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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

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Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

CARTAS DE CAMILO MARIA DE SAROLEA

 

   

 

 

      Minha Princesa de mim:

 

   Posso concordar ou discordar de afirmações de Michel Onfray, filósofo francês, ateu confesso, homem de esquerda ("esquerda" sendo, para mim, tal como "direita" um conceito plurívoco, quiçá equívoco, mas ele declara-se nietzscheano de esquerda e pós anarquista), ou, ainda, admitir que, pela insistência com que vai, parece-me, em jeito de maré, reiterando as suas teses, por vezes me cansa um pouco, mas reconheço a deontologia com que vai cumprindo o seu ofício de pensador. Para ele, ser filósofo é procurar refletir sobre a realidade no tempo longo, diferentemente do jornalista que dá notícias a curto prazo. Creio que já te falei do Michel Onfray, não por ser seu leitor assíduo, mas por me terem estimulado a reflexão alguns dos seus escritos e declarações sobre a questão do islamismo. São passos pensados, trabalhados, mesmo se partindo de pontos de vista que eu nem sempre partilho, ou chegando a conclusões um tanto ou quanto divergentes das minhas próprias. Adiante te dou alguns exemplos desse meu secreto diálogo com o filósofo francês, sobretudo em volta do seu Penser l´Islam, que a Grasset editou em Março de 2016.

 

   Respondendo a interpelações da jornalista argelina Asma Kouar sobre vários aspetos da questão islão/guerra/terrorismo, afirma, quando ela lhe pergunta se não será injusto visar os muçulmanos, acusando o islão de ser globalmente responsável pelo terrorismo atual: Há pelo menos duas maneiras de ser muçulmano, conforme as suras sobre as quais cada um constrói o seu islão: ou as que afirmam «Exterminai os incréus até ao último» (Corão VIII, 7) e, ainda, «Matai qualquer judeu que apanheis» (Sira,II, 58-60), «Matai os politeístas seja onde for» (Sira XVII,58); ou, pelo contrário, as que dizem «Não haja coação em matéria de religião» (Corão II, 256) ou, ainda, «Aquele que salvar um só homem é considerado como se tivesse salvo todos os homens» (Corão V, 32) - e digamos, a talho de fouce, que esse mesmo convite, nos mesmos termos, se encontra também entre os judeus (Micha Sanhedrin, 4:5). Os segundos podem afirmar que o islão é uma religião de paz, de tolerância e de amor, mas em detrimento das suras invocadas pelos primeiros, que tornam possível um islão de guerra, de intolerância e de ódio. O mesmo se passa com o cristianismo, que permite - se nos reclamarmos do Jesus que oferece a outra face, perdoa os pecados, responde ao ódio com amor, convida ao amor do próximo e ao perdão dos pecados - um cristianismo pacífico, tolerante (o de Montaigne); ou que permite o contrário, se se reclamar, nos próprios Evangelhos, do Jesus que expulsa a chicote os mercadores do Templo (o passo dos Evangelhos que Hitler preferia), ou que diz: «Não vim trazer a paz, mas a espada» (Mateus X, 34-36), uma espada que se tornará no símbolo de São Paulo, com o qual o cristianismo oficial construiu a sua ideologia, mais do que com o Jesus da paz, da tolerância e do amor, esse que nunca teria tornado possíveis as cruzadas, a Inquisição, o Index, a colonização e o genocídio dos povos da América.

 

