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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

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CARTAS DE CAMILO MARIA DE SAROLEA

 

 

   Minha Princesa de mim:

 

   Na minha carta precedente, falei-te, muito livre e pessoalmente, da constituição e tradição dos nossos textos evangélicos. Por seu lado, o Corão deve a sua reunião em livro a um ato político, preparado pelo segundo califa (ou sucessor de Maomé), Omar, e feito pelo terceiro, Osmã. Na verdade, durante a vida e imediatamente depois da morte do Profeta fundador, apenas circulavam revelações divinas, lado a lado com ditos do mesmo Maomé, e relatos da sua vida. Tais ditos e relatos também seriam reduzidos a escritos, conhecidos, respetivamente, por Hadiths e Sira. Já as revelações divinas, recebidas pelo Profeta através do anjo Gabriel, seriam coligidas num livro a que se chamou Corão, precisamente por conter essas qurra ou recitações. Foram, aliás, os al qurrâ, os recitadores que se presumiam depositários exclusivos da revelação maometana, que mais se opuseram à versão oficial do Corão decretada pelo califa Osmã, como instrumento indispensável à preservação da unidade e força de um império nascente, que lutas intestinas, numa circunstância de rapidíssima expansão, ameaçavam. Não olvides que, após a morte do Profeta, em 632, ou seja, dez anos depois da hejira (início da era muçulmana, em 622), lhe sucederam, imediatamente, os quatro califas ortodoxos (os "bem guiados"): Abubacar, Omar e Osmã, até 657, período em que o islão conquista, para além da península arábica, o Egipto e o norte de África, e, derrotando os exércitos persa e bizantino, os territórios que hoje constituem a Síria e o Iraque; e Ali, o quarto, que Maomé teria preferido para sucessor, foi califa de 657 a 661, data em que foi assassinado. Nele radicará a secessão xiita. Apesar da importância do conceito de Umma ou comunidade dos crentes, no Islão, a continuação da mensagem de Maomé não se faz, como acontece no cristianismo primitivo, por uma Igreja independente do poder político, temporal, mas pela transmissão de um império.

 

   Escreve o doutor Nabil Mouline, no seu Le Califat - Histoire politique de l´islam (Paris, Flammarion, 2016): Desde o seu acesso ao poder, Abubacar [o primeiro califa, sucessor imediato de Maomé] tem de enfrentar um grave problema. A maioria das tribos e regiões que se aliaram à causa de Maomé, nomeadamente depois da conquista de Meca, rejeitam a autoridade de Medina [onde o Profeta falecera e está sepultado], por razões religiosas, económicas e políticas. Vários grupos estimam que o juramento de vassalagem prestado ao Profeta é estritamente pessoal. Recusam, portanto, reconhecer o novo chefe. Outros afirmam que, não deixando de ser muçulmanos e reconhecendo a preeminência de Medina, deixarão de pagar o imposto - sinal de subordinação universal. Outros grupos vão ainda mais longe: não se contentam com declarar a sua independência, mas põem profetas - que a tradição classificará como impostores - à cabeça, para se diferenciarem dos muçulmanos e mostrar que nada têm para invejar [...] Com força e determinação, Abubacar decide reprimir essas rebeliões.

 

   [Entendida esta e outras condicionantes, não quero deixar de te referir que, pouco antes de morrer, Maomé recebeu numa mesquita uma delegação  de cristãos de Najran, aos quais garantiu a proteção da Umma muçulmana. Facto para lembrar.]

