CRÓNICA DA CULTURA
Eram 7h da manhã. A casa iniciava o seu movimento de rotina. Era preciso levantar os meninos da cama, dar-lhes banho, vesti-los, dar-lhes o pequeno-almoço, e entregá-los à empregada que vinha numa carrinha do colégio buscá-los para mais um dia de escola.
A cadela, a Laica, movia-se inquieta, bem sabia que era o início de um dia sem brincar. Teria de aguardar por um logo à tarde.
Mas antes
Ó mãe chega para lá, deixa-me deitar um bocadinho no teu quentinho.
E a mãe movia-se na enorme cama para o lugar onde o pai dos meninos saíra há pouco para se arranjar antes de seguir para o trabalho, e o Pedro saltava para o lugar do tal quentinho que era mundo por inteiro. Chegava por fim ao lugar que fazia sentido. Enrolava-se no próprio corpo e chegava-lhe à memória a ideia de, naquele momento, chamar pelo bosque que lhe metia medo e enfrentá-lo agora. Enfrentar os cardos e os fantasmas, as asas do gavião, os relâmpagos, os precipícios, a terrível casa do velho conde, ou o frio indizível que qualquer medo dava.
Pedro, filho, já passaram cinco minutos, vá, vá arranjar-se. Dizia a mãe em voz segura.
O Pedro levantava-se a protestar sozinho. Nem dera tempo de enfrentar o bosque com aquela arma fortíssima: o forte berço da mãe nele. Pensava na chuva e na distância até ao colégio. Pensava que não poderia dizer a ninguém o quanto aquele quentinho lhe era indispensável para abafar os medos dos olhos e do coração. Mas não podia dizer. Esperavam dele uma coragem que não explicava nem entendia.
Agora sentia o vento dentro de casa. Na sala, no corredor, no quarto. Um vento que o expulsava até ao colégio, lugar onde chegaria, por fim e não era o seu lugar, mas lá iria chegar. Cabia-lhe não mostrar tristeza, esperar que as 16h, tempo de retorno a casa, chegassem depressa. Entretanto a cal da sala de aula, as grandes gretas das casas de banho habitadas por lamentos dos meninos a quem os vigilantes mandavam que se despachassem.
E dois vezes três, seis e quatro vezes três doze, três, e a prova real definiria se a conta permanecia nas suas mãos ou se seguiria ao cuidado dos seus pais com um muito bom que nunca deixasse sequer intuir o quanto, se estivesse certa a conta, era porque o resultado chegara veloz, daquele quentinho de cinco minutos quando às sete da manhã, uma inesquecível campainha lhe dava a coragem de crescer num mundo onde até o soluçar de uma pálpebra azul, era saudade daquele amor da manhã, antes da estrada que se infiltrava no seu carrinho de ferro e entrava gemido e saia música.
E o Pedro a olhar pelas janelas da carrinha que o levavam de retorno a casa já só pensava na sua irmã pequenina e que no ano seguinte seria transferida de colégio e seguiria com ele na carrinha para a escola. Juntos. Então, com a força de irmão mais velho, ensinar-lhe-ia o truque para não ter medo das manhãs de inverno. Contar-lhe-ia como se conseguia chegar ao local do quentinho e dele sair com as contas de somar concluídas.
A avó esperava-o à entrada de casa com o olhar de quem o busca e não o perde.
Pedro fechava os olhos e encostava-se ébrio a tanta doçura. Perguntava pela irmã e pela Laica e corria como só correm os ímanes do coração.
Teresa Bracinha Vieira