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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

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A VIDA DOS LIVROS

    De 31 de outubro a 6 de novembro de 2016

 

Acaba de ser publicado o primeiro volume de «Camiliana», onde se reúnem «Todos os Contos, Novelas Curtas e Romances Breves» de Camilo Castelo Branco, com recolha, prefácio e notas de José Viale Moutinho (Circulo de Leitores, 2016).

UM CASO SINGULARÍSSIMO

Camilo Castelo Branco é um caso singularíssimo na língua portuguesa. Longe do repentismo ou da facilidade, estamos perante um cultor das letras que se evidenciou ao saber aliar grande talento narrativo, capacidade de evocação única e exigência de profissional, que se equiparam aos dos maiores escritores de sempre, como Dickens ou Balzac… Alexandre Cabral fala, com razão, do «exemplo de um profissionalismo sem mácula, nesse estrito aspeto, que não foi ainda ultrapassado». Fialho de Almeida calculava a produção camiliana em cerca de 180 volumes e 54 mil páginas. Hoje sabemos que esse cálculo é feito nitidamente por defeito. E quanto ao rigor, não posso esquecer a sua cultura enciclopédica e o respeito dos seus contemporâneos pelas suas opiniões. Oliveira Martins retificou a primeira edição da «História de Portugal» com base nas apreciações que pedira ao mestre Camilo. É, de facto impressionante a amplitude de conhecimentos que permanentemente cultivava e o à-vontade com que lidava com as fontes coevas. E no tocante ao uso da língua, nunca se deixou deslumbrar pelos arrebiques escusados, antes ligando a clareza à diversidade vocabular, para ser fiel às particularidades e diferenças culturais. Nesse ponto é inigualável. E não é preciso entrar em comparações com outros dos nossos melhores – Camilo é Camilo. Aquando da prisão na Relação do Porto, no processo de Ana Plácido, D. Pedro V fez questão de visitar o romancista duas vezes, em novembro de 1860 e no final do Verão de 1861 e, como corresse a notícia de que o monarca lhe mandara oferecer dois contos de réis, Camilo apressou-se a esclarecer e a desmentir: «Eu creio que o Sr. D. Pedro V é infinitamente delicado, e só dá esmolas a quem lhas pede. Quando S. M. me fez a honra de perguntar, na cadeia, em que ocupava, respondi a S. M.: que trabalhava. Ou o Sr. D. Pedro V entendesse que eu me ocupava em chapéus de palha ou em romances, ou em caixinhas de banha, a minha posição ficava defendida para o inteligente monarca: o homem que trabalha não pede nem aceita esmolas; e, se a pedisse ao rei, julgar-se-ia tão humilhado, como se a pedisse ao ínfimo dos homens». Estava em causa a hombridade e a direitura da sua dignidade. De personalidade marcada e feitio tantas vezes agreste, Camilo tem, na sua longa obra, severas apreciações críticas que atingem mil suscetibilidades. Houve, por isso, razões para ódios e suspeições, mas, à distância, ao lermo-lo fica-nos a grande riqueza da matéria-prima com que lida - a vida de uma sociedade marcada por dualismos e diferenças profundos, que só poderiam ser retratados e compreendidos por quem tivesse oportunidade crítica e capacidade de ver o tempo à luz da duração e do largo prazo… Tendo-se arrependido de alguns repentes, hoje podemos entendê-los, porque permitem perceber os acontecimentos para além das simplificações imediatistas…

 

UM IMPORTANTE ACONTECIMENTO

A publicação deste primeiro volume de «Camiliana» (Círculo de Leitores) corresponde a um acontecimento tanto mais assinalável quanto é certo continuarmos a ter falhas graves na disponibilização ao público de obras fundamentais da nossa literatura. Aqui reúnem-se «Todos os Contos, Novelas Curtas e Romances Breves» de Camilo Castelo Branco, com recolha, prefácio e notas de José Viale Moutinho. Longe da polémica dos cânones, ou seja, de saber se o génio de Seide foi romancista ou novelista, contista ou escreveu crónicas romanceadas, a verdade é que na criação camiliana, independentemente do fôlego maior ou menor, a verdade é que encontramos, invariavelmente, um poder narrativo superlativo. Folheie-se este suculento volume e confirme-se essa qualidade extraordinária. Permito-me, a título de exemplo, falar de «Que Segredos são Estes?», publicado nas «Noites de Insónia», e mais recentemente na antologia «As Novelas de Camilo»… É um texto notável, pequeno mas muito tenso, a que não faltam os ingredientes fundamentais. «O enfermeiro-mor da casa da saúde conduziu-me ao quarto de Duarte. Com certeza, se eu o encontrasse desprevenidamente, não o conheceria. O espasmo dos olhos seria bastante a desfigurar-lhe as outras feições, quase sumidas na desgrenhada cabeleira e nas barbas. Imobilizava-lhe o semblante a sinistra quietação da demência contemplativa». Duarte Valdez era um amigo do narrador, mas a vida transformara-o num farrapo… E o drama resume-se à consciência pesada pela responsabilidade de duas mortes. Valdez dizia ter morto as duas mulheres que amara… «Passados alguns segundos, fiz-lhe esta vulgaríssima pergunta: - Como as mataste tu? – Despedaçando-as uma contra a outra. Pode ser que o leitor esteja sorrindo, porém, que o tremor daquelas palavras vibrava tanto no seio do aflito moço que uns calafrios me correram a espinha, e o turvamento das lágrimas me embaciou a vista…». E fica a curiosidade de saber se não estamos perante um vulgar assassino. Longe disso… A narrativa desenrola-se no registo onírico e fantasmático em que o amor e a morte se confundem, urdidos sabiamente pelo novelista, que nos transmite com economia de palavras, mas com grande densidade de emoções, algo cuja verosimilhança é evidente… Em «O Tempo de Camilo Anotado Ano por Ano», o organizador da obra, com grande mestria, leva-nos a partir da vida do autor de «Amor de Perdição», através dos acontecimentos do país e do mundo. E sentimos como há um enredo romanesco, donde tudo parte, na existência atribulada, e nem sempre evidente, de Camilo. Desde muito cedo, há tendência para se embrenhar em polémicas, para formular juízos severos, para criar anticorpos… Em Ribeira de Pena, em 1843, escreve e afixa na porta da matriz versos ofensivos a uma família importante da vila. Para salvar a pele foge para Vilarinho de Samardã… Em 1846, devido a uma série de artigos publicados no Porto em que criticava o Governador Civil de Vila Real, é barbaramente agredido… Foge com Patrícia Emília para a cidade invicta, mas é acusado por um tio de roubo, sendo ambos presos. Com traços romanescos, porém, o tio confessará depois que era falsa a acusação, feita apenas para travar a fuga… Em 1850, sai a lume o primeiro romance do novel autor - «Anátema»… Estes breves exemplos ilustram uma vida sentimental intensa, que culminará no caso de Ana Plácido, e uma vida familiar dramática. Este é, no entanto, o pano de fundo, de uma persistência admirável enquanto profissional da escrita. Ele confessa: «Eu inclinava o peito crivado de dores sobre uma banca para ganhar, escrevendo e tressudando sangue, o pão de uma família. A luz dos olhos bruxuleava já nas vascas da cegueira. E eu escrevia, escrevia sempre». Ao longo de 669 páginas, a duas colunas, temos muita matéria reveladora da inesgotável qualidade camiliana. E mesmo em «A Via Sacra», cujo fim desconhecemos, resta-nos a certeza de que a intensidade narrativa dispensa epílogos…      

 

Guilherme d’Oliveira Martins

Oiça aqui as minhas sugestões - Ensaio Geral, Rádio Renascença

 

CARTAS DE CAMILO MARIA DE SAROLEA

 

 

   Minha Princesa de mim:

 

   Em carta ida, antes da anterior, já te falara de Madalena e da questão da sua identidade. Curiosas lendas antigas, escritos apócrifos, apresentaram-na como noiva de João, o discípulo que Jesus amava, outros como companheira de Jesus (pensa no Evangelho de Filipe, apócrifo gnóstico); romances hodiernos comprazem-se em celebrar o seu casamento com Cristo, de quem teria descendência; tal como o nosso Saramago os põe nos braços carnais um da outra. Nada de novo, nem original, já no século XIII a Legenda Aurea de Tiago Voragino referia: Dizem alguns que Maria Madalena fora noiva de João Evangelista, e que estava mesmo para casar com ele, quando Cristo o chamou no momento da boda. E Madalena, indignada por ele lhe ter roubado o noivo, foi-se embora e entregou-se a todas as possíveis volúpias. Mas como não estaria bem que a vocação de João se tornasse em ocasião de danação para ela, o Senhor, em sua misericórdia, converteu-a à penitência; e porque a arrancou aos supremos prazeres da carne, encheu-a, mais do que aos outros, do supremo deleite espiritual, que reside no amor de Deus. Alguns também dizem de João que, se Cristo o honrou admitindo-o na sua doce intimidade, foi porque o tinha afastado do prazer de Madalena. Mas são ideias falsas e frívolas.

 

   Frei Tiago Voragino era dominicano prudente e sábio, foi sagrado arcebispo de Génova, onde morreu em 1298. Entre as suas lendas douradas - que, afinal, são sermões que acompanham as festas dos mistérios da fé, ao longo do ano litúrgico e do calendário hagiográfico - além de vidas de santos e reflexões teológicas, respiga tradições da devoção popular, incluindo, como no exemplo acima, as que considera fantasiosas, tal como outras, bonitas e toleradas pela Igreja, que ele encontrou em textos apócrifos. Creio que tinha noção da baralhada à volta da identidade da Madalena, personagem sobre a qual, hoje ainda, muitas coisas poderão ser ditas sem que alguma acerte. Exceto, quiçá, uma só: Lucas, no seu evangelho (Lc. 2, 8), narra o episódio da mulher possuída por sete demónios - e, eles sendo sete, quer isso dizer que estava totalmente possuída - que Jesus exorciza. Essa mulher, ali identificada como Maria de Magdala, toma a liberdade que lhe foi então dada para seguir Jesus, amá-lo e servi-lo até à cruz. Será a primeira a testemunhar a ressurreição do Senhor e, nesse momento, quando o reconhece, quererá tocar-lhe a fímbria da túnica. Mas fica-lhe no ar o gesto, pois Cristo ordena que não lhe toque. Noli me tangere - essa intimação em latim da Vulgata de S. Jerónimo - será, como sabes, tema de incontáveis criações da iconografia cristã...

 

   Assim, o essencial da pessoa Madalena não é quem ela, de facto, em carne e osso, foi. Mais é a personificação do destino humano da misericórdia de Deus: tomando a nossa condição mortal, vence a nossa contingência, supera os demónios do nosso mal, e a própria morte, é, como na parábola do filho pródigo, a vitória e a glória do amor regressado. Talvez por isso, desde muito cedo a devoção cristã identificou numa só Maria Madalena, não só essa de quem saíram os sete demónios, mas a de Betânia, irmã de Lázaro - a tal que escolheu a melhor parte, a contemplação da palavra de Jesus - e a pecadora que com suas lágrimas lhe lavou os pés, os enxugou com seus cabelos e perfumou com bálsamos caros em casa de Simão, o fariseu. Em 591, o papa S. Gregório Magno declarou-as a mesma e uma só pessoa. E assim permaneceu essa lição de teologia da Redenção no imaginário e na devoção dos cristãos.

 

   Camilo Maria

 

Camilo Martins de Oliveira

A FORÇA DO ATO CRIADOR

 

Shirley Jaffe e a rutura com a pintura do gesto puro.

 

'I became aware that gesture as gesture was not sufficient for me. Something wasn’t working.', Shirley Jaffe.

 

Quase figura, quase gesto, quase geometria, quase símbolo. Shirley Jaffe (1923-2016) é uma pintora que se distingue dos da sua geração - veja-se Joan Mitchell (1925-1992), que também expatriada em França, nunca abandonou a pintura gestual. Em 1949, Shirley Jaffe trocou, para sempre, Nova Iorque por Paris.

 

A pouco e pouco o expressionismo abstrato de Jaffe, transformou-se numa pintura de gestos construídos e de contornos bem definidos.

 

Jaffe sempre desejou referir-se a uma experiência complexa e deslocada e em dar expressão a uma multiplicidade de acontecimentos visuais. No livro 'Shirley Jaffe. Forms of dialocation', de Raphael Rubinstein lê-se que deslocação é de facto um conceito que teve muito peso na vida de Jaffe. Durante a sua longa vida, Jaffe teve duas mudanças geográficas decisivas - mudou-se para França aos 26 anos e nos anos sessenta, em Berlim, passou um ano decisivo para a sua pintura.

 

Shirley Sternstein (só depois Jaffe) iniciou a sua educação artística em Nova Iorque. Graduou-as na Cooper Union em 1945 e até então desconhecia o trabalho de Pollock, De Kooning e Rothko. Os seus professores da Cooper Union e da Phillips Gallery School of Art (escola onde prosseguiu os seus estudos) trabalhavam sob influência cubista. Porém ao referir-se a estes anos Jaffe afirma: 'I preferred to draw in the subway and look for my own way somewhere else.' E as pinturas de Kandinsky que Jaffe visitava no Museum of Non-Objective Painting tiveram em si uma influência decisiva, por causa da intensidade do gesto.

 

Ao mudar-se para França, com o seu marido Irving, resultado de um impulso, possibilitou a existência de novas perspetivas, novas oportunidades e uma abertura ao mundo. Jaffe fazia parte do grupo de pintores, que incluía Sam Francis, Norman Bluhm, Jean-Paul Riopelle, Joan Mitchell e Kimber Smith. E sobretudo partilhavam ideias, porque desde cedo Jaffe pintava como que cada gesto fosse único. E este exercício, que evitava repetir a marca que a mão pinta, deu desde logo à pintura um desejado sentido de multiplicidade, justaposição, coexistência e complexidade - e que em grande medida antecipou o desenvolvimento da sua pintura.

