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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

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Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

A VIDA DOS LIVROS

A VIDA DOS LIVROS por Guilherme d'Oliveira Martins

    De 11 a 17 de julho de 2016

 

Eduardo Lourenço acaba de ser galardoado com o Prémio Europeu Helena Vaz da Silva, ex aequo com Plantu, cartunista de «Le Monde» - e recordamos, num momento de muitas incertezas, a sua reflexão sobre a Europa em «Nós e a Europa ou as duas razões» (INCM, 1990).

 

 

 

A EUROPA DAS DUAS RAZÕES

Num célebre ensaio de 1988 sobre a nossa relação com a Europa, considerando a Península Ibérica, e «as duas razões» que dominaram, ao longo dos séculos, esse complexo diálogo, Eduardo Lourenço afirmava: «… é bom que nós, Portugueses e Espanhóis, que estivemos séculos dentro e fora do espaço onde se jogava ou se cria jogar a própria ideia de universalidade, como se a ela se devesse sacrificar a de particularidade, nos lembremos do que foi vivido pelos espíritos mais brilhantes das nossas culturas como uma espécie de travessia do deserto. A “nossa identidade” dentro da Europa não pode prescindir dessa experiência. Faz parte da nossa memória e nós dela» (Nós e a Europa ou as duas razões, p. 65). Hoje, essa consideração ganha especial pertinência, sobretudo quando, um pouco por toda a parte, se sente que a referência europeia está, ela mesma, em profunda crise, pela evolução recente dos acontecimentos globais. O texto citado seguia-se à chegada dos dois países ibéricos à Comunidade Europeia e antecedia em um ano os acontecimentos que levariam ao fim da guerra fria e à «queda do muro de Berlim». Depois de 1989, houve uma espécie de súbita euforia, que conduziu à simplificação hegeliana de Fukuyama sobre um suposto fim da História, à semelhança do que a revolução francesa e o sonho napoleónico teriam suscitado. Depressa se percebeu que se tratava de uma mera ilusão, e as antigas democracias populares tentaram libertar-se da herança da guerra, dos acordos entre os aliados e da esfera de influência soviética, numa lógica nacionalista, ao contrário do que ocorrera no ocidente europeu, em que prevaleceu, no pós-guerra, a lógica de abertura e de partilha de soberanias. Dir-se-ia, pois, que a mudança de circunstâncias de 1989 e depois o fim do Pacto de Varsóvia determinaram, por parte dos novos países que chegavam à democracia, um movimento centrífugo, enquanto na Europa ocidental tivéramos um movimento centrípeto. A sociedade de consumo era mais importante do que a mudança política. E se houve quem desejasse que os alargamentos da Comunidade se fizessem rapidamente, a verdade é que o resultado foi o da diluição e enfraquecimento da realidade europeia, pondo em causa o próprio Estado de direito e o equilíbrio entre interesses e valores…

 

A DUPLA LEGITIMIDADE EUROPEIA

O risco do fantasma do «federalismo» foi sendo acenado, mas o perigo maior era o da fragilidade política das instituições europeias e da sua legitimidade. A melhor forma de não ter um Super-Estado seria a criação de instituições políticas fortes e representativas em lugar da persistência da lógica intergovernamental, que apenas reforça os egoísmos e a fragmentação… A única forma de evitar a lógica cega do centralismo burocrático dos funcionários, seria o reforço da legitimidade política – das duas legitimidades, a dos Estados e a dos cidadãos. Quase ninguém quis, contudo, perceber que um Senado Europeu com participação igualitária de todos os Estados (num Parlamento bicamaral, ao lado de uma Câmara de Representantes proporcional) permitiria dar estabilidade política à União Europeia – como fator de paz e segurança, de desenvolvimento sustentável e de diversidade cultural. Chegámos onde chegámos porque prevaleceu a lógica da gestão imediata dos pequenos poderes ou o alargamento imprudente de áreas de ação em detrimento de um núcleo fundamental dos interesses vitais comuns. E o que temos? Uma grave doença generalizada – política, económica e social. O episódio do referendo britânico é apenas um sintoma de algo mais fundo e grave. A procissão pode ainda estar no adro. Urge prevenir a tentação da fuga para diante. As guerras civis europeias quase caíram no esquecimento e vai-se brincando com o fogo – com cada qual a reclamar o salve-se quem puder, na linha dos nacionalismos, dos regionalismos e dos tribalismos descontrolados… E os populismos são os piores inimigos da democracia, porque jogam com as tiranias da indiferença, do imediato e das conjunturas. O Estado de Direito é posto em causa pela reclamação da perigosa lógica referendária (em que raramente se decide sobre o essencial, mas sim condicionados pela preocupação mais imediata ou pelos fantasmas acenados pelos irresponsáveis aprendizes de feiticeiros, que por aí abundam). A ditadura de Napoleão III baseou-se, aliás, na lógica plebiscitária. Não podemos esquecer que Montesquieu e Tocqueville, mas também Péricles e Cícero, nos ensinaram que a prudência obriga à conciliação dos diversos poderes e à proteção relativamente ao simplismo perigoso dos demagogos. Só o poder limita o poder – daí a necessidade do primado da lei e da legitimidade do exercício.

 

A EUROPA COMO CULTURA

Ainda Eduardo Lourenço, disse que «a Europa como cultura só merecerá esse nome se se converter no espaço de intercomunicação que reativa em permanência o que houve e o que há de mais exigente, enigmático, inventivo e grandioso na cultura europeia concebida como cultura das diferenças ao longo da sua História e vivendo da busca do conhecimento de qualquer coisa que possa chamar-se “sabedoria”. Em suma, da invenção de um caminho e de uma saída que ninguém nos deu nem pode descobrir em vez de nós» (Ib., p. 164). Ora, é a comunicação que importa salvaguardar como base da legitimidade política, para que os cidadãos se sintam envolvidos, participantes e responsáveis pelo destino comum. E a doença europeia atual deve-se ao facto de os cidadãos se sentirem desligados da sociedade política que integram e que se afirma não apenas no Estado-nação, mas nas comunidades locais e nas instituições supranacionais. A intervenção dos parlamentos nacionais em matéria europeia deve ser mais efetiva, a subsidiariedade deve ser respeitada para que o que pode ser resolvido próximo das pessoas o seja… Do mesmo modo, há problemas para os quais os Estados não dispõem dos instrumentos adequados para a sua resolução. Quando alguém disse no debate britânico, por exemplo, que iria utilizar a contribuição para a União Europeia para reforçar o orçamento do Serviço Nacional de Saúde mentiu, até porque não disse que o apoio dos fundos comunitários ao desenvolvimento iria desaparecer… Que Europa? Se os sinais são de cansaço e decadência, se o eurocentrismo perdeu sentido, se o êxito do Papa Francisco se deve ao facto de ver de fora e de compreender melhor as fraquezas do velho continente – o certo é que importa compreender as diferentes componentes da realidade europeia. A dimensão continental tem de ser temperada pelas vertentes atlântica e mediterrânica e por um modus vivendi com a Rússia. A fragmentação enfraquecerá e poderá destruir o potencial de valor europeu. Como vimos nos últimos dias, os discursos salvadores e apocalípticos conduziram ao mesmo resultado: o medo, o desespero, a divisão, o empobrecimento… Longe das soluções aparentemente simplificadoras, precisamos de um sereno pragmatismo que não esqueça que o futuro do mundo global também depende do que os europeus conseguirem fazer.  

 

 

Guilherme d'Oliveira Martins
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