Saltar para: Posts [1], Pesquisa [2]

Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

UM ESTRANHO ENIGMA - capítulo II

 

 

 

Jaime pisou sangue, as solas ficaram molhadas de morte, continuou a avançar.

A morena igual às outras, que o levara misteriosamente até ali, estava à sua frente, a cara aberta num sorriso celestial, como se o universo fosse uma grande piada cujo final ainda está para soltar um Big Bang, então fungou, puxou as calças, olhou para as solas, olhou para ela, observando a estranha calma de um morto. Como é que um morto pode estar calmo, numa situação daquelas? Uma pessoa perde a vida e exibe placidez, até esboça um sorriso, que ofensa para os vivos, nós temos de ser ansiosos, sem isso não fazemos piruetas nem parafusos nem trepamos paredes, e ali estava ela com cara de quem não tinha acontecido nada de especial. Trocaram palavras duas ou três vezes, Jaime e ela, olhares também, mas nada mais do que isso, havia morenas mais bonitas e, perdoando a redundância, mais vivas. E agora pensava que a sola dos sapatos, as suas pegadas o incriminavam, que qualquer detetive seguiria aquele trilho, como os índios das bandas desenhadas que lera, e chegaria até ele e provaria que era o autor de um crime que não cometera, um autor injustamente acusado de plágio, por isso, pegou no isqueiro, acendeu um cigarro e fumou.

Meditou.

Tirou os sapatos, procurou na casa de banho um frasco de álcool e abençoou o apartamento com aquela água benta, molhou o cadáver na cara, em cheio no sorriso plácido, nas roupas. Despejou o cigarro, certificou-se que o fogo estava vivo, e saltou da varanda, mortal encarpado, aterrando longe da morte da morena igual às outras, caminhou lentamente pelas ruas balançando os braços inocentemente. Pôs as mãos nos bolsos, pensou no que o levara àquela casa, na estranha premonição que tivera, e assustou-se porque: nos bolsos não encontrava a chave de casa. Teria caído antes de chegar a casa da morena sem atributos? teria caído dentro da casa dela? teria caído depois? Deveria ter chamado a polícia? mas como explicar a sua presença ali?

A morte dela não o deixava voltar à sua própria casa e poderia levá-lo a um destino funesto. Se um polícia encontrasse a chave, encontraria a chave errada para a fechadura daquele enigma. Decidiu voltar, calmamente, como se estivesse calmo, braços a balouçar inocentemente. Pensou como teria sido beijar a morta (enquanto ela ainda estava viva), pensou como seria tocar-lhe o joelho e como ela, provavelmente, sorriria com o mesmo sorriso que exibira enquanto cadáver. Estaria alguém a tocar-lhe no joelho quando morrera? Ao aproximar-se viu o apartamento em chamas e ouviu sirenes. Não se aproximou mais, não queria ser visto naquele lugar, mas a chave poderia, caso estivesse no apartamento, sobreviver às chamas.

Do outro lado da rua, uma mulher muito alta olhava para ele. Estava sentada num banco de jardim e cruzou as pernas, até poderia ter sorrido, mas isso era algo que raramente fazia. Jaime não reparou nela, voltou para trás, os braços a balouçar inocentemente.

 

 

UM ESTRANHO ENIGMA | Folhetim de Verão CNC 2016
Ilustração © Nuno Saraiva [Direitos reservados]