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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

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Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

CRÓNICA DA CULTURA

 

Caro padre Jesuíno;

 

Respondo-lhe mesmo antes de ler o livro que tão gentilmente me enviou.

 

Creio, padre Jesuíno que se sabe muito bem o que está por fazer, porque quase tudo está por fazer.

 

Observo que nos encontramos tão distantes do que entendemos por prosperidade de uma nação, por bem-estar generalizado que, durante muito tempo, não cairemos no risco de vivermos num país desenvolvido. Talvez por estas razões entre outras, a frustração dessa falta de comodidade mínima de vida, pode-se definir não como tendo na base uma acesa causa económica, mas antes por falta de uma enorme sova moral, não distribuída ou não auto atribuída ao esforço de todos e de cada um, como efeito de agulha no plano da ética pessoal e social que gerasse o início do trabalho que conduzisse à felicidade possível.

 

Só através de um caminho pessoal e institucional se conduz as pessoas individualmente consideradas a não se sentirem impotentes face ao Leviatã, tão difícil de descortinar atualmente, quando os próprios Estados e os grupos de pressão, em vivência de globalização de comunhão adquirida, aderiram a um pacto de sujeição morno quanto baste, e que impede a luta contra o conformismo e contra o marasmo, o que conduz a um sentido bem expresso da necessidade da atividade dos intelectuais.

 

Padre Jesuíno, quando nas anteriores cartas lhe referi o quanto receava a moral e a ética reféns das instituições da política contribuindo para a dificuldade do estudo da ciência da política nos dias de hoje, era exatamente a este ponto que queria chegar: o consumidor, o consumidor de tudo, dos bens materiais, do amor, da religião, da juventude, da criação, da saúde, da solidariedade e a consequente perda de mira de todos os olhares, constituem o mais conseguido Leviatã que Hobbes pensaria poder gerir.

 

Deito mão de um papel que encontrei (tenho tantas destas anotações!) por entre as páginas de um livro meu, onde uma frase escrita por alguém que me despertou interesse, sem que o livro me pertencesse, e eu, deste modo guardava memória, e que, infelizmente neste caso concreto não anotei o nome, tão só sei tratar-se de um jornalista espanhol que escreveu:

 

«no tiene condiciones para ser verdadeiramente dichoso un país en que los infelices son tan ricos de alma que prefieren cuatro horas de sol a cuatro pesetas de jornal.»

 

E afinal hoje nem se poderá ser tão livre assim?…

 

Saudades a Paris

Teresa

 

Teresa Bracinha Vieira

A VIDA DOS LIVROS

 

De 15 a 21 de maio de 2017.

 

«Fátima – Das Visões dos Pastorinhos à Visão Cristã» (Esfera dos Livros, 2017), da autoria de Carlos A. Moreira Azevedo é uma obra fundamental para a compreensão séria e serena de um fenómeno muito complexo, como Fátima, que deve ser analisado como rigor histórico e prudência, à luz de uma reflexão teológica, histórica e sociológica, que previna simplificações redutoras e especulativas.

 

 

A VISÃO CRISTÃ DE FÁTIMA
“A grande questão subjacente a toda a polémica sobre Fátima situa-se (…) na capacidade de percecionar o lugar das mediações entre a religiosidade popular e a visão cristã de Deus”. É o autor que o afirma, continuando: “Se Deus nunca ninguém o viu, o crente aceita a debilidade das mediações para alimentar a sua fé com sinais, que nunca atingem Deus, mas aproximam e ajudam a entrar em relação: gestos, ritos, memórias. Neste processo de humanização e encarnação, os videntes e profetas põem-se ao serviço das mensagens de Deus e a Igreja assume a missão de supervisão entre a religiosidade natural e popular e estes frágeis intérpretes da vontade de Deus”. Eis donde parte a obra, considerando que a fé é sempre pessoal (no sentido mais rico do termo), devendo ser compreendida muito para lá da pura racionalidade ou do cientificismo, mas em articulação com a razão – recusando a irracionalidade, que vive paredes meias com a magia. Estamos, pois, a falar de fenómenos testemunhados pela humanidade, com uma dimensão comunitária muito relevante, que devem ser considerados no contexto de uma religiosidade ou de uma espiritualidade adulta e consciente – leiam-se os testemunhos recolhidos por Leonor Xavier e veja-se o filme de João Canijo. E não esquecemos a afirmação de Paul Claudel: “Fátima é uma irrupção violenta e escandalosa do mundo sobrenatural neste agitado mundo material”. Eis por que razão temos de lidar com o fenómeno com especial atenção – até para que o mesmo seja respeitado e considerado como uma manifestação de fé. Cabe à Teologia integrar as devoções, ligando-as à globalidade da Revelação e à comunhão eclesial. E como temos aprendido, tantas vezes, tragicamente, ao longo da História, os fenómenos religiosos e a liberdade de consciência têm de ser compreendidos e respeitados, não numa lógica absolutista ou relativista, mas num são pluralismo, que pressupõe um diálogo informado e conhecedor. Nada pior do que os monólogos sobranceiros e ignorantes, que apenas favorecem a irracionalidade e a intolerância.

Uma visão cristã do fenómeno de Fátima obriga a partir de Jesus Cristo e a considerar o arreigado culto mariano a essa luz, enquanto riquíssimo fator de mediação. E o caso português tem um especial significado – falamos da Terra de Santa Maria, as dioceses estão consagradas à Mãe de Deus, numa das suas designações antigas a cidade de Faro invoca expressamente Santa Maria, os reis de Portugal entregaram a sua coroa à Padroeira na Restauração. E sem procurarmos muito, encontramos nas origens da nacionalidade a visão da Senhora da Nazaré do Almirante das Armadas D. Fuas Roupinho. E As Memórias Paroquiais de 1758 dão notícia de diversas aparições. Estamos, assim, perante um culto muito difundido – que se projeta Além-Mar na missionação e que encontra uma continuidade com as suas raízes num culto muito antigo e bem consolidado.

 

UMA CONJUNTURA COMPLEXA
O livro debruça-se sobre o fenómeno de um modo claro e rigoroso, em quatro partes: o Cenário, onde se analisa a conjuntura sociopolítica e económica de 1917; o Acontecimento, sobre o fenómeno das visões (do Anjo, marianas de maio a outubro de 1917 e o que seguiu); as Personagens, envolvendo os videntes e os supervisores; e a Mensagem – fases de apropriação, segredo e perspetiva de futuro. Publica-se ainda um importante apêndice sobre o trabalho documental. A conjuntura de 1917 é um caldo de cultura rico em acontecimentos, num período marcado pela questão religiosa portuguesa, coincidente com o anticlericalismo que acompanhou a implantação da I República. Apesar dos apelos de católicos como Abúndio da Silva no sentido de uma renovação da Igreja e de uma maior independência do poder político, a verdade é que a orientação laicista e os excessos na hostilização religiosa prevalecem (como a faculdade legal de dissolução das mesas administrativas das irmandades e confrarias e sua substituição ou a posse pelo Estado dos bens das extintas ordens religiosas), num ambiente de grande tensão social, sobretudo fora de Lisboa e dos grandes centros urbanos. A entrada de Portugal na Grande Guerra viria, porém, a dar lugar à necessidade de um apoio de teor religioso. “Afinal, a função da religião para a vivência pessoal e social ia além do racionalismo e da instituição clerical”. A defesa dos interesses marítimos e coloniais levaram à entrada no conflito, com número assinalável de baixas. Em janeiro de 1917 começam a chegar a França os primeiros contingentes do Corpo Expedicionário Português e o executivo chefiado por António José de Almeida permite a presença de 15 capelães para 50 mil homens, embora sem vencimento. Este serviço revelar-se-á da maior importância, com forte apoio da sociedade.

 

UM ANO PLENO DE ACONTECIMENTOS
O ano de 1917 foi denso de factos: os bispos portugueses assinam uma Instrução Pastoral Coletiva na qual se diz que os católicos não devem eximir-se de funções ou cargos públicos, o que levará à constituição do Centro Católico (onde se destacará António Lino Neto); em dezembro ocorre o golpe militar de Sidónio Pais, que institui a chamada “República Nova”, abruptamente interrompida um ano depois em virtude do assassinato do Presidente. O certo é que se inicia um período de atenuação da crise religiosa, que corresponde (conforme Luís Salgado de Matos em A Separação do Estado e da Igreja, D. Quixote, 2010) à concordata informal de Sidónio Pais, à orientação pacificadora de Bento XV, à abertura do Presidente António José de Almeida, tendo entretanto ocorrido a beatificação de Nuno Álvares Pereira em 1918 E bem longe, em outubro de 1917, as convulsões sociais na Rússia culminariam na queda do czarismo e depois na revolução bolchevique. Tudo isto está em pano de fundo em Fátima. O centro do fenómeno encontra-se na mensagem – ligada ao amor, à oração, à conversão e à paz. Estamos, como salienta o autor, perante visões, encaradas como “diálogos interiores, com a ajuda do Espírito Santo”, resultantes de um “mecanismo natural de projeção, de compensação, de diálogo transposto para um encontro”. As “visões são olhares humanos, a partir do olhar de Deus sobre a nossa realidade, para provocar e mover a Humanidade a corresponder ao maior bem criador de esperança no futuro”. Esse o ponto fundamental de que parte o autor, projetando essa hermenêutica na evolução histórica que reforçará a mensagem: desde a primeira Guerra Mundial e da epidemia da pneumónica até ao atentado ao Papa João Paulo II em 13 de maio de 1981… E é a tensão complexa entre a religiosidade popular e a visão cristã da relação entre Deus e os homens que, no fundo, aqui está bem presente.

 

Guilherme d'Oliveira Martins
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