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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

CRÓNICA DA CULTURA

 

Eram 7h da manhã. A casa iniciava o seu movimento de rotina. Era preciso levantar os meninos da cama, dar-lhes banho, vesti-los, dar-lhes o pequeno-almoço, e entregá-los à empregada que vinha numa carrinha do colégio buscá-los para mais um dia de escola.

 

A cadela, a Laica, movia-se inquieta, bem sabia que era o início de um dia sem brincar. Teria de aguardar por um logo à tarde.

 

Mas antes

Ó mãe chega para lá, deixa-me deitar um bocadinho no teu quentinho.

 

E a mãe movia-se na enorme cama para o lugar onde o pai dos meninos saíra há pouco para se arranjar antes de seguir para o trabalho, e o Pedro saltava para o lugar do tal quentinho que era mundo por inteiro. Chegava por fim ao lugar que fazia sentido. Enrolava-se no próprio corpo e chegava-lhe à memória a ideia de, naquele momento, chamar pelo bosque que lhe metia medo e enfrentá-lo agora. Enfrentar os cardos e os fantasmas, as asas do gavião, os relâmpagos, os precipícios, a terrível casa do velho conde, ou o frio indizível que qualquer medo dava.

 

Pedro, filho, já passaram cinco minutos, vá, vá arranjar-se. Dizia a mãe em voz segura.

 

O Pedro levantava-se a protestar sozinho. Nem dera tempo de enfrentar o bosque com aquela arma fortíssima: o forte berço da mãe nele. Pensava na chuva e na distância até ao colégio. Pensava que não poderia dizer a ninguém o quanto aquele quentinho lhe era indispensável para abafar os medos dos olhos e do coração. Mas não podia dizer. Esperavam dele uma coragem que não explicava nem entendia.

 

Agora sentia o vento dentro de casa. Na sala, no corredor, no quarto. Um vento que o expulsava até ao colégio, lugar onde chegaria, por fim e não era o seu lugar, mas lá iria chegar. Cabia-lhe não mostrar tristeza, esperar que as 16h, tempo de retorno a casa, chegassem depressa. Entretanto a cal da sala de aula, as grandes gretas das casas de banho habitadas por lamentos dos meninos a quem os vigilantes mandavam que se despachassem.

 

E dois vezes três, seis e quatro vezes três doze, três, e a prova real definiria se a conta permanecia nas suas mãos ou se seguiria ao cuidado dos seus pais com um muito bom que nunca deixasse sequer intuir o quanto, se estivesse certa a conta, era porque o resultado chegara veloz, daquele quentinho de cinco minutos quando às sete da manhã, uma inesquecível campainha lhe dava a coragem de crescer num mundo onde até o soluçar de uma pálpebra azul, era saudade daquele amor da manhã, antes da estrada que se infiltrava no seu carrinho de ferro e entrava gemido e saia música.

 

E o Pedro a olhar pelas janelas da carrinha que o levavam de retorno a casa já só pensava na sua irmã pequenina e que no ano seguinte seria transferida de colégio e seguiria com ele na carrinha para a escola. Juntos. Então, com a força de irmão mais velho, ensinar-lhe-ia o truque para não ter medo das manhãs de inverno. Contar-lhe-ia como se conseguia chegar ao local do quentinho e dele sair com as contas de somar concluídas.

 

A avó esperava-o à entrada de casa com o olhar de quem o busca e não o perde.

 

Pedro fechava os olhos e encostava-se ébrio a tanta doçura. Perguntava pela irmã e pela Laica e corria como só correm os ímanes do coração.

 

Teresa Bracinha Vieira

MARIANA BERNÁRDEZ: “los que escribimos todo el tiempo estamos leyendo”

 

Mariana Bernárdez nasceu na cidade do México em 1964. Poeta e ensaísta cedo se debruça pelas ciências da comunicação colaborando em inúmeras revistas e não descuidando, todavia, uma formação em Filosofia entre outras áreas de investigação. Debruça-se com particular interesse sobre a análise da experiência quotidiana desamparada entre a violência e o fazer face aos meios de comunicação, entre a guerra do individuo com o seu próximo e consigo mesmo numa desesperança inconsolável.

 

Hoje venho propor uma leitura do seu livro de poesia “Escreve-me nos olhos” numa tradução de Nuno Júdice para a Glaciar. Este livro constitui uma edição bilingue e desafia-nos à interpretação das realidades passadas para que se tente saber até onde se entendeu o jogo, na altura e no agora e no onde, e como decifrar a desconexão que nós próprios fomos capazes de viver sem a termos sentido. Confusões também muito próximas do lugar-comum. Exercícios de mando sobre outrem convocando dores que os justifiquem.

 

Devolves-me o mar

diverso daquele que acompanho a infância

viver será só esse alcance?

 

Pergunta Mariana neste poema? E acrescento: pode afinal esta realidade ser apenas como uma notícia da semana passada? e no entanto existiu qualquer coisa que viveu numa suposta limusine de estrelas de afeto ou este, quantas vezes, poderá não ter sido mais do que pedaços de colchão insuflável do nosso coração que oferecemos tantas vezes quantas as necessárias a que o nosso amor se não magoe, tantas que o fizeram dele mesmo desistir.

 

Assim interpretei.

E a poeta acresce

 

Vamos ao contrário

de dentro para fora

porque perguntas o que já sabes?

(…) Escríbeme en los ojos o encuéntrame en sus aguas

 

Teresa Bracinha Vieira