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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

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AGOSTO AZUL…

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DIÁRIO DE AGOSTO (XXXI) - 31 de agosto de 2017

 


Chegados ao dia 31, devemos invocar o grande escritor português do mês de Agosto – que é Manuel Teixeira Gomes.

 

Agosto Azul – é uma referência inesquecível, que invoca o Algarve, o Sul, o Sol, o Mediterrâneo. Sim, porque Portugal é fruto do casamento marítimo do Mediterrâneo com o Atlântico. Daí o Promontório Sagrado, que une as duas extraordinárias vocações e influências. E de Teixeira Gomes, o algarvio que foi Embaixador, escritor, Presidente da República, referência cívica devemos lembrar um pequeno retrato que nos deixou:

 

«Fiz-me negociante, ganhei bastante dinheiro e durante quase vinte anos (1890-1910) viajei, passando em Portugal poucos meses. Montei a vida de forma que na região compreendida pelo norte da França, a Bélgica e a Holanda, onde vendia os produtos do Algarve, levava quatro ou cinco meses, ia a casa liquidar contas, e depois nos cinco meses restantes, livre e despreocupado, metia-me no Mediterrâneo, cujas costas visitei por assim dizer passo a passo».

 

De tal modo foi apaixonado do Mediterrâneo que acabou seus dias em Bougie, lembrando no azul-cobalto do mar o seu Algarve de sempre… E a Norberto Lopes, confessará como é o seu dia. E descobrimos como são diferentes os hábitos desse tempo. E a vida frugal do escritor impressiona-nos…

 

«Levanto-me às quatro da manhã. Preparo eu mesmo, no quarto, o meu almoço. São as melhores horas do dia, aquelas em que ainda posso fazer alguma coisa: ler, escrever. Ao meio-dia, janto. Às duas e meia, saio para ir ao correio. Às quatro, tomo um chá de tília – e em seguida recolho-me. Creio que é, em parte, devido a este regime alimentar que me vou aguentando. Além disso, tenho as cartas, os artigos, os livros, é isto que me prende à vida».

 

Ah! Como se lembra a sociedade rural de antanho – o almoço ao alvorecer, a janta ao meio-dia, e, por fim, a merenda e a ceia… Como mudou tudo, por causa da eletricidade e da possibilidade de termos luz durante mais tempo e não apenas dependente do irmão sol…

 

 

 

 

 

DIÁRIO DE AGOSTO
por Guilherme d'Oliveira Martins

 

 

 

 

 

 

 

 

CRÓNICA DA CULTURA


Os ulmeiros frondosos vão-se despedindo aos poucos da estação das alegrias. Habituaram-se que o Verão fosse breve como breve a felicidade, e que o Outono lhes fazia sentir que a queda das folhas exprimia a solidão dos campos, os dolorosos versos do entendimento das separações.

 

No Inverno as arvores perdem os espectadores, perdem-lhes a companhia e a capacidade de a encantar, e é como se vivessem para dentro um tempo desastrosamente melancólico e frio. E cismam, cismam com o prémio da saudade como devaneio doce e não dor.

 

Os ulmeiros, dizem, entram em descrença por deixarem de acreditar numa reabilitação primaveril que já tarda. São pais de família e desconhecem o que dizer aos filhos que lhes não perturbe a profundidade do antever do futuro de afastar a ideia de um abismo ou a perceção das lágrimas no rosto de quem passa.

 

E eis que escutam um chilrear alegre de quem chega de uma viagem. São as andorinhas, são os trovadores portugueses. Começa-se a notar um certo movimento auspicioso como prenúncio de uma lenda que acontece. E os ulmeiros, de qualquer natureza que eles sejam, entendem que a grande arte da vida vai ter enfim, uma outra estação de glória que a precede, e que afinal de nenhuma, a queixa se escreve em cadernos de alma, antes são tempos que também se fazem do interior exclusivo de fenómenos, e, sempre a seu benefício. De todos os ângulos sempre e unicamente Vida.

 

Teresa Bracinha Vieira

Agosto 2017

O que mais me separa dos outros

  

 

- Hoje não sei se é da minha idade, mas o que mais me separa dos outros é a natureza das suas aspirações. Eles não querem nada do que eu quero. Mas devo dizer-te que isso já não me preocupa muito. Aliás, já poucas coisas me preocupam nem mesmo a maneira de encarar a morte. Mas por outro lado sinto que os outros fazem parte da minha condição terrena.

 

António Alçada Baptista, in “O Tecido do outono” 1999, ed. Presença

 

António Alçada Baptista, a ternura, a delicadeza num projeto de vida diferente em permanente respeito pelo misterioso. Este meu padrinho de casamento, este meu padrinho DE MUNDO, bem me ensinou a acenar SEMPRE àquela natureza que era a única chave de entrada e de saída AO CERNE DO SER.

 

Teresa Bracinha Vieira

NEMÉSIO, SEM LIMITE DE IDADE…

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DIÁRIO DE AGOSTO (XXX) - 30 de agosto de 2017

 

Vitorino Nemésio é uma das figuras mais interessantes da cultura da língua portuguesa do último século.

