          

 

          Saltou de leve e rolou sobre o ombro para absorver momento. Duas rodas, aumento da passada, balanço, corrida e subida da parede até onde dizia Luana I love you: Jaime pôs a sola do ténis em cheio no coração. Quando aterrou, puxando o cós das calças e ajustando os fundilhos, estava um homem. Não era Luana, nem a namorada do Xavier, nem a outra que o irritava com gritinhos, era uma de quem ele nem sabia o nome, uma que morava no Bairro, morena igual às outras, lá mais para cima, ao fundo da rua. Porque se lembrava dela agora? Dali até era capaz de se ver o rio, embora se pudesse ver o rio de todo o lado. Mas era para onde os obstáculos o levavam, se ele não estivesse a pensar nisso. Havia estreitos corrimãos guardando escadas e os passeios tinham desníveis inesperados, floreiras sem eira nem beira, muros em escala, grandes caixotes do lixo camarários. Saltou de novo, galgando um banco de pedra, elevou-se e atirou-se contra o muro, o mesmo onde há dois anos partira estupidamente o nariz. Os pulsos estavam agora tão fortes que nem sentiu o peso. Subiu, deixou-se cair no terraço de baixo, correu para a escada, sentou-se equilibrado no corrimão e deslizou. Era uma figura que usava pouco, parecia-lhe brincadeira pouco séria. Desceu a rua em quatro apoios. O focinho junto ao chão vê bem o alcatrão e a gravilha. Sai dessa forma de bicho com mais balanço, mais fome de ser homem. Experimentou um parafuso, há tempos que não errava um parafuso. Começava a desenhar o projeto de um duplo mortal carpado a partir de uma varanda, e esse plano, atravessando-se no espírito, fê-lo quase falhar a receção. O esquema era desmontar a manobra em elementos simples e treinar cada um deles. Pequenos passos. Pequenos saltos. Manter o gozo, controlar a precisão, manter o gozo. Mas agora ia de obstáculo em obstáculo, concentrado apenas no prazer de saltar e de correr e escutando tudo o que o movimento queria que ele fizesse. Submetia-se ao ancestral, curado há muito do medo de cair. Trepou o muro com facilidade, tal era a leveza que trazia. A corrida levou-o através de uma porta aberta, uma cozinha sem história, uma sala higiénica; deitou o rabo do olho para o sofá de onde uma mulher deitada emanava qualquer coisa de estátua jazente. Só muito depois de ter cumprido um salto limpo voando pela janela e aterrando perfeitamente ereto no quintal é que o Jaime suspeitou que havia sangue na cena. Mas aí já ia longe, de barreira em barreira, passada larga e exacta, esquecido de tudo o que não fosse o seu próprio avanço.

 

UM ESTRANHO ENIGMA | Folhetim de Verão CNC 2016
Ilustração © Nuno Saraiva [Direitos reservados]