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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

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UM ESTRANHO ENIGMA - capítulo III

 

Um Estranho Enigma - Capítulo III

 

 

Jaime ignorava que ainda tinha aqueles olhos pregados nas costas da sua camisola de alças (na qual estava escrito Light My Fire sob o rosto eternamente jovem de Jim Morrison) quando dobrou a esquina e, com uma ligeira pressão do pé esquerdo, elevou o patim no ar antes de o encaixar debaixo do braço. A rua tinha demasiadas portas escancaradas, pelo que caminhar com naturalidade chamaria menos a atenção do que as suas gloriosas piruetas. Não lhe ocorreu – mas porque lhe ocorreria? – que também facilitava a vida a quem o quisesse seguir.

 

Mirando as roupas que pingavam dos estendais, sobretudo um gigantesco soutien vermelho, pensou então na fúria da Mamã Rosa quando soubesse que ele perdera a chave mais uma vez – era a terceira em menos de um ano –, maior ainda se um polícia lhe batesse à porta a meio do jantar com essa mesma chave na palma da mão... Antecipar os berros da negra gordíssima que lhe alugava o quarto fê-lo pensar que o melhor era desaparecer simplesmente do Bairro por uns tempos. Em não havendo novidade, regressaria ao fim de uma semana com uma mentira bem ensaiada sobre ter ido conhecer o benjamim da família – não lhe nascia um irmão quase todos os anos? –, a Mamã Rosa nem se daria ao trabalho de confirmar; e se, por azar, viesse a saber que a Polícia andara à sua procura, pelo menos já lhe levaria algum avanço. Por outro lado, pareceu-lhe que fugir adensaria uma culpa que, afinal, não lhe pertencia: a mulata já estava morta quando a encontrara, e o fogo... bem, o fogo era uma ninharia ao pé de um crime de sangue.

 

Quando chegou ao largo e se curvou sobre o chafariz – o medo secara-lhe terrivelmente a boca –, já decidira que o mais sensato era fazer como nos filmes e arranjar um álibi incontestável. Desviou-se para deixar beber uma mulher extremamente alta que ali estava à espera, limpou a boca às costas da mão e dirigiu-se então a toda a brida para o bar do Bill, onde havia sempre gente conhecida e, na melhor das hipóteses, algum mano a curtir uma ganza nas traseiras que, até por isso, não ia saber dizer a que horas ele aparecera ou quanto tempo por lá se demorara, se mais tarde calhasse ser interrogado pela Polícia.

 

– O pessoal está por aí? – perguntou, ainda à porta, ao proprietário da chafarica.

 

– O Xavier não vi. Da tua turma, só o Nelson, mas vai com pés de lã, ele está a dar uma cantada numa das gémeas.

 

– Que gémeas? – Jaime nunca vira nenhumas por ali.

 

– Bem, param cá pouco e raramente vêm juntas. Se calhar, nem conheces.

 

– E valem alguma coisa?

 

– São até meio feias, mas sorriem muito e têm coxa grossa. E já sabes como o mano Nelson se amarra em fartura.

 

Jaime sentiu um leve intumescimento dentro das calças e, antes que Bill reparasse, entrou e foi andando, bem menos discretamente do que ele aconselhara, mas o seu principal objectivo era ser visto e notado, pelo que, ao alcançar a mesa do engate, deixou cair o skate com grande estrondo. Nelson e a mulata olharam para ele estupefactos e, tal como Jaime desejava, foi-lhes impossível não dar pela sua presença: os seus olhos tinham de repente o dobro do tamanho e a boca abrira-se-lhe até ao impensável – e tudo porque a dona da coxa grossa era a réplica viva da sua morta.

 

 

UM ESTRANHO ENIGMA | Folhetim de Verão CNC 2016
Ilustração © Nuno Saraiva [Direitos reservados]

 

 

 

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