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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

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CARTAS DE CAMILO MARIA DE SAROLEA


Minha Princesa de mim:

 

   Na cena segunda do segundo ato da sua peça The Judas Kiss (Londres, Faber&Faber, 1998), David Hare põe a sua personagem de Oscar Wilde a dizer: - Na prisão, tive oportunidade de ler a vida de Cristo. Repetidamente. Vi nela a maior história que alguma vez tinha lido. Todavia, tinha um defeito. Cristo é traído por Judas, que é um estranho. Judas é um homem que ele não conhece bem. A verdade artística seria maior se ele tivesse sido traído por João. Porque João é aquele que ele mais ama. Não te escrevo, Princesa, para te falar da peça que, aliás, não terá saído nem tão boa nem tão má como críticos e públicos a acolheram... mas se concentra nos amores e desavenças sobre estratégias processuais de Oscar Wilde e Lord Douglas, seu viciado amante e némesis. Quem traiu Wilde, acho eu, foi o próprio ou, se quiseres assim, sua fraqueza e paixão. Qualquer traição é cega, porque tem necessariamente de fechar os olhos; para ser suportável, poderá ser, ainda, mais ou menos cobarde. A cobardia é uma forma, repugnante ou vocativa de compaixão, de fraqueza. De fraqueza todos sofremos, com mais ou menos humildade, na razão inversa da coragem. Já a paixão tem um lado tenebroso e, nesse sentido, é o que define o pecado: este, tantas vezes o digo - até e sobretudo para comigo - é a paixão dos nossos limites, a obsessão do inultrapassável, a recusa de qualquer conversão. Se me deixares brincar um pouco, dir-te-ei, Princesa de mim, que não me confunde o que por aí se chama "estupidez natural": nenhum de nós nasce absoluta, brilhante ou superiormente inteligente. A estupidez que me incomoda tem mais a ver, isso sim, com a teimosia do preconceito, com a recusa a dar um passo e estender a mão a outra pessoa, a uma ideia diferente, a um desafio. 

 

   Também não venho falar-te da figura misteriosa de Judas Iscariotes, esse que ninguém pode provar exatamente quem foi, nem sequer Geza Vermes, sábio judeu que foi jesuíta e deixou a confissão católica, respeitado investigador e professor universitário (em Lovaina e Oxford, por exemplo) que, no seu Who´s Who in the Age of Jesus (2005), distingue quatro Judas desse tempo: o irmão de Jesus; o filho de Saforeu, este fariseu; o galileu, filho de Ezequias e revolucionário; e o Iscariotes, o tal. Há quem pretenda ainda que a personagem de Judas Iscariotes seja, afinal, uma ficção literária, uma espécie de bandido ou bode expiatório que a tradição oral que circulava nas primitivas igrejas cristãs (e, consequentemente, a redação dos evangelhos registou) teve de inventar para um episódio que ajudasse a construir a narrativa da Paixão, tornando-a mais aceitável pelos fiéis. Porque, na verdade, muitos seguidores de Cristo o abandonaram nessa hora, incluindo os mais próximos. Diz-nos São João que além do discípulo que ele amava, junto à cruz de Jesus estavam apenas sua mãe e a irmã de sua mãe, Maria de Cléofas e Maria Madalena...Tal distância nos leva a consultar as referências evangélicas ao homem (apóstolo, discípulo) que traiu (?) - denunciou (?) - entregou (?) o Mestre. E então nos surge um Judas Iscariotes que, simultaneamente, é e não é, para Jesus, um estranho. Ocorreu-me tal paradoxo - que nos levará ao Judas - The troubling history of the renegade apostle (Houdder & Stoughton Ltd, 2015) de Peter Stanford - ao assistir, no canal Mezzo, a um Don Giovanni, do Mozart, com arrojada encenação e coreografia (houve quem lhe chamasse  pornografia) transmitida do De Munt (Théatre Royal de la Monnaie), em Bruxelas...  Lá iremos! Quanto à tenebrosa figura do Iscariotes nas narrativas evangélicas, sugiro, Princesa, que leias o Stanford, e me deixes ultrapassar várias considerações que ele adianta, para seguir o meu caminho. Sem todavia esquecer o interesse inegável daquele autor. Desde logo, e cabalmente, chama a atenção para o facto de Judas - figura que, ao longo da história, tem sido por todos conhecida e comentada - ser referido apenas vinte e duas vezes no conjunto dos quatro evangelhos... S. Marcos nomeia-o, primeiro, no versículo 19 do seu capítulo 3º, no relato do chamamento dos doze apóstolos por Jesus: E a Judas Iscariotes, o que o entregou.

 

   Tal referência, tão precoce, deixa suspeitar que, na tradição oral das primeiras igrejas cristãs, a personagem do traidor era geralmente conversada, como aliás testemunham os evangelhos de Mateus (10, 4) e de Lucas (6, 16) que, tal como o de Marcos, desde logo o incluem na lista dos doze chamados: ...e Judas Iscariotes, aquele que o traiu...  ... E Judas, o filho de Tiago; e Judas Iscariotes, que foi o traidor. Nota, Princesa, que tal labéu é atributo do Iscariotes, em qualquer dos sinópticos, logo desde o início da vocação apostólica. Na última citação acima, a de S. Lucas, o apelido parece explicar-se pela necessária distinção entre ele e o outro Judas, o santo, filho de Tiago. O Iscariotes é o único distinguido por nome e apelido. Em S. João - o quarto evangelho, de "família" não sinóptica - não há momento único, um episódio, ou uma listagem de nomes, para o chamamento dos doze, e a primeira referência a Judas Iscariotes dá-se em 6, 70-71: "Não vos escolhi a vós, os doze? E um de vós é um diabo". E isto dizia Ele de Judas Iscariotes, filho de Simão; porque este o havia de entregar, sendo um dos doze. Essa menção do apelido e filiação de Judas, e à sua traição, retoma-se no episódio da unção dos pés de Jesus por Maria de Betânia (João, 12) e ainda na narrativa do lava-pés (Jo. 13, 2), em que o diabo volta a ser lembrado, tal como na última ceia (Jo. 13, 26-27): "Aquele a quem eu der o bocado molhado". E, molhando o bocado, o deu a Judas Iscariotes, filho de Simão. E após o bocado, entrou nele Satanás. Disse pois Jesus: "O que tens de fazer, -lo depressa". Acho curioso observar, Princesa de mim, que o Iscariotes participou, com os outros apóstolos, na instituição da eucaristia, e que o bocado de pão que Jesus molhou e lhe ofereceu era, provavelmente, pedaço do seu corpo eucarístico. Se, por outro lado, considerarmos como o apelido Iscariotes e a filiação deste Judas poderão indicar que, diferentemente dos outros onze, ele não é galileu, mas judeu (da cidade de Queriote?), seremos tentados a concluir que se pretende aí sugerir que o diabo, Satanás ou o Mal, aquele que divide, é simultaneamente nosso e alheio, participante familiar e estranho. É sobre esse "nós e o nosso monstro" que agora me debruço. Judas, portanto, passa de protagonista a pretexto. E não me demoro na consideração das circunstâncias, motivos e pulsões que têm sido adiantadas para tornar plausível o comportamento de Judas. Nem tampouco no aproveitamento desse comportamento, ligado ao nome do traidor e à sua origem judaica, por vagas sucessivas de propaganda antissemítica ou tão só para fazer do povo judeu o culpado, o bode expiatório da morte de Jesus. Talvez por me ter chocado a história de uma denúncia, traição, entrega desnecessária e inútil do Filho de Deus por um seu muito próximo, quando, afinal, Jesus Cristo era conhecido de todos e já reconhecidamente fora acusado e perseguido pelos seus inimigos. Mais: a vítima traída sabia desde sempre o que lhe aconteceria, quando, em que circunstâncias e por quem, como se ela própria fosse comandante dos acontecimentos: o que tens a fazer, fá-lo depressa. Como se dissesse "não enganas ninguém, mas só a ti". Aquela história não é narração de factos reais, antes me parece ser uma chamada de atenção para o inesperado que nos habita, para essa divisão da alma que nos leva à autossuficiência e arrasta à infidelidade. Obra do diabo, dizia-se dantes. Nesse sentido, a observação de Oscar Wilde na peça de Hare sublinha como é no íntimo de nós que a traição acontece, quando amamos (?) e, por a nós nos preferirmos, ao amor nos negamos.

 

   O apego a si mesmo, essa tal grandeza que, diria Pascal, é a miséria do homem, também levou Don Juan a cair no inferno. Mas com ele, de certo modo, podem cair todas as outras personagens, se ninguém finalmente se desembaraçar do apego próprio que faz, de cada um de nós, um burlador com propensão a Judas. A arrojada, quiçá violenta, encenação e coreografia da ópera Don Giovanni, realizada para De Munt por Krzysztof Warlikowski, em 2014, insiste, precisamente, em mostrar que o protagonista pode não ser a exceção.


   Aliás, ocorre-me agora o início do prefácio que Claude Roy escreveu para a edição, que conservo, de Le Spleen de Paris (Le Livre de Poche, Paris, 1964) : «Encontrareis, neste livro, a história do homem enamorado de uma mulher perfeita, tão perfeita, tão incapaz de cometer um erro de sentimento ou de cálculo», que o seu amante a admirou durante muitos anos, com o coração cheio de ódio. No fim, mata-a, para acabar com essa insuportável perfeição. Como se ecoasse em Charles Baudelaire aquele trecho do evangelho de S. João (1, 9-11): Ali estava a luz verdadeira que alumia a todo o homem que vem ao mundo. Estava no mundo e o mundo foi feito por Ele e o mundo não o conheceu. Veio para o que era seu e os seus não o receberam. Nesta tarde tão chuvosa dum primeiro domingo de primavera, ponho a tocar e escuto a versão do mozartiano Don Giovanni (Praga/Viena 1787-88) dirigida por René Jacobs em 2006.

 

  Lembrei-me de que a tinha na minha discoteca, ali pretendendo marcar diferença relativamente ao tratamento que lhe tem sido dado, desde E.T.A. Hoffmann, no século XIX: para este, diz Jacobs em entrevista, Don Giovanni é um herói trágico, sempre em busca da mulher que pudesse facultar-lhe a demanda de uma união com o infinito. Donna Anna é elevada tanto acima das outras personagens que a sua "personalidade luminosa" faz dela a verdadeira adversária de Don Giovanni. A demanda do infinito, do inacessível, a redenção pelo sentimento, pelo amor, que aqui se cumpre por morte trágica... - eis certamente uma bela invenção, mas que nada tem a ver com a peça: é, de facto, uma falsificação muito sedutora. Se deve haver um adversário à altura de Don Giovanni, não será Donna Anna, mas Donna Elvira, a "donna abbandonata" da ópera barroca, como já Ariana o tinha sido por Teseu, em Monteverdi. É, de longe, o papel mais comovente de toda a ópera. O seu amor por Don Giovanni é totalmente irracional e profundamente autodestrutivo. 

 

   A grisalha desta tarde parece perguntar-me: como foi Dona Elvira capaz de desejar a morte, pior, a condenação do seu amor? Seria Judas Iscariotes fadado para demandar o sacrifício do seu Cristo? Poderá qualquer de nós ser tão magoado pela bela claridade do amor - como abertura de portas e caminho de liberdade e entrega - ao ponto de se afogar com um tesouro que quer só para si? Don Giovanni colhe a mão gelada do Comendador (ou do seu fantasma) e cai no inferno, depois de ter recusado arrepender-se. Fica preso pelo seu apego a si, recusa o amor que liberta. Mas o epílogo acrescentado a esse final também soa postiço, moralizador à força: nessa cena última, Don Ottavio exprime bem o sentimento egoísta de todos, quando canta "já agora, depois de todos nós termos sido vingados pelo Céu, dá-me, ó meu tesouro, o teu conforto, não me deixes mais à espera"... E os circunstantes vão todos à vida, em busca do conforto próprio. A menos que, com ironia, se insinue aí que, uma vez achado e castigado o bode expiatório, nos possamos, afinal, render ao nosso agrado... O sacrifício de Don Giovanni é assim comentado, em coro (Donna Anna, Donna Elvira, Zerlina, Don Ottavio, Masetto, Leporello): Questo è il fin di qui fa mal! / E de´perfidi la morte / Alla vita è sempre ugual. Cai o pano. Mas eu quedo-me a pensarsentir qual será o lugar do Iscariotes no amor misericordioso de Deus. Quiçá Judas, consumado o sacrifício de Jesus Cristo, tenha finalmente percebido que nisto está o amor: não em termos amado a Deus, mas em Ele nos ter amado primeiro e ter enviado seu Filho para remissão dos nossos pecados. Se Deus assim nos amou, também nos devemos amar uns aos outros. Ninguém jamais viu a Deus; se nos amamos uns aos outros, Deus está em nós e em nós é perfeito o seu amor (1ª Carta de S. João, 4, 10-12).

 

   Perdoa-me, Princesa, escrever-te a fazer perguntas, ainda por cima bem diferentes daquelas que, em tempos, abriam tantas cartas que pelo mundo se escreviam: Minha Querida Mãe: Como está de saúde, como estão todos? Eu por cá bem, graças a Deus! Vi há pouco uma reportagem sobre essa guerra que vai matando centenas de milhares de civis, a maioria por estarem apenas em suas casas. Para além do horror, a que assistimos, desta visão infernal do mal, onde está a culpa? Será que Deus se esconde para nos pôr à prova? Silencio-me para conseguir entrar nessa oração suprema que é a contemplação da misericórdia. Neste momento, há em mim um Judas que quer, com todo o coração, acreditar que Deus nos amou primeiro. Para também eu amar, até no insuportável. 

   
Camilo Maria

 

Camilo Martins de Oliveira