 

   Mas daí também decorre outra questão quanto à interpretação das escrituras cristãs e muçulmanas: enquanto umas são consideradas inspiradas pelo Espírito Santo, mas obra humana, passíveis, portanto, de análise e interpretações que tenham em linha de conta o tempo e o modo  em que foram redigidas, ou seja, a sua circunstância, as outras são geralmente afirmadas como ditados de Alá, do Deus único que em árabe falou a Maomé, o analfabeto que as transmitiu, não por escrito, mas no seu dialeto da língua árabe, esta sendo, portanto, a língua divina por excelência. Posteriormente, é a autoridade do califa que as fixa por escrito. Aliás, talvez já Abubacar, por sugestão de Omar, que lhe sucederia, teria mandado redigir - antes, portanto da versão oficial de Osmã - a revelação de Maomé, texto que, então, viria a servir para as recitações ou qurra. Todavia, nota bem, Princesa de mim, a tentação totalitária de possuir a exclusiva revelação de Deus não envenenou apenas o islão, mas também a cristandade, como, hoje ainda, verificamos no "bible belt" dos EUA e noutras seitas de raiz cristã, ou, mais infelizmente, em agrupamentos ditos "católicos"... Também, no mundo islâmico, podemos entender diferentes achegas à interpretação, quer do Corão, quer dos hadith, quer da própria Sira, ou vida do profeta Maomé, pese embora o radicalismo intransigente de muitos imãs e ulemas.

 

   Dounia Bouzar, muçulmana francesa que a revista Time elegeu, em 2005, "herói europeu do ano", pelo seu trabalho inovador sobre o islão, respondia assim à jornalista que, em 2014, lhe perguntava se não seria necessária uma reforma teológica que impedisse os extremistas de se apoiarem em versículos do Corão, apelando à violência, para legitimarem um discurso que ignora outros trechos do Livro que defendem o respeito pelos outros: Qualquer muçulmano conhece, em teoria, a reforma de 1930, cujo objetivo era o de distinguir os passos do Corão ditos "principais" - que enunciam verdades constantes - dos "circunstanciais" - ligados ao contexto histórico da época da revelação. Ora os princípios básicos do Corão afirmam o respeito da vida humana, de toda a vida humana, inclusive a das pessoas de outras religiões ou mesmo ateus! Tal como o cristianismo conheceu episódios sangrentos - a Inquisição, o dia de S. Bartolomeu de 1572 - o islão também os teve. Mas tal não significa que a regra seja a violência. Do mesmo modo que no cristianismo, foi quando o islão se tornou religião de Estado que a violência emergiu.

 

   Acho interessante esta observação, eu próprio várias vezes te disse, Princesa, quanto receio a tentação totalitária dos monoteísmos, como de qualquer ideologia da exclusividade, tal como, em nossos dias, tantas vezes ocorre com o laicismo. Não sou, nem pretendo ser, filósofo, teólogo, historiador ou especialista seja do que for. Sou, simplesmente, um simples amador de pensar, procuro ir entendendo as coisas. Mas pensar é, também, correr o risco de me enganar. Tenho de ter a humildade de reconhecer que o erro é humano, como eu sou. Nisto de que agora te falo, penso que um problema que o islão tem com a circunstância histórica da sua revelação advém do facto desta se ter processado numa sociedade de clãs rivais e divididos, étnica, política e religiosamente, grupos que coexistiam, nem sempre pacificamente, sem um poder único que lhes fosse superior. Assim, se a pregação de Maomé se inscreve na descendência de Abraão, na linhagem do monoteísmo judaico-cristão, o ambiente em que ela se desenvolve não conta apenas com judeus e cristãos, mas maioritariamente com tribos politeístas. Além disso, o nomadismo, as caravanas comerciantes, por trilhos traçados entre oásis e poços de água, nessa terra de ninguém que é um deserto, por muitas regras e códigos de honra que se respeitem, são sempre propícios à eventualidade de afrontamentos e conflitos. Daí o pendor bélico, e a tentação do poder, na expansão original do islão. Aliás, o próprio Corão se distribui por quatro períodos de revelação, três em Meca e um em Medina, e sente-se bem, no longo decurso das sequentes discussões sobre a sucessão do Profeta, como se arrastaram fraturas e discórdias acerca da própria revelação e dos ensinamentos de Maomé. A fixação do texto do Corão, por ordem do califa Osmã, como acima te disse, é, pois, um ato eminentemente político... que se, por um lado, pretende uma versão "oficial" da mensagem transmitida pelo Profeta, por outro, não se dispõe a escamotear ditos circunstanciais, sobretudo aqueles que possam apoiar eventuais medidas coercivas.

 

   Diferentemente, cristianismo primitivo desenvolve-se principalmente em meio judeu, quer na Palestina, quer na Diáspora. No meio dum povo submetido ao império de Roma, isto é, ao poder político de um estado estrangeiro e ocupante, praticante de outra religião, que divinizava o imperador. O cristianismo torna-se, nessa época, não só na esperança do cumprimento da promessa messiânica ao povo judeu, mas num movimento de vocação universal e subversiva que, por outro lado, não tem qualquer possibilidade de pegar em armas. Aliás, até ideologicamente, o cristianismo inicial é uma variante do judaísmo que, deste, expressamente rejeita o projeto político da realização temporal do Reino de Deus: o meu Reino não é deste mundo. Ou ainda: a Deus o que é de Deus; a César o que é de César. Mas tal não significa que não tivesse havido, no próprio seio da Igreja, ou nas igrejas primitivas, divergências quanto a doutrinas e cultos, designadamente quanto à relação do cristianismo nascente ao judaísmo, quer no tocante à secessão da nova religião (lembra-te das polémicas em redor da obrigatoriedade de serem circuncidados os gentios que se convertessem à Boa Nova), quer à sua própria universalização, em oposição ou ultrapassagem da implantação próxima do reino messiânico prometido ao povo judeu. Ao São Paulo que defendia não haver, aos olhos de Deus, diferença entre judeu e gentio, escravo e homem livre, grego e romano, homem e mulher, igrejas cristãs - em Jerusalém ou na Galácia, por exemplo - insistiam na filiação prévia no povo eleito, o judeu, de qualquer pretendente a cristão. Aliás, os diferentes evangelhos atribuem ao Jesus histórico afirmações que tanto abonam um lado como outro. Serve este parêntese para ilustrar que tudo isso se passou em meio humano, cultural, tal como muitas outros debates e acontecimentos na vida da Igreja. Mas esta nasceu no Pentecostes, tem consigo e por si a fé em que o Espírito Santo vai soprando a vida do mundo...

 

   Alcorão começa por invocar o nome de Deus clemente e misericordioso. E todas as suas suras, exceto a nona, assim se iniciam. Tal é a fé de Abraão que, para as três religiões do Livro é o pai de todos os povos. Cronologicamente sendo o último dos monoteísmos vindos de Abraão, diz Ghaleb Bencheikh, doutor do Islão, franco-argelino de reconhecida autoridade, que a tradição religiosa islâmica se quer continuadora do ensinamento da Tora e propagadora da mensagem evangélica. Os seus valores assentam num alicerce ético comum ao judaísmo e ao cristianismo. Por muito tempo, aliás, a pregação maometana não falava de "islão", mas antes da imutável religião da coorte de Abraão. Em próxima carta falarei contigo sobre este tema.

 

   Sabes bem, Princesa, que sempre cuido mais de procurar o que aproxima do que o que separa, inclino-me mais para a descoberta da comunidade intrínseca da condição humana do que para a denúncia de conflitos de culturas ou civilizações. Onfray, a dado passo da sua reflexão sobre o islão, recorre às teses de Samuel Huntington. Todavia, eu penso que, para além da presença universal e indiscriminada do bem e do mal - ainda que, evidentemente, o tempo e o modo possam ser, e têm sido, mais ou menos propícios a um ou a outro - nenhuma etnia, cultura ou religião é necessariamente maligna ou benigna, nem qualquer conflito fatalmente inevitável. Não concordando com a opinião de muitos, inclusive Michel Onfray, de que há civilizações superiores a outras, prefiro uma achega antropológica e histórica, que nos ajude a compreendermo-nos nas nossas diferenças e a procurar o significado partilhado de um humanismo.

   Fica para outra carta, Princesa.

 

   Camilo Maria

 

Camilo Martins de Oliveira