Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!
Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!
Morreu, neste último 16 de janeiro, a poeta suíça francófona Anne Perrier. Perfaria, a 16 de junho próximo, 95 anos. Filha de mãe alsaciana e pai suíço valdez, ela católica, ele calvinista, ambos não praticantes, Anne Perrier converter-se-ia à confissão católica aos 32 anos de idade. Recebeu vários prémios literários, dos quais quero destacar, não o Grand Prix de Poésie, o mais importante,mas o Rambert, pois lhe foi atribuído pelos poemas reunidos em Lettres Perdues, um ciclo dedicado àquele que ela chamava seu irmão de cristal, o poeta português Cristovam Pavia, da geração e amizade de Pedro Tamen, M. S. Lourenço, João Bénard da Costa, Nuno Cardoso Peres (hoje o dominicano frei Mateus), que se suicidara. Em homenagem a esse encontro de poetas, e a todos os que procuram caminhos de Deus no canto e meditação das palavras, deixo-te aqui a minha tradução dos primeiros daqueles poemas. A série das Lettres Perdues éuma sucessão de composições sem título, nem pontuação, com maiúsculas apenas a marcar versos ou ritmos. A poeta, cujo pai, arquiteto nascido em Viena, gostava de levar com ele a concertos de música clássica, chegou a hesitar entre a entrega às letras ou à música. Creio que acertou na opção, pois as palavras que nos deixou dizem-nos lindamente a limpidez do seu olhar espiritual.
Pelas frinchas da eternidade
Falaremos juntos
Procurando os nossos sopros
Pouco a pouco deixando as nossas vozes
Reacordarem-se
Tu céu eu terra
Falaremos muito tempo muito
Até que o verão
Nos cubra de flores campainha
À minha volta as grandes flores
Amordaçadas pelo dia
Meu coração como o mar
Se retira
É meio dia
Meia noite?
A hora prenhe de folhas mortas
Dobra-se
Meu irmão entre a salva e a sombra
Repousa
Que o dia sobre o dia
Cruze as suas trepadeiras
Vês
A morte cheira a erva e a orvalho
O teu coração está cheio de grilos
Repousa
Meu irmão entre a menta e a sombra
Para ti
O tempo seca num ervário
Eu à beira da terra
Ainda espreito
A próxima partida dos pássaros
Por florestas e fetos Por mil nascentes Pelas águas do abismo Pela neve inacessível Meu irmão te chamo
Como queres que durma?
De uma a outra chuva
Tanta pimenta nos olhos
Oh! no vento de outono
Este nunca mais
Como janela que bate
Esse infinito bater de asas!
Se buscasse frutos flores
Nada acharia
Altíssimo no céu
As nossas almas se cruzavam
Como cotovias
O espaço foi o nosso reino
Convido-te, Princesa, a entrares comigo nesta comunhão de dois grandes poetas, transcrevendo aqui dois poemas de Cristovam Pavia, pensandossentindo que ele e Anna Perrier estão a falar juntos, procurando o acordo das suas vozes no eterno reino do infinito espaço.
Estamos juntos quando nos vencemos e nos purificamos dia a dia,
e quando rezamos a Deus, e pedimos mais purificação...
E quando um descanso grato e humilde é a recompensa.
Estamos juntos, quando a Poesia nos toca
e entramos como reis no Reino do Silêncio...
Quando sentimos que tempo e risos e lágrimas e tudo
em nós amadurece...
Estamos juntos, quando a noite é fria e o calor custa a suportar,
quando a solidão é mais solidão
e vemos como na boca de tantos a palavra Amor é profanada...
Oh! Ainda que nos separem Oceanos,
estamos juntos, bem juntos, bem o sabes, numa profunda companhia!
Na noite da minha morte
Tudo voltará silenciosamente ao encanto antigo...
E os campos libertos enfim da sua mágoa
Serão tão surdos como o menino acabado de esquecer.
Na noite da minha morte
Ninguém sentirá o encanto antigo
que voltou e anda no ar como um perfume...
Há-de haver velas pela casa
E xailes negros e um silêncio que eu
Poderia entender.
Mãe: talvez os teus olhos cansados de chorar
Vejam subitamente...
Talvez os teus ouvidos, só eles ouçam, no silêncio da casa velando,
E mesmo que tu não saibas de onde vem nem porque vem
Talvez só tu o não esqueças.
Não resisto, Princesa - por achá-la tão clara de verdade e beleza - a transcrever ainda a Epígrafe de Cristovam Pavia:
Um barco sem velas
E sem rumo
Singrando um mar de fumo,
Mas descobrindo estrelas...
Nisto me resumo.
E vai, no seu francês original, a resposta que, imagino eu, Anne Perrier lhe teria dado, quando escreveu:
Je pense, ou je rêve à une manière de "posséder comme ne possédant pas", de prendre en acceptant de perdre aussitôt, je rêve à des gestes désappropriés, à une sorte de possession aux mains ouvertes où le chant passerait comme l´eau entre les doigts. Fala aqui a mesma poeta que confessou (agora traduzo):
1. Ultrapassado o trauma da perda do Império Oriental, o da independência e síndrome de amputação do Brasil e confinado, por um lado, com a decadência nacional de que falava a Geração de 1870 e, por outro, com a doutrina jusinternacionalista da ocupação e partilha efetiva da Conferência de Berlim, Portugal tenta superar as suas debilidades forjando um novo sonho imperial que unisse em rosa cor Angola a Moçambique, o mapa cor-de-rosa. Assinaram-se tratados, com a Alemanha e França, que visavam assegurar a nossa soberania sobre tais territórios. Eis que surge, em 1890, um novo trauma, revelador da traumática relação Portugal-África, um Ultimato inglês declarando o não reconhecimento de tais direitos, exigindo a nossa retirada e reclamando a posse da região, com a cedência portuguesa, fazendo tábua rasa de direitos históricos adquiridos. Esse novo ideário levou a conflitos bélicos com povos africanos do interior, subjugados e vencidos.
Consolidada a ocupação plena, repensou-se o imaginário imperial com a fusão da Metrópole e as oficializadas províncias ultramarinas (teoria integracionista), o que foi inviabilizado pelo eclodir da guerra colonial iniciada pelos movimentos independentistas africanos, na década de sessenta do século XX, forçando Portugal a ceder. Enquanto no âmbito dos conflitos coloniais europeus, Portugal teve de sujeitar-se ao Ultimato, sob coação do seu mais antigo aliado, foi também coagido a aceitar, na segunda metade do século XX, uma nova amputação, a da independência das suas colónias, especialmente africanas, na sequência da luta emancipadora e ganhadora dos povos colonizados e da nova ordem bipolar internacional fixada entre os Estados Unidos e a União Soviética.
A perda do Império Ultramarino, em 1975, cuja subsistência Oliveira Martins pensara ser a única saída para Portugal após a perda do Oriental e do Brasileiro, parecia cumprir o fatal destino por ele pressentido. Com a perda da guerra colonial e a independência das colónias africanas, emergia um novo trauma, um novo momento, um quarto momento de pagar, pensar e reconsiderar Portugal como país, regressado agora, de uma vez por todas, ao fim de vários séculos, às suas fronteiras europeias. Após a diáspora, ausências e deslocalizações, faltava cumprir Portugal, nas palavras de Manuel Alegre. Fechado o ciclo imperial, torna-se premente, mais uma vez, Portugal repensar o seu futuro, tentando ultrapassar esse novo momento traumático, de que estudos de então são esclarecedores.
2. É dessa época um livro de Joaquim Barradas de Carvalho, “Rumo de Portugal. A Europa ou o Atlântico?”, cujo título traduz a inquietude da opção a fazer:
“Para além de profundas reformas na sua estrutura económica, social e política, Portugal terá, e a breve prazo, de escolher entre duas opções que dizem respeito à sua história, a mais profunda. Portugal terá de escolher entre a Europa e o Atlântico. Se rumar para a Europa - esta Europa tão do agrado dos tecnocratas - Portugal perderá a independência de novo, chegará a mais curto ou a mais longo prazo à situação de 1580. Na Europa do Mercado Comum, e numa futura, hipotética, Europa política, a economia dos grandes espaços forjará uma Península Ibérica unificada, e seguramente com a capital económica em Madrid, que de capital económica se transformará, a mais curto ou a mais longo prazo, em capital política. Ora este seria um resultado contra natureza, na medida em que nunca existiu, nem existe, uma unidade de civilização na Península Ibérica
E acrescenta:
“Assim, perante a encruzilhada, a Europa ou o Atlântico, pronunciamo-nos pelo Atlântico, como única condição para que Portugal reencontre a sua individualidade, a sua especificidade, a sua genuinidade, medieva e renascentista. Ora esta opção passa forçosamente pela formação de uma autêntica Comunidade Luso-Brasileira, uma Comunidade Luso-Brasileira que não seja apenas aquela “comunidade sentimental, ortográfica, … (…), e, se possível, uma Comunidade Luso-Afro-Brasileira. Nela todas as partes se reencontrariam na mais genuína individualidade linguística e civilizacional.
É esta a condição para que Portugal volte a ser ele próprio”.
Tem-na como uma escolha prioritária, de vocação-destino, não excluindo as possibilidades de cooperação com a Europa. Opina que o Brasil representa mais genuinamente Portugal, exemplifica-o literariamente com Graciliano Ramos, Guimarães Rosa ou Jorge Amado, observando que grande parte de escritores portugueses têm demasiada influência europeia, nomeadamente francesa, pelo que o melhor meio de nos conhecermos é ir para o Brasil e o inverso.
Justifica-se, num esclarecimento final:
“É que na história, existem uma curta, uma média e uma longa durações. Isto é: os regimes políticos, e até os sociais, passam. A Língua e a Civilização ficam”.
No que toca à interrogação decisiva de Barradas de Carvalho, a Europa ou o seu Atlantismo, deu-lhe resposta a nossa vivência recente e atual, tendo a entrada na Europa Comunitária compensado e superado, para muitos, o défice e o trauma derivado da perda do império ultramarino. Opção de fundo que nos trouxe, no curto e médio prazo, uma saída para a nossa viabilidade democrática e económica, um eventual quarto momento, cujos efeitos finais, por agora, desconhecemos.
De novo, confrontado com a sua imagem real, Portugal não aceita a sua pequenez ou mediania geográfica, ampliando-a e projetando-a num novo mapa, a atual União Europeia.
Ter-se-á reincidido num novo recurso “anormal “ou “tábua de salvação” de que Portugal se socorreu para adiar, por algum tempo, a resposta ao “problema português”, segundo a lógica proposta por Oliveira Martins?