   Em cartas várias te tenho dito como sempre me parece mais positivo insistir na versão pacífica do islão, do que apontar-lhe um carácter necessariamente bélico... E em muitas conversas e escritos outros vou apresentando exemplos de tolerância e convivência de muçulmanos com gentes e culturas diferentes. Nunca me parece demais insistir na lembrança dos construtores de paz. Tal como não posso negar nem devo escamotear episódios da história da cristandade que, infelizmente, revelam sobranceria, intolerância, antagonismo e inimizade. Ainda hoje deparamos com muitos cristãos, sobretudo clérigos, que se dedicam mais a denunciar e ser contra do que a anunciar a alegria da boa nova da misericórdia de Deus. Felizmente, sempre foram e vão surgindo reações evangélicas, como, em séculos passados, as de Bartolomeu de las Casas e outros dominicanos, na América Central, e dos missionários jesuítas, na do Sul, à exploração e ao abuso colonialista dos índios americanos. E, hoje em dia, as de um Papa Francisco! A tal história dual da Igreja, de que já te falei. Também a personagem de São Paulo terá muito que se lhe diga, como ele mesmo muito teve para dizer. Mas a espada com que a iconografia cristã o distingue, nem sequer é a que, antes de se converter, usou contra os seguidores de Cristo: é, sim - como tão bem se vê na Decapitação de São Paulo, do Petrini, pintura de 1710 exposta em San Giulio, Altavilla Monferrato - aquela que lhe cortou a cabeça, fora das muralhas de Roma, como a lei romana determinava que fossem executados os seus cidadãos. Aliás, se bem me lembro, Princesa, Santo Ireneu diz algures, no seu Adversus Haereses, que o evangelho de São Lucas - também conhecido, precisamente, por evangelho da misericórdia - é aquele que S. Paulo pregava. Na verdade, Lucas, pagão convertido ao judaísmo e, depois, ao cristianismo, era discípulo de Paulo, que acompanhou em muitas viagens. Tenho, recentemente, tido conhecimento da tese, entre alguns historiadores e exegetas do Novo Testamento, de que os evangelhos sinópticos terão sido todos, primeiro, redigidos antes do ano 70 (data da destruição do templo de Jerusalém por ordem do imperador Tito), quiçá em aramaico e hebraico, registando assim as tradições orais correntes nas várias comunidades cristãs. Muito embora os originais tenham desaparecido, terão deixado rasto em aramaicismos e hebraísmos reconhecíveis na versão grega, aquela que a Igreja reteve. Se o de Lucas transmite a pregação ou tradição paulina, o de Marcos traz a de São Pedro. O de Mateus, abraçando essas correntes e outras, será aquele que mais proximamente regista as palavras do próprio Jesus em terras da Galileia e da Judeia, sendo Levi (Mateus), o seu autor, a julgar pela sua profissão, homem necessariamente letrado, tal como Lucas era médico, e Marcos, de acordo com outros estudiosos, o autor do evangelho mais antigo, escrito a pedido dos cristãos de Roma, pessoa culta. O evangelho de São João é mais obra de autor, e mesmo já uma construção teológica, além de quiçá ser o historicamente mais rigoroso, sobretudo no relato da fase final da vida de Jesus, e do seu ministério público. Mas todas estas hipóteses continuam sendo discutidas por especialistas e investigadores: o professor Geza Vermes, da universidade de Oxford, por exemplo, judeu húngaro regressado ao judaísmo depois de se ter convertido ao catolicismo e ser ordenado padre (creio que jesuíta), sendo considerado um dos mais sagazes investigadores do Jesus histórico, afirma a veracidade da crucifixão do Nazareno (consulta os seus The Authentic Gospel of Jesus The Passion, ambos na Penguin, um em 2003, o segundo em 2005) atestada não só pelos escritos neotestamentários, mas ainda pelos historiadores romanos coevos Josephus e Tácito, bem como, indiretamente, pelo Talmud judeu. No primeiro dos seus livros que te indiquei, Vermes procura determinar, entre vários ditos atribuídos a Jesus, aqueles que Ele terá realmente proferido, concluindo que, mesmo assim, surgem, consoante qual dos evangelhos, e em que trecho, discrepâncias e aparentes contradições. Mas nada suficiente para desvirtuar a mensagem fundamental de amor, de misericórdia e paz, a tal que, no decurso da História, muitas vezes a "Igreja oficial", a cristandade, ou cada um e qualquer de nós, tem esquecido ou afastado. Também não creio que a datação certíssima dos textos evangélicos originais, nas suas presumíveis línguas, ainda que disciplina importante, seja essencial ao seu entendimento. Lembra-te de que há "casos piores". O primeiro aspeto insólito é o facto de os primeiros poemas da literatura europeia terem sido compostos numa língua que nunca ninguém falou. O grego da Ilíada e da Odisseia é uma língua artificial, que mistura elementos de dialetos diferentes: jónico, eólico, árcado-cíprico, ático, etc. (Frederico Lourenço, no Grécia Revisitada, Lisboa, Cotovia, 2004). Como também seis séculos separam Virgílio dos seus primeiros manuscritos conhecidos, treze Platão, dezasseis Eurípides. Apenas retenho para aqui que exegetas cristãos, e não cristãos, não se cansam de procurar entender o que o Jesus histórico terá mesmo dito e pretendido transmitir. Mas tanto não obsta a que a tradição cristã fundamental - afinal sempre revisitada e recorrente - incessantemente nos recorda o mandamento do amor, e que a fixação dos textos canónicos, por oposição aos apócrifos, se foi fazendo durante três séculos (do II ao IV), pelo labor de sínodos e concílios, respeitando três critérios sine qua non: datarem da geração apostólica, enunciarem verdades ortodoxas sobre Jesus Cristo, serem reconhecidos pela maioria das comunidades eclesiais. Se atentares bem nestes critérios, Princesa de mim, verificarás que, antes de se revestir dum autoritarismo central e hierárquico - ainda hoje invocado por muitos, mas sempre igualmente contestado - a tradição católica se enraizou na vinda e na vida humana de Jesus, e na reunião da Igreja, por obra e graça do Espírito Santo. É a Tradição do Pentecostes no Povo de Deus. Por muito que contrarie ou exaspere os chamados "fundamentalistas", defensores de uma interpretação literal dos textos bíblicos - o que, aliás, fatalmente os empurra para perplexidades, consequentes afrontamentos emotivos e múltiplos sectarismos - a Igreja sempre acreditou que a revelação se descobre nos textos, sim, mas ainda na tradição que os vai lendo e interpretando. Assim também se explica a diversidade de correntes e a atualidade de debates no seio da própria Igreja, bem como, em contracorrente, a propensão do clericalismo conservador para o autoritarismo.

 

   Penso, Princesa de mim, que se atentarmos, sem preconceito nem hipocrisia, para a tradição islâmica, descobrindo que, nela também, há correntes inspiradas pelo espírito da misericórdia e da paz, encontraremos o muito de essencial que temos em comum com os fiéis muçulmanos. E veremos ainda como a graça ou propósito de distinguir entre a mensagem de Deus e o poder temporal, político, e entre a letra e o Espírito (com propósito uso aqui um E maiúsculo) tem sido (como, apesar dos desvios e abusos do autoritarismo clerical ou político, foi mais livremente acontecendo na cristandade) fator fulcral de uma dialética de debate e concórdia, de progresso e atualização.

 

   Mas fica mais disto para próxima carta.

 

     Camilo Maria

 

Camilo Martins de Oliveira