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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

CARTAS DE CAMILO MARIA DE SAROLEA

 

 

 

   Minha Princesa de mim:

 

   Voltando a um dos temas do Penser l´Islam, de Michel Onfray, aqui traduzo a resposta escrita do autor a uma pergunta que lhe foi feita por Le Point, imediatamente após o atentado perpetrado pelo EI, a 13 de Novembro de 2015, no Bataclan, em Paris:

 

   No seu comunicado de reivindicação, o Daesh fala, referindo-se às vítimas do Bataclan, em "centenas de idólatras numa festa de perversidade". Será que essa gente odeia sobretudo o que nós somos?

   […] Com efeito, é uma guerra de civilização. Mas o politicamente correto francês proíbe que isso se diga, desde que Samuel Huntington fez excelentemente a sua análise em 1993. A civilização islâmica para que nos remete o Estado Islâmico é, na verdade, puritana. Faço observar que esta pergunta deixa entender que a França dispõe de uma "identidade nacional", que vemos melhor quando a identidade islâmica a põe à luz do contraponto histórico do momento. Mas como também é ideologicamente criminoso remetermo-nos para a identidade francesa, durante muito tempo nem se podia dizer que, na realidade, havia um modo de vida ocidental e que esse não era o modo de vida islâmico. Os turiferários do multiculturalismo confessam que há mesmo várias culturas e que, entre elas, algumas defendem o rock em noites de festa, enquanto que outras fazem desse evento "uma festa da perversidade". Têm todas as culturas o mesmo valor? Sim, dizem os tenentes do politicamente correto. Por mim, tenho tendência para pensar que é superior uma cultura que permite que a critiquem a qualquer outra que proíba que tal se faça e castigue com a morte qualquer reserva relativamente a ela.

 

   Sabes bem, Princesa, como penso que todos nós nos superamos, isto é, nos tornamos melhores, quando entendemos construtivamente as críticas que nos são dirigidas e sabemos, nós mesmos, exercer com prudência o espírito crítico. Digo aqui prudência no sentido de Santo Agostinho, que São Tomás gostava de repetir: A prudência é um amor sagaz. Quero, pois, deixar-te claro que não faz, para mim, qualquer sentido pretender que há hierarquias de culturas ou civilizações: costumo dizer que as culturas são, simplesmente, as circunstâncias das nossas vidas, ecossistemas das almas, a que naturalmente nos referimos, mas com os quais mantemos sempre uma relação dialética, que as faz evoluir. Falamos, por exemplo, da cultura europeia, mas essa não é hoje igualzinha à da Idade Média, ou da Renascença, etc., e até nos acontece dizer que está a mudar. Penso que tudo muda para sobreviver: para entendermos isto podemos observar, por exemplo, como o iluminismo e o laicismo se filiam na cultura cristã... No seu The Clash of Civilisations and the Remaking of World Order (1996), Samuel Huntington, a dado passo, escreve que civilização e cultura se referem à maneira de viver, em geral. Uma civilização é uma cultura em sentido lato. Estes dois termos incluem «os valores, as normas, as instituições e os modos de pensamento a que, numa dada sociedade, gerações sucessivas atribuíram uma importância fulcral» (Adda Bozeman, in Civilisations under Stress). Mas tal como a semente produz e o tronco sustenta, o núcleo e o esteio de uma cultura também vão criando ramos e folhas e flores e frutos, que se reconhecem na raiz comum e naturalmente se comparam com outras espécies e, por tal cotejo, também se identificam. Outra coisa deve ser o respeito mútuo: o direito à diferença é universal, não determina graus de superioridade, mas pressupõe, necessariamente, a salvaguarda da existência de todos e cada um. Posso achar que o rock - para usar o exemplo dado por Onfray - é festivo, ou perverso, mas tenho de aceitar que outrem goste do que me desgosta, e não tenha, do bem ou do mal, do belo ou do feio, o mesmo conceito que eu. Não me assiste, nunca nem de forma alguma, o direito de impor, nem me é permitido agredir.

 

   Infelizmente, a História dos homens está infestada de crimes contra a própria humanidade, mas tal não implica que sejam uma fatalidade inevitável, nem me parece que sejam imputáveis a uma ou algumas culturas. A todos nós o mal espreita, e a todos nos chama o bem. Entre ambos está a santa liberdade dos filhos de Deus, que, aliás, só pode existir no respeito pelo outro, isto é, básica e necessariamente, pela vida.

 

   O mal dos séculos, Princesa de mim, não é a desobediência, antes será a ignorância, a inconsciência. Só na liberdade da consciência, aguçado e provocante, pode inscrever-se o princípio da paz: não há bem que nos valha por nos ser imposto, só em liberdade sabemos e podemos escolher o bom, belo e vero. Do mal e de males todos sofremos, por imposição de outros ou demissão nossa. O que quero significar, quando falo em dialética de mim com a minha cultura ou circunstância, é que não sou, nem ninguém é, apenas vítima. Ontologicamente, o ser humano é relação, interage, como hoje se diz. Eu não sou só produto de uma cultura - nem cultura alguma é monolítica e inerte – evoluímos com elas e elas connosco. Parece-me importante entender isto em tempos ditos de globalização. Para que seja em paz o necessário convívio global, impõe-se, desde logo, atualizarmos o princípio socrático: nosce te ipsum.

 

   Tenho mais para te dizer, Princesa de mim, já fugi ao tema que me trouxe... 

   Mas vai longa a carta, digo na próxima.

 

   Camilo Maria

 

Camilo Martins de Oliveira