 

'Intellectually, it seemed to me that it was stupid to continue making gestures to develop the painting when the gesture wasn't pure. I was reworking a gesture, which should be beautiful in itself, and in the process what I was doing was destroying the color because I overworked and repeated. You know, I was destroying the essence of what we would call gesture. It was like taking a beautiful Chinese line and constantly redoing it.', Jaffe, 2010.

 

Em 1963, Jaffe foi para Berlim, com uma bolsa concedida pela Ford Foundation. E foi a partir deste momento que Jaffe teve a oportunidade de iniciar um caminho que vai além da abstração simplesmente gestual.

 

'The real change in my work started when I came back from Berlin, in ‘68 or ’69. Prior to Berlin my paintings were gestural, with an all-over surface of strokes vaguely suggestive of relationships. In Berlin those gestures began to become more defined, often starting with compositional devices: criss-crosses, ovals, and so on.', Jaffe.

 

Em Berlim, ao viver 'uma nova adolescência', Jaffe começou a assistir a concertos de música contemporânea (ouvia Xenakis, Carter e Stockhausen) e retirava, destas experiências que achava estruturais, analogias para pensar a sua pintura: 'Composition appeared to me in a much more visible way. To listen to concerts was like visiting an exhibition.'

 

O anseio por uma pintura mais analítica, mais direta e mais construída fez com que Jaffe ao regressar a Paris, desejasse ter também um papel mais ativo na sociedade e a interessar-se pelo ambiente urbano que a rodeava.

 

'I wanted to give, in my paintings, a vision of the city as I was seeing it. That took me a long time.'

 

E foi finalmente a partir de 1968, que Shirley Jaffe definitivamente rompeu com o gesto puro e começou a pintar estruturas muito rígidas:'I started to paint in the most summary fashion, beginning to paint the way you learn the ABC, like learning a language. I knew that if I wanted to control my paintings, I would have to control the gesture.'

 

Ana Ruepp

 

 

CARTAS DE CAMILO MARIA DE SAROLEA

 

 

   Minha Princesa de mim:

 

   Françoise Morard comenta: O Evangelho segundo Maria, embora em nada seja uma narrativa da vida e morte de Jesus, deve ter recebido o título de Evangelho por transmitir uma mensagem emanada do Senhor. Pode inscrever-se na linha dos ensinamentos que Cristo ressuscitado dispensa, antes de se despedir, aos seus discípulos desamparados. Pela atualidade da promoção da figura de Santa Maria Madalena como nova "apóstola" celebrada na liturgia católica, deixo-te mais um apontamento da mesma perita: O ancoradouro deste texto encontra-se muito certamente no passo do Evangelho de João, em que Maria de Magdala anuncia aos discípulos: «Vi o Senhor e eis o que ele me disse» (João 20, 18). O privilégio da visão concedida por Jesus àquela que ele amava mais do que aos outros discípulos, homens ou mulheres (10, 2-3 e 18, 14-15) ganha aqui uma importância especial: dá a Maria o conhecimento perfeito que lhe permite, não só ela própria entrar no mistério, mas ainda, iluminando-o, nele introduzir os demais. Este papel da Magdalena, da qual, com o decurso dos tempos, só se recordam as lágrimas e a conversão, foi objeto de numerosos comentários e menções nos primeiros séculos da nossa era. E já vamos perceber porquê. Só te peço que, depois de mais um comentário de Morard, leias a tradução que aqui te faço dos passos finais do Evangelho segundo Maria. Verás que o gnosticismo andou bem presente pelas primitivas comunidades ou igrejas cristãs, compreenderás como o próprio São Paulo tinha a sua costela gnóstica, penso eu, e como se impuseram os cânones à tradição inicial da teologia cristã.

 

   Antes, contudo, recordo o que te escrevi numa ou duas das cartas sobre a figura do pai, no Regresso do Filho Pródigo, do Rembrandt: duas mãos abraçam o pródigo, uma masculina, outra feminina. Assim se imagina Deus pai e mãe, e regressa o filho ao lar da unidade. Sobre a cena, e no interior dela, dos seus figurantes, reina um misterioso silêncio, misericordioso e íntimo. Num estudo publicado em Apocrypha (12, 2012), a citada investigadora já se debruçava sobre a inspiração ascética dos gnósticos. E, no comentário que seguimos: Este mesmo tema da reunificação do Homem, macho e fêmea, encontra-se também em textos gnósticos do século II, tais como "A Exegese da Alma". Mas é também testemunhado por vários escritos cristãos dos primeiros séculos: o "Evangelho dos Egípcios", a "Segunda Epístola de Clemente de Roma", ou ainda, e especialmente, no "Evangelho Segundo São Tomé". Antes desta chamada de atenção, Françoise Morard já insistira no carácter particular da mensagem do apócrifo (e, creio, gnóstico) Evangelho segundo Maria. Quando leres a transcrição do trecho final, que te traduzirei, perceberás melhor o que a investigadora quis dizer, em abono da sua tese de que se trata de uma exortação ascética, ao escrever: Na verdade, diante da perturbação e angústia dos discípulos desamparados perante a partida de Jesus e a tarefa que lhes confiou, Maria lembra-lhes o que, aos olhos dela, é essencial no dom concedido aos seus fiéis pelo Cristo ressuscitado: a graça de um ser inteiramente renovado nele e à sua imagem, doravante neles restaurada pela salvação: «Ele uniu-nos, tornou-nos Homem». Este tema da reunificação do composto humano, feito de um elemento fêmea, a alma, e dum elemento macho, o intelecto, está presente na especulação hermética grega do Poimandrés [o dragão da sabedoria]. Nesse tratado, na verdade, o homem, gerado pelo Nous-Pai, que é simultaneamente macho e fêmea, encontra-se imerso na matéria, onde é duplo: mortal quanto ao corpo, dependente dos quatro elementos primordiais, imortal quanto ao Homem essencial, nele tornado alma e intelecto. Além disso, padece da divisão de todos os seres em machos e fêmeas. Está contudo prometido a um destino eterno, na medida em que, conhecendo-se como imortal, procura o Bem superabundante que é vida e luz. O seu destino futuro depende, pois, da qualidade da sua vida cá em baixo e do seu conhecimento pelo Nous [intelecto]. Quando morrer, o seu corpo está votado à dissolução. A alma, em contrapartida, ascenderá através das esferas e abandonará, como vestidos, as paixões de que se tinha revestido ao descer à terra. Entra então em Deus e torna-se Deus, «Ele que só o silêncio pode nomear».

 

   Eis, por outras palavras, a experiência ascética e mística que Madalena relata no seu testemunho da visão de Cristo ressuscitado, depois de Pedro lhe implorar: «Irmã, nós sabemos que o Salvador te amava mais do que a qualquer outra mulher. Diz-nos pois as palavras do Salvador de que te lembrares, essas que conheces e nós não conhecemos nem ouvimos.» Segue-se, ao testemunho de Maria, o seu silêncio. André toma então a palavra e diz a seus irmãos: «Dizei o que pensais a respeito do que ela acaba de afirmar. Quanto a mim, não acredito que o Salvador tenha dito isso. Estes ensinamentos, na realidade, parecem-me derivar de um pensamento diferente». Pedro tomou a palavra e exprimiu-se sobre questões da mesma ordem; interrogou-os acerca do Salvador: «Poderá ele ter conversado secretamente com uma mulher, à nossa revelia e sem ser abertamente, a tal ponto que devamos dar a volta e obedecer-lhe todos, a ela? Tê-la-á ele escolhido, de preferência a nós?» Então, Maria chorou e disse a Pedro: «Pedro, meu irmão, que estás tu a pensar? Pensas que tive, por mim só, tais pensamentos no meu coração, ou que esteja a mentir a respeito do Salvador?» Levi tomou então a palavra e disse a Pedro: «Pedro, foste desde sempre propenso à cólera, e vejo-te agora discutir com a mulher como se fosse um adversário. Todavia, se o Salvador a tornou digna, quem és tu para a rejeitar? Com certeza que o Senhor a conhece bem, por isso a amou mais do que a nós. É melhor termos vergonha, revestirmo-nos do Homem perfeito, fazê-lo nosso como ele nos ordenou, proclamarmos o Evangelho sem impor outra regra nem outra lei além da que o que o Salvador nos prescreveu.» Depois destas palavras de Levi, eles fizeram-se à estrada, para anunciarem e proclamarem

                                                                 O Evangelho segundo Maria

  

   Assim termina o texto e surge o título. Datado, como te disse, de meados do século II, esse texto reflete, provavelmente, quer a inquietação nascente do que se tornaria numa corrente herética, mas não só, do pensamento e da sensibilidade cristã - o gnosticismo conheceu muitas formas e veredas, e a sua atração perdurou e foi seiva que alimentou, entre outros, o movimento dito cátaro na média idade europeia - quer a eterna questão do lugar das mulheres na Igreja... E da própria natureza delas, aos olhos do Deus cristão, realidade também muito sensível nas comunidades de Bons Homens e Boas Mulheres, só no século XIX apelidados de cátaros.

 

   Mas disso - como da cabeça degolada de São João Baptista, Templários e fantasias circundantes, te falarei em próximas cartas.

 

   Camilo Maria

 

Camilo Martins de Oliveira

 

 

 

A LÍNGUA PORTUGUESA NO MUNDO

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XVI - O DIREITO À IDENTIDADE LINGUÍSTICA 


ENQUADRAMENTO  

1.
O direito à identidade pessoal e ao desenvolvimento da personalidade, como expressão do direito à identidade cultural, inclui os vínculos de filiação, a identidade civil, o direito à intimidade, à imagem, à palavra, ao nome, bem como o direito de uso da língua, sendo o idioma materno, ao mesmo tempo, um dos primeiros elementos individualizadores da identidade cultural (cf. artigos 26.º, 52.º e 78.º da Lei Constitucional Portuguesa). Nos termos do artigo 11.º, n.º 3 da Constituição da República Portuguesa, a língua oficial é o português, sendo uma das tarefas fundamentais estatais o seu ensino, valorização, defesa, uso, promoção e difusão internacional (art.º 9.º, alínea f)), a que se adicionam os laços singulares amistosos e de cooperação com os países falantes de português (artigos 7.º, n.º 4 e 78.º, n.º 2, al. d)), a equiparação, nos termos da lei e de reciprocidade, dos direitos dos seus cidadãos aos dos portugueses (art.º 15.º, n.º 3), sem esquecer o ensino aos filhos de emigrantes (art.º 74.º, n.º 2, al. i)).


2. Sendo o português língua oficial significa, nomeadamente: 
“ - o uso exclusivo do português pelos titulares dos órgãos do Estado, das regiões autónomas e do poder local, bem como de quaisquer entidades públicas, tanto no país como no estrangeiro;                                                                                              
- a produção em português de todos os atos de funções do Estado e de todos os procedimentos e processos a ele tendentes (políticos, legislativos, administrativos, judiciais);
- a publicação em português de todos os diplomas emitidos por estes órgãos;
- a tradução para português de todas as convenções e de todos os atos de organizações internacionais e da União Europeia vinculativos para Portugal;
- a utilização do português como língua oficial da União Europeia;
- a publicação em português de todos os atos notariais;
- a regra da composição em língua portuguesa dos nomes de todas as pessoas nascidas em Portugal, salvo filhos de estrangeiros residentes em Portugal ao serviço dos respetivos Estados;
- a exigência de domínio do português, oral e escrito, para efeitos de naturalização;
- o ensino em português em todas as escolas públicas, privadas e cooperativas, com exceção (mas sempre com ressalva do ensino também em português) de escolas pertencentes a Estado estrangeiro;
- a etiquetagem em português de todos os produtos à venda em Portugal;
- a possibilidade da proibição de nomes comerciais em línguas estrangeiras.”[1]


Esta salvaguarda da nossa identidade linguística é extensiva a outras designações e situações, desde as artes em geral a manifestações culturais, incluindo o ensino de português aos imigrantes que o desconheçam.

 

INQUIETUDES E QUESTIONAMENTOS

3. É de questionar se é respeitado esse direito, desde logo via cumprimento das respetivas obrigações constitucionais.
É ineficaz a retórica das centenas de milhões de falantes, quando um dos poucos idiomas com caraterísticas de universalidade do século XXI, nem sempre é digno do respeito que merece por aqueles que o têm como oficial.
Exemplos existem, não só a nível político, governamental e diplomático, mas também da sociedade civil em geral, inclusive na nossa própria casa.

Eis uma enumeração exemplificativa:
- uso em público de idiomas estrangeiros por titulares de órgãos de soberania nessa  qualidade;
- omissão frequente, por muitas elites e políticos, do nosso idioma em conferências, encontros e reuniões em solo luso com parceiros de outros países, mesmo tendo por destinatários cidadãos portugueses ou o povo português em geral;  
- não tradução oficial para português, nem a publicação no Diário da República, de memorandos de entendimento ou acordos com o Fundo Monetário Internacional, o Banco Central Europeu, a União e a Comissão Europeia, ou instituições congéneres, de âmbito internacional, que impliquem negociações com o Estado Português;
- comercialização e distribuição de produtos importados omissos quanto a instruções escritas em língua portuguesa;
- admissão e permissividade das primeiras denominações de escolas e faculdades universitárias em língua estrangeira, designadamente em inglês, algumas delas, sem apelo nem agravo, omitindo o português, o mesmo sucedendo com outras instituições de investigação científica ou similar;

- denominações de sociedades, cartazes publicitário e luminosos em língua estrangeira,  com total omissão em português;
- violação do direito fundamental à língua e à identidade linguística, via imposição, a alunos portugueses, de outra língua, em aulas dadas por professores portugueses (e não estrangeiros) em universidades portuguesas;
- não incentivo aos alunos do Erasmus, quando entre nós, a aprender português, o que é contrário ao interagir e não uniformização linguística de tal programa;
- a rapidez com que, no desporto, jogadores e técnicos portugueses se adaptam ou tentam adaptar a um bom uso da língua oficial de Espanha quando aí trabalham ou residem, não recíproca e inversamente proporcional aos esforços que técnicos espanhóis e desportistas fazem para se adaptar a um bom domínio do português em Portugal, com aceitação geral, entre nós, ao invés do que sucede no país vizinho;  
- é usual falantes de castelhano, residentes entre nós, falando e escrevendo-o à vontade, com pouca ou nenhuma concessão ao português, ao invés duma percentagem significativa de portugueses a falar ou simular falar castelhano, mesmo em Portugal, se abordados por turistas vizinhos no nosso país;
- negligência de agências e viajantes nacionais na feitura de viagens ao exterior, aceitando, sem mais, guias ou intérpretes em línguas estrangeiras, havendo alternativas no uso do português, dando azo a que não se difunda e valorize mais pelo mundo, inclusive para um maior número de empregos a intérpretes não maternos que o têm como língua de exportação e futuro;
- com a agravante, cada vez mais notória, da contratação e aceitação de guias em espanhol, dando a este idioma um valor acrescentado, e menorizando o nosso, uma espécie de dialeto daquele;
- abuso, recurso galopante e imponderado, por vezes uma importação cega, de estrangeirismos e neologismos, nomeadamente de expressões de matriz anglo-saxónica;
- degradação da língua portuguesa, como idioma de trabalho na União Europeia, debilitando-a e secundarizando-a, como o comprova a aceitação, pelo governo português, da nova patente “anglo-franco-alemã”, no âmbito da Convenção da Patente Europeia, visando uma cooperação reforçada das patentes, privilegiando o francês, inglês e alemão.

4. Esta listagem significativa, mas meramente exemplificativa, questiona-nos pelo não cumprimento de normas imperativas de natureza constitucional, com desrespeito pelo nosso direito à identidade linguística, tantas vezes corroborado por inércia nossa, dando um tiro no próprio pé ou poluindo a própria água que bebemos.
O imobilismo dominante, por oposição à garra, vivacidade, liberdade de expressão e de opinião quanto ao Acordo Ortográfico (concorde-se ou não), é manifesto e notório. Porquê esta desproporção de debates e omissões em redor de situações inerentes à mesma língua? Seria e será desejável que fiquemos inquietos com os desrespeitos e incumprimentos enunciados, alguns bem preocupantes, que importa evitar e suprir.

 


24 de outubro de 2016

Joaquim Miguel De Morgado Patrício

 

[1]  Miranda, Jorge; Medeiros, Rui, Constituição Portuguesa Anotada, Tomo I, notação ao art.º 11.º, pp. 109/10, Coimbra Editora, 2005.

Renato Zero, um dos maiores e mais corajosos poetas da música de Itália

 

No início da noite, no Coliseu de Roma, entra em palco Renato Zero (nome artístico de Renato Fiacchini). Ergueu-se de imediato a taça da fonte que faz brincar a água parada da vida. Começou a magia, e eu deixei-me cair no seu caminho, ou não sentisse que o movimento da vida, faz o seu ninho na poesia e música de Renato Zero.

Não sei dizer como me chegou aos olhos por vidro nulo a figura de Renato. Nem sei como fiquei sem medo, um sem medo em segredo, mas que ele conhece existir em todos nós. Por isso mesmo Renato usa as suas mãos também para segurar a candeia do amor seguro que nos entrega.

A noite inicia-se pedindo em troca a sua voz. E logo que choro, ele pede à porta do meu coração para entrar. Cantamos todos. Canta o Coliseu inteiro. Ouvem-se ainda assim as asas das palavras contidas nas músicas que Renato soberbamente canta, ou não estivéssemos a ouvir um dos maiores e mais corajosos poetas da música de Itália.

(“Sei uno zero” è la frase che più si sentirà ripetere quando travestito e truccato cominciò ad esibirsi in piccoli locali romani)

 

«Doutor? Acha que agora estou bem?

Sim. Não lhe vejo nada. Está completamente bem.

Então estou zero?

Sim, efetivamente nada tem. O que fez? Mudou a medicação?

Não. Usei sempre a minha.

Qual?

Escrevi e cantei e fui eu: Zero.»

 

Ouvi, e vi o espanto do médico. Era como se ele visse a escuridão cheia de faíscas que eram  estrelas. Levantou-se à procura das receitas e saiu não sem que antes abraçasse o Renato. Num instante subi ao palco e disse ao ouvido de Zero que mantinha o microfone junto aos meus lábios:

«Sei que és como eu. Ainda não tivemos medo dos momentos».
E Ele num sussurro de Coliseu aberto: 
Il mio alibi è che vivo. Rivoluzione.

 

E como ainda sinto que a revolução é o melhor tempo do nosso futuro, aqui deixo para vós se me lerem, o escutar desta canção de Renato.

 

E depois esta canção que surge como se uma nova fonte de sabedoria se abrisse ali e nos prendesse à terra com sólida eficácia. Dancei imóvel, abracei Deus pelas flores e escutei-o como no dia em que Renato, ao lado de Pavarotti, levou este a dançar  sozinho no palco e juntava-se a Renato Zero apenas nos refrões, tendo dito no final desta canção «Lua, de que estás à espera».

 

Antes que a voz de Renato Zero se ouvisse de novo, desejei tanto ter muitos leitores no Blogue do CNC apenas para que eu não guardasse para mim este sábio espesso. Um homem propenso ao convívio pragmático de lábios incapazes de velocidades levianas, mas que deve ser espiado sem binóculos de teatro já que a sua intimidade o não entaipa.

 

Nasce Renato em 1950. Atravessa períodos muito dolorosos.

Le sue canzoni racconteranno se stesso come uomo e come artista, l’amore e il sesso in tutte le sue declinazioni e precorreranno i tempi affrontando temi come la pedofilia, l’identità di genere, la droga, l’incomunicabilità, l’omosessualità, l’emarginazione, la violenza e la spiritualità.

Renato é um dos poucos que no mundo tem a coragem das ideias. É o primeiro artista italiano a produzir-se e distribuir-se. Quase desconhecido em Portugal, devo desde já dizer que, inventarei sempre aplausos para ele sob e sobre quaiquer olhares distantes de multidões restantes que receando riscos de fatais ausências de comportamento ditos elitistas o não acolham.

Renato Zero foi sempre citado por David Bowie, Beyoncé, Cohen, entre muitos outros. Tem tido estrondosos sucessos no Victoria & Albert em Londres. Irónico transgressivo, amado e odiado, grande dançarino e ator em vários filmes de Felini e Pasolini, não tem qualquer reverência pela dita cultura considerada alta. No entanto, intelectuais de todo o mundo dizem-no ser uma verdadeira pulsação do enigma. 

 

 

Acaba o concerto e sai no seu passo de amor a cantar esta outra história da humanidade e dos seus sentires.

 

Enorme a minha dívida pelo que és! O amor continua a ser um segredo mesmo quando se fala dele. Tal qual a liberdade. Tal qual a inquietudo mesmo quando nos distraimos. Impiedoso foi o tempo enquanto te não ouvi e vi ao vivo.

 

Teresa Bracinha Vieira
Outubro 2016

O Teatro Ribeiro Conceição de Lamego – Uma Perspetiva Histórica

 

 A arquitetura e o património teatral reserva-nos surpresas. Em Lamego, encontramos hoje, em plena atividade, o Teatro Ribeiro Conceição. A fachada, datada de 1727, de certo modo não identifica a função de espetáculo e a salvaguarda da arquitetura interna inerente. E no entanto, o Teatro em si mesmo conserva a traça, a estrutura e o ambiente das salas de espetáculo de inícios do século passado, designadamente nos camarotes.

Trata-se do edifício construído para albergar, na época, o Hospital da Misericórdia de Lamego. Aí se manteve até 1882, ano em que lá se instala o quartel de bombeiros. Mas por pouco tempo: em 1897 um incêndio atingiu o interior. O edifício encerra então, mantendo a ruína, durante décadas, no centro da cidade. E mais extraordinário ainda, a fachada original, apesar de todas estas ocorrências, conservou mais ou menos na sua traça original, marcando então como hoje o centro da cidade…

Até que em 1924, um benemérito local, Comendador José Ribeiro Conceição, adquire em hasta pública o edifício semi-arruinado para o transformar em sala de espetáculos. E assim temos em 1929 o Teatro Ribeiro  Conceição, com a estrutura e a fachada mais ou menos original, ainda marcadamente setecentista nas três ordens de janelas, de certo modo inesperadas num já então cine-teatro, no interior restaurado na funcionalidade que na época ainda marcava as salas de espetáculo,  no caso concreto, reforçada pela adaptação de  um edifício anexo.

Todo este conjunto é então inaugurado como teatro em 2 de fevereiro de 1929. Curiosamente, o interior, na escadaria de acesso à sala de espetáculos propriamente dita, manteve reminiscências decorativas que evocam a origem funcional do edifício. E, tal como noutro lado escrevi, “a fachada lateral merece também destaque, pois o conjunto de quatro portas em arcada de acesso elevado, servidas por escada nobre e encimadas por janelões correspondentes, também em arco, conferem uma linha arquitetónica, essa sim, mais adequada à vocação teatral, no duplo termo, do edifício”. (cfr. “De Volta aos Teatros”, ed. Livraria Civilização Editora 2008, pág. 67).

É interessante este critério de arquitetura de espetáculo, sobretudo se tivermos em conta a recuperação do palco e a aplicação de tecnologias de cena, digamos assim, que permitem uma maior rentabilização artística e de público. Renovaram-se por completo as áreas anexas e complementares ao espetáculo em si: palco tecnologicamente equipado, novos camarins, sala de ensaios, estúdio, zona de exposições autónoma e foyer.

Mas insista-se: a sala, em si mesma, mantém a estrutura, a arquitetura e a decoração originais, com plateia e duas ordens de camarotes, numa lotação total de cerca de 370 lugares. E sobretudo, mantém a atividade teatral-cultural, até hoje.

Resta acrescentar que Lamego tem uma tradição de arquitetura teatral pelo menos desde o século XIX, consagrada num Teatro Lamecense inaugurado em 1841, com plateia, camarotes, superior e geral, que ainda existia no princípio do século XX.

 Mas mais do que isso: segundo Vergílio Correia, Lamego terá “um capítulo especial na história do movimento artístico português”. (in. “Artistas de Lamego” – Coimbra 1923).   

 


DUARTE IVO CRUZ

LONDON LETTERS

 

The nest of doves, and Monday meetings, 2016

O espírito prático dos insulares começa a emergir com aquela discrição que sempre fascina e logra criar e recriar o national consensus em conjunturas críticas. Em volta, mais e mais, as gentes direcionam as mentes para as soluções do post-Brexit UK, lealmente dando conta das ambições do seu papel e contributo na Europe e no World em fórmula caseira de give & take

Passam os primeiros 100 dias de RH Theresa May em Downing Street e a PM vivencia primordial eurocimeira em Brussels. Da ida ao “nest of doves” faz hoje a statement na House of Commons. Pouco antes reúne com os líderes governamentais de Scotland, Wales e Northern Ireland, atestando que inexistirão trade barriers na Great Union. Também a hostil banca global reentra no enredo. — Mon chérie! Écoute le vent, et il parle. Écoute le silence, il discute. Écoute ton couer, il sait. A 6 meses das eleições para o Élisée Palace, Paris começa a demolição da Calais Jungle. O destino dos migrantes é incerto, rumo a centros por toda a France, mas a Dover chegam os refugiados que ganham a lotaria moral do English Channel. Entre as Calais children há até uns latagões risonhos, a semear interrogações sobre uma operação de “haute risque.” — Well! Knock, knock. Is there anybody there?, thought the Traveller. Os US começam a votar. A White House Race entra no sprint final, com Mr Donald J Trump em perda para Mrs Hillary R Clinton (42-48%) e os candidatos further down the ballot ainda em fluxo em volátil mapa eleitoral. O exército turco reforça na reconquista de Mosul, com o Isis em retirada e muçulmanos e cristãos a regressar às terras libertadas no Irak. Mr Jimmy Perry, um dos génios da Britcom, parte aos 93 anos.

 
Temperatures increasingly in single figures, nonetheless with largely dry days at Central London. Abramos pela especiaria. RG David Michael Davis é o novo alvo número um da vasta spying community no burgo. O SecSexEU é avisado pelo MI5 que os seus escritos, movimentos e contatos são objeto de interesse crescente por parte de várias chancelarias, decerto por motivo não alheio ao seu estatuto de negociador mor das Brexit Talks. Depois da sugestão dos eurocratas de as próximas negociações sobre a relação UK-EU decorrerem em francês, teme-se por aqui que o Secretary of State for Exiting the European Union siga ido exemplo de um certo presidente gaulês, o qual, por razões privadíssimas, enviava o fumado carro oficial sair pelo portão do Elisée Palace enquanto saía discreto de motorizada por porta dos fundos. Os alertas têm como cenário central a primeiríssima cimeira europeia de Mrs Theresa May. A Prime Minister dispensa a food taster em Brussels enquanto Mr Donald Tusk a diz entrada num ninho de pombas, mas boa fonte informa que as suas claras intervenções no European Council sobre a saída britânica do clube e ainda acerca da emigração, Russia e Syria gelam a sala. Dos joviais cumprimentos iniciais inter pares, para Press ver e comunicar, os 28 líderes passam depois para uma frosty atmosphere, Há mesmo ali um aparente diálogo de surdos. À London do controlo de leis e de fronteiras em "mature, co-operative relationship with our European partners", responde uma polifónica e monocórdica eurovisão: “If Britain wants access to the single market, it must continue to leave its borders open.”


A secundar agendado duelo politico entre atlantes e continentais figuram entretanto os banqueiros e o fórum cá criado para acolher a negociação interna com as devolved administrations do reino. No Joint Ministerial Committee tem assento os First Ministers RH Nicola Sturgeon (Scotland), RH Carwyn Jones (Wales) e RH Arlene Foster e RH Martin McGuinness (N Ireland), bem como o Brexit Sec RH D Davis MP, com Mrs May a sublinhar que “is set to discuss the government’s position on the EU exit strategy.” No final do big meeting no No. 10 desafina uma unhappy Scot remainer, insatisfeita com a ausência de acesso aos secret plans. Várias vozes e tiras de transmissão tocam também o alarme na City e em Canary Wharf com o rumo do dossiê europeu. Com muitas cifras negras à mistura, apontam a próxima deslocalização da Goldman Sacks e afins para… Europe. Agitam com a perda de ativos, empregos e... impostos; apresentam-se abertos a escudo especial do Treasury. A reação dos ilhéus é plural: uns afirmam-se preocupados e outros aplaudem o goodbye. Ora, como resulta da queda da libra, esta é uma partida a observar de perto. London é um mega centro financeiro a competir mais com New York, Singapore ou Hong-Kong e menos com Frankfurt, Paris ou Rome. Uma diferente liga, digamos, num jogo planetário onde tanto pontua a nobre Geneve como plebeias Bermudas ou Panama. Ainda assim, a escolha da língua quotidiana ou do local para viver dos altos banqueiros dirá das afinidades no elite trending. No mais, ver-se-á das fraquezas e das forças civilizadoras do capitalismo em novel batalha ética entre o cosmopolitismo do dinheiro e a soberania do voto.


Numa semana em que os olhares se viram para o English Channel, quer pela violência na evacuação do campo de Calais, quer porque rota preferida pela frota de guerra russa para navegar até à costa síria, destaque especial na partida para a eternidade de um gentil Country gentleman, cujos binóculos miraram os azuis destas costas: nenhum outro senão o autor de “Dad’s Army.” Mr James “Jimmy” Perry (1923-2016) deixa legado de absurdas situações e doces gargalhadas ao longo das décadas, com clássicos da BBC como The Gnomes of Dulwich (1969), It Ain't Half Hot Mum (1974–81), Room Service (1979), Hi-de-Hi! (1980–88), You Rang M'Lord? (1988–93) ou High Street Blues (1989). Da parceria com o ido e longtime writing partner Mr David Croft, um de London e este de Dorset, baseando-se nas vivências do seu tempo na Home Guard, sai a série com os impagáveis e idiossincráticos veteranos. A perfect Brit sitcom, as aventuras dos Old Boys na Home Front passeiam entre o dodgy Private Frazer e o snobbish Captain Mainwaring, sob popularizado lema nativo: “Are you kidding, Mr Hitler?” Já este ano vem a adaptação ao cinema com Mrs Zeta Jones e agora recatada despedida. Farewell, Mr Jimmy. No voo segue um homem natural com sábia liga de são humor na tecelagem do humano carácter. — Well! As Master Will plays with the wording of the dwarf king Oberon in The Midsummer Night’s Dream: — Ill met by moonlight, proud Titania.

 

St James, 24th October 2016

Very sincerely yours,

V.

A VIDA DOS LIVROS

 De 24 a 30 de outubro de 2016.

 

«Estudos Históricos e Económicos» de Alberto Sampaio (Chardron, 1923) é uma obra pioneira na literatura portuguesa. Luís de Magalhães foi quem organizou os dois volumes, cuja leitura é ainda indispensável para compreendermos a formação e consolidação de Portugal, nas suas componentes estruturais.


UM EXEMPLO MARCANTE
Alberto Sampaio (1841-1908) deve ser considerado na Geração de 1870 como um elemento marcante na história da cultura portuguesa. Como diz o seu devotado amigo Luís de Magalhães: “Em Guimarães ou na casa paterna de Boamense, em Famalicão, passou, pode dizer-se, quase toda a vida. Os cuidados agrícolas e as pesquisas históricas absorviam-no. Apenas os interrompia para se dedicar a alguns trabalhos que interessassem a sua terra natal, como foi a importante exposição industrial de Guimarães em 1884, de que ele foi um dos principais organizadores. Depois do famoso conflito entre Braga e Guimarães, no mesmo ano, quiseram elege-lo deputado. Recusou inabalavelmente. Ele, tão ilustrado, tão sabedor, dizia que lhe era impossível falar diante de vinte pessoas juntas”. Realizou importantes estudos históricos, que iniciaram entre nós a disciplina da História Económica – com três trabalhos capitais: “A Propriedade e a Cultura no Minho”, “As Villas do Norte de Portugal” e “As Póvoas Marítimas do Norte de Portugal” reunidos graças ao empenho de Luís de Magalhães. Através de Antero de Quental tornou-se amigo de Oliveira Martins, com quem desenvolverá uma atividade fundamental no campo legislativo. Hoje ninguém deixa de reconhecer a grande importância do projeto de lei de Fomento Rural e Emigração apresentado por Oliveira Martins nas suas funções de deputado (1887). Para Sampaio o estudo da História constituía não apenas um motivo de pesquisa científica, mas um modo de compreender a evolução da sociedade e da economia. Foi assim que O.M. pediu a Alberto Sampaio uma ajuda preciosa.

 

UMA ESPÉCIE DE BENEDITINO
Com grande modéstia, Alberto Sampaio era uma espécie de beneditino trabalhando pacientemente as suas obras, investigando com meticulosidade as suas fontes e os seus documentos, escrevendo com escrúpulo vernáculo, numa língua simples, clara, elegante na sua sobriedade, nobre na sua despretensão, onde se sentia ainda a frequência dos clássicos e o salutar influxo do mestre ilustre que ele amava como homem e admirava como escritor – Alexandre Herculano.» Em “A Propriedade e a Cultura no Minho”, Alberto Sampaio é claro nos pressupostos de que parte. «A propriedade, consequência do trabalho exercido sobre o solo, adaptar-se-á, antes de tudo às circunstâncias particulares de cada zona, recebendo, em seguida, a impressão do modo de ser moral dos homens, mais ou menos modificado pelos acontecimentos históricos». Importaria, porém, estudar as “villas” romanas, agrupamentos urbanos intermédios que o historiador desejava compreender. «Quando as legiões de Augusto penetraram na região cisduriana (diz Magalhães), catorze anos depois de Cristo, encontraram-na na posse duma raça brava e aguerrida, de origem celta, segundo uns, ligúrica, segundo outros, que vivia acantonada nas suas citânias ou cividades, povoações cintadas de muralhas, erguidas em pontos elevados, sob o presumível regime da dominação dum chefe, mais pastores do que agricultores, e usufruindo em comum as terras que cercavam as habitações urbanas. A “villa” da colonização romana constitui a base estrutural do povoamento. No meio da propriedade, o senhor reserva um espaço para cultivar por conta própria junto ao solar onde reside e onde, nas mãos do feitor está a administração rural. Junto do solar está o celeiro e a villa rústica onde se alojam os servos e os godos. Espalhados pelo vasto domínio agrícola estão as casas e os casais, onde habitam os caseiros. O regime da terra, com a colonização romana, passou assim de pastoril para agrícola.

 

COMPREENDER AS CIRCUNSTÂNCIAS ECONÓMICAS
Depois do século VIII e até à reconquista cristã esta estrutura é alvo de perturbação e de uma relativa instabilidade que dá lugar à reorganização medieval. Junto do solar ou do palácio surge o templo cristão – a igreja. «E a Igreja concentrava em si (lembra ainda Magalhães) a vida moral das famílias, congregadas, antes, pelo regime económico das villas». Assim surgiu a freguesia rural, dando origem a uma unidade eclesiástica que, nos nossos dias, se tornou unidade administrativa. Em suma, considerando a evolução da investigação historiográfica do tempo Sampaio dá-nos uma continuidade extremamente clara sobre a evolução da propriedade no ocidente peninsular – desde que o império romano estabeleceu o regime das villas até que estas se fragmentaram pela jurisprudência bárbara neo-goda, pela repartição em doações da coroa da terra aquando da reconquista cristã. Progressivamente o senhor desaparece e é substituído pelo cavaleiro. A villa fragmenta-se, retalhada pelas doações. Mas a toponímia mantém-se em geral, achando no português formas corruptas das velhas designações latinas. Hoje ainda consideramos notável o modo como Sampaio trata os temas do povoamento de Portugal ao longo dos séculos. Sentimos como se foi construindo gradualmente o Portugal contemporâneo.

 

VILLAS E PÓVOAS MARÍTIMAS
A relação com o mar e o povoamento do litoral são aspetos da maior importância. As incursões navais, primeiro da pirataria normanda, depois da pirataria árabe, tinham varrido das nossas ribas marítimas as suas pacíficas populações. A linha costeira era, de contínuo, invadida, talada, devastada por esses senhores do mar e, com o tempo, tornou-se num deserto. Os povos procuravam a sua segurança nas defesas naturais do interior. Um cruzado inglês que, num relato da sua viagem para a Terra Santa, descreve a nossa costa do Norte, indica como povoações mais próximas do mar (…). Até lá, eram talvez, charnecas inabitadas.” Pode dizer-se que as “Villas” e as “Póvoas Marítimas” são decisivas para o esclarecimento das nossas origens históricas. «Portugal, que fora, lentamente, durante a primeira dinastia, (…) assentando na terra as bases da sua vida económica, mudou, subitamente, de rumo, fazendo-se ao mar e sulcando-o, aventurosamente, na esteira do maior e mais belo sonho imperialista que os povos modernos sonharam. A terra foi abandonada. O lavrador fez-se navegante e mercante. E, assim, em três séculos, ele viveu dos produtos dos seus domínios, do cravo e da pimenta da Índia e, depois, do oiro e dos diamantes do Brasil. Até que, perdidos, sucessivamente, esses que foram os nossos impérios do Oriente e do Ocidente, se encontrou de novo em face dos mesmos problemas, das mesmas necessidades económicas a que os nossos primeiros reis tão sabiamente souberam aplicar a sua ação administrativa.»

 

Guilherme d’Oliveira Martins

Oiça aqui as minhas sugestões - Ensaio Geral, Rádio Renascença

CARTAS DE CAMILO MARIA DE SAROLEA

 

 

 

    Minha Princesa de mim:

 

   Em curiosa visita à igreja de Nossa Senhora dos Olivais e ao Convento de Cristo, em Tomar, escutámos muitas narrativas, considerações, suposições e efabulações sobre os Templários e a Ordem de Cristo, as suas secretas filiações espirituais, místicas e religiosas, os símbolos de todas elas sendo apontados e descobertos ao longo dos nossos percursos, diurno e noturno, este permitindo que a súbita incidência de um raio de luz sobre uma inscrição, um baixo ou alto-relevo, uma escultura, uma pintura, fosse revelando insuspeitáveis segredos... Digressão incontestavelmente divertida, estimulante das imaginações.

 

   A aparição gritante, num capitel da charola, de uma cabeça degolada de São João Baptista deu azo a prolongados comentários ao suposto "joanismo" dos monges guerreiros - e pertinentes mistérios e rituais... tal como a imagem de Santa Maria Madalena foi proposta para nos demorarmos em lendas e narrativas acerca da amiga de Jesus, seus alegados amores, e a importância que ganhou o movimento "magdalenista" e o seu culto, designadamente no "Midi" francês: Provença e Languedoque-Rossilhão, também país de eleição dos Templários em França. Onde se confundiram os mesmos com gnoses e cátaros... Pelo meio, surgiram também outras confusões: de sinópticos com canónicos, de apócrifos com gnósticos, etc. Os evangelhos sinópticos, Princesa, como bem sabes, são três (Mateus, Marcos e Lucas), os canónicos quatro (esses mais o de João). E chama-se, isso sim - por oposição a canónicos - apócrifos aos escritos excluídos da Bíblia (desde livros do Antigo Testamento a evangelhos, epístolas e atos de apóstolos) os que não foram, finalmente, recolhidos pela Igreja - num processo que durou do século II ao IV - para a liturgia e instrução dos seus fiéis (os livros escolhidos são, portanto, os canónicos).

 

   Entre os escritos apócrifos (do grego apókryphos, isto é, secreto, velado; por isso Apocalipse quer dizer revelação, retirada do véu que encobre) estão uns designados gnósticos; convém todavia observar que nem os chamados apócrifos são todos gnósticos, nem os que assim são designados são sempre, em rigor, apócrifos bíblicos, e até os há sem necessária relação ao judio-cristianismo. Gnóstico vem do grego gnosis, conceito de cujo significado te falarei mais tarde. Mas irei primeiro ao Evangelho de Maria, que nada tem a ver com Nossa Senhora, Mãe de Jesus, mas é o apócrifo Evangelho segundo Maria Madalena. Começarei por esse, de que te traduzirei trechos da versão francesa de Françoise Morard (em Écrits Apocryphes Chrétiens - II, La Pléiade, Gallimard, Paris, 2005), que, em nota introdutória, nos informa situar-se, de acordo com investigadores autorizados, a data de composição do Evangelho de Maria em meados ou na 2ª metade do século II. Informa ainda que ele é o primeiro escrito do códex de Berlim 8502, um papiro adquirido no Cairo, em 1896, por um sábio alemão, e conservado no Departamento de Egiptologia dos Museus Nacionais, na capital alemã. A ele irei, Princesa, na próxima carta.

 

   Camilo Maria

 

Camilo Martins de Oliveira

 

 

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