Autor de um romance capital, como «Mau Tempo no Canal», foi o grande investigador da Mocidade de Herculano e de tantos temas luso-brasileiros, o ensaísta da cultura da língua pelo mundo repartida, o cronista inspiradíssimo e o inesperado poeta, com uma verve inesgotável…

E se falo de inesperado poeta é porque a sua escrita revela-nos quase que uma outra personalidade - um autêntico heterónimo, em que, apesar da idade, há uma juventude límpida que se foi manifestando independentemente da idade…

Dir-se-ia que a grande riqueza do mestre está na capacidade de voar pelo mundo da vida, sem preconceito e com verdadeira intuição criadora. E, como não poderíamos deixar de o referir nesta série de Agosto, eis um dos seus belos poemas, publicado em «O Verbo e a Morte»:


     A tempo entrei no tempo,
     Sem tempo dele sairei:
     Homem moderno,
     Antigo serei.
     Evito o inferno
     Contra tempo, eterno
     À paz que visei.
     Com mais tempo
     Terei tempo:
     No fim dos tempos serei
     Como quem se salva a tempo.
     E, entretanto, durei.

 

 

 

 

 

DIÁRIO DE AGOSTO
por Guilherme d'Oliveira Martins

 

 

 

 

 

 

 

 

 

A FORÇA DO ATO CRIADOR

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O mundo plano e flutuante de Bonnard

 

'Painting has to get back to its original goal, examining the inner lives of human beings.', Pierre Bonnard

 

Pierre Bonnard (1867-1947), desde muito cedo, sentiu o impacto de duas grandes influências: a pintura de Gauguin e a gravura japonesa, que prosperou entre o séc. XVII e XIX. 

 

No livro 'Bonnard' de Timothy Hyman, lê-se que, ambas as influências apontam para uma necessidade de planicidade e de síntese. 

 

Paul Gauguin repudiava o puro naturalismo positivista que dominava a arte francesa, no final do séc. XIX. Acreditava que a pintura deveria regressar ao seu propósito original e por isso, ser o reflexo do mundo interior do homem. Desejava unir o mundo interior ao exterior, através do uso de cores planas e fortes, formas recortadas e bem definidas e linhas enfáticas. Gauguin acentuava uma visão profunda e sugestiva, que se presta mais à evocação do que à descrição.

 

De todos os Nabis, Bonnard era o mais profano e mundano, o menos receptivo à aura do revivalismo arcaico. Não esqueçamos, que os Nabis (Bonnard, Denis, Ibels, Lacombe, Maillol, Ranson, Rippl-Ronnaï, Roussel, Sérusier, Vallotton, Verkade, Vuillard) eram um grupo unido em torno das possibilidades da síntese (primária, original, verdadeira e evocativa) iniciada por Gauguin.

 

Ora, a negação do espaço de Gauguin foi considerada, pela maioria dos nabis, como uma maneira de transcender o mundo quotidiano. Para Maurice Denis, importante era a independência da cor e da linha, em relação à sua função representativa - isto porque uma pintura é essencialmente uma superfície plana coberta de cores, dispostas de acordo uma determinada ordem. Já para Bonnard, a planicidade, existia como um meio para compreender o mundo com ainda mais firmeza. 

 

Foi em 1890, que Bonnard descobriu a gravura japonesa: 'I covered the walls of my room... To me Gauguin and Sérusier alluded to the past. But what I had in front of me was something tremendously alive.' 

 

O tema dos gravadores japoneses é centrado no mundo flutuante, da experiência efémera e fugitiva, da burguesia no bairro do prazer em Edo (hoje Tóquio). Tal como as gravuras japonesas, a pintura de Bonnard anseia por fixar momentos fugazes através de formas bem definidas e essenciais. Bonnard também trabalhou com a gravura em madeira, o que lhe permitiu desenvolver uma nova sensibilidade no que diz respeito ao uso da cor: 'I realized that colour could express everything... That it was possible to translate light and shapes and character by colour alone.'

 

A pintura de Bonnard 'La Partie de Croquet' (1892) revela a interiorização da 'Visão depois do Sermão' (Gauguin, 1888), secularizada e padronizada pela gravura japonesa e deseja sobretudo, descobrir uma forma essencial, sintética, descarnada e incompleta capaz de alongar infinitamente um momento efémero do quotidiano.

 

'Our generation always sought to link art with life.', Bonnard

 

 

Ana Ruepp

 

VERDI NO S. CARLOS?…

 

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DIÁRIO DE AGOSTO (XXIX) - 29 de agosto de 2017

 

A ópera foi o campo de eleição do genial Giuseppe Verdi.

 

A Itália aspirava há muito à unificação, que pusesse fim à frágil manta de retalhos existente. Havia necessidade de ídolos e Verdi assumiu esse papel. E o artista tornou-se um herói nacional.

 

Lembramo-nos da cena inicial do filme «Senso» de Visconti: “O Trovador” arrebata os espíritos… O seu nome é escrito nos muros das cidades para significar o apelo unificador de «Vittorio Emmanuele Re d’Italia» (V.E.R.D.I.).

 

Poucos sabem, porém, que, segundo a tradição oral dos nossos meios operáticos, nos anos trinta do século XIX (1838), sendo ainda Verdi pouco conhecido, Angelo Frondoni (c. 1808-1891) foi escolhido como maestro do Teatro de S. Carlos. No entanto, em alternativa, o nome preterido foi o de Giuseppe Verdi. Foi Bartolomeo Merelli, em Milão, que indicou Frondoni, e há correspondência com Verdi, a propósito da sua primeira ópera representada no Teatro alla Scala. A antiga e muito repetida tradição confirma-se pelos dados históricos.

 

Mas há mais: quando o jovem rei D. Luís, grande melómano, visitou Paris em dezembