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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

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A VIDA DOS LIVROS

De 25 a 31 de julho de 2016.

Eduardo Lourenço, entrevistado pela Rádio Renascença sobre a vitória de Portugal no Campeonato Europeu, refletiu sobre um tema que bem conhece – o das fronteiras da identidade…


ÂNIMO PARA PORTUGUESES
«Os portugueses nem precisam desse contributo. Os portugueses são tão portuguesinhos, somos tão patriotas desde nascença até hoje que não precisamos deste tipo de suprimento de alma de uma vitória de futebol Mas, enfim, consola, sobretudo num contexto europeu como é o de hoje. A Europa está numa grande carência de sentido para ela própria. Discute a sua própria identidade. Algo incrível. Nós, sim, podemos fazê-lo». Eduardo Lourenço comentava a vitória portuguesa no Europeu de futebol, considerando-a como cura de um certo complexo de inferioridade. Esta vitória poderia, assim, contribuir para nos reconciliar com alguns fantasmas do passado coletivo, mas o ensaísta põe dúvidas sobre se faz sentido ainda alimentar essas sombras funestas. Afinal, os portugueses já não são atores secundários. E esta vitória foi um facto interessante, muito pouco mais. E se há um elemento curioso a salientar é que Fernando Santos demonstrou por a mais b que o improviso não é, não pode ser, característica dos sucessos portugueses. Somos invariavelmente melhores quando temos desafios muito exigentes e por isso alcançamos resultados positivos, o que decorre de muito trabalho, planeamento, organização e de muita vontade. Foi assim que agora aconteceu, Nada foi obra do acaso ou circunstância fortuita. Tudo resultou de uma preparação muito cuidada e cautelosa. Afinal, a equipa não se apresentava (com as exceções conhecidas) recheada de figuras excecionais. E, no entanto, pôde superar-se e contrariar todos os maus prognósticos e vaticínios. Não era «bluff» dizer que tínhamos limitações. Mas que é a inteligência senão a capacidade de resolver problemas, mesmo contra todos os contratempos e vicissitudes? O certo é que a equipa tinha respostas e argumentos fortes para se defender… E pô-los em prática e a render.

 

NADA DE EXTRAORDINÁRIO
O hábito de jogar bonito e de ter vitórias morais, deu lugar ao compromisso cumprido de chegar aos objetivos propostos, mesmo que tal exigisse sangue, suor e lágrimas. Eduardo Lourenço tem-nos habituado a encarar o tema da identidade como definição do que afirma e do que distingue, recusando a tentação do fechamento e da singularidade absoluta com todos os seus complexos de superioridade e inferioridade. Sobre este caso, de um confronto entre portugueses e franceses, Eduardo sente-se especialmente à vontade: «Enfim, os meus filhos são franceses, a minha mulher era francesa, de maneira que poderia estar um pouco dividido, mas não estou». Afinal, a identidade de uma cultura que é um cadinho de múltiplas influências, que se abriu para «dar novos mundos ao mundo», que é múltipla, complexa e aberta e que está repartida por toda a parte, permite compreender que o universal está representado no particular. Nesse sentido, pode compreender-se a proximidade, o pequeno orgulho dos grandes momentos, mas há que entender o que nos une e separa, quem somos e o que o que não podemos esquecer nos outros. Conscientes de quem somos e sem ter de provar o que quer que seja a alguém, sabemos que há tempos para nos regozijarmos e tempos para aceitarmos o facto de não termos conseguido. Não somos nem melhores nem piores, somos nós mesmos – com qualidades e defeitos, mais ou menos ciosos de nós… Ao visitarmos a exposição sobre a obra de José Escada na Fundação Calouste Gulbenkian, percebemos diversas coisas importantes sobre o amor que o pintor tinha a Portugal. Mais do que enaltecer o sublime, o que o artista deseja é manifestar a sua ligação a algo que único e irrepetível – o povo, as cores, as coisas, a «joie de vivre», os pequenos elementos de um autêntico exercício de artesanato e de paciência. Muitas vezes quase sentimos que temos glosas sobre um mote de Amadeo de Souza Cardoso com as inconfundíveis cores do seu Entre Douro e Minho. 

 

…SOLUÇA O MAR
E, como diria, a sua alma gémea de poesia e arte, Sophia de Mello Breyner: «Me dói a lua me soluça o mar / E o exílio se inscreve em pleno tempo» (Livro Sexto, 1962). Como Unamuno bem pressentiu e Eduardo Lourenço interpretou, com rigor e perfeição, somos feitos de lirismo e de história trágico-marítima. Acaba, aliás, de sair na Fundação Gulbenkian o terceiro volume da Obra Completa de Eduardo Lourenço - «Tempo e Poesia», coordenado por Carlos Mendes de Sousa, onde podemos tomar contacto um percurso coerente e multifacetado que é muito mais do que um tratado, mas sim um repositório interpretativo único. Podemos invocar Cesário, Nobre, Pascoaes, Sá-Carneiro, Almada, Régio, Torga, Casais Monteiro, Nemésio, Mário Dionísio, Sena, Sophia, Eugénio até Manuel Alegre, Herberto, Ruy Belo, António Osório, Fiama, Vasco Graça Moura… Mais tarde ou mais cedo, encontraremos desde a poesia trovadoresca à rica poesia contemporânea, passando por Camões, Sá de Miranda, Bocage, Garrett, Herculano, Antero de Quental, João de Deus, Camilo Pessanha, Fernando Pessoa e todos mais… Se bem virmos as coisas, Portugal como palavra é uma eterna convergência da lembrança e do desejo, do amor e da provação, e a língua portuguesa, espalhada pelo mundo, plena de diferenças e desencontros, foi-se construindo nessa pluralidade magnífica e nessa complementaridade inesgotável… A língua portuguesa, temperada com mais açúcar ou mais especiarias, é o traço de união e de diferenciação. E se dúvidas houvesse João Guimarães Rosa leva-nos em busca da terceira margem, Baltazar Lopes da Silva introduz-nos nas diferenças e nos segredos dos crioulos, Mia Couto reinventa-nos em permanência, Pepetela e Agualusa põem-nos em contacto com as grandes superfícies de terra e mar, Raduan Nassar interroga e confronta as raízes em «Lavoura Arcaica»… Mas o ensaísta de «Labirinto da Saudade» é perentório: «Não temos nada que provar. O que tínhamos de provar ao mundo já provámos quando isso era uma novidade e constituía uma ação para a humanidade inteira. Temos sempre este complexo de ser uma pequena nação não tão visível como outras. Mas outras nações também não são visíveis». Não somos melhores ou piores, somos nós mesmos. Portugal é uma série de milagres. Herculano chamou-lhe vontade. «Não se sabe assim como é que há quase mil anos este país pequenino, aqui no canto da Europa, é ainda sujeito do seu próprio destino.». A História é uma batalha cultural, sempre. «A Europa define-se na sua relação com o que não é Europa. Só sabemos o que é Europa quando estamos fora da Europa. Na Europa temos uma experiência normal. É como a experiência de quem está em casa. Há até uma pluralidade de casas que, mais ou menos, têm afinidades entre elas. Isso é a Europa». Mas há ameaças e perigos, e até a indiferença e a acomodação. Falta a normalização connosco próprios. Perante tantos sinais de incerteza persiste uma miragem europeia. Contudo, a Europa fechada definha. Importa tirar lições, procurando caminhos que permitam encontrar a defesa de um pequeno e eficaz núcleo de interesses e valores comuns.

 

Guilherme d'Oliveira Martins
Oiça aqui as minhas sugestões - Ensaio Geral, Rádio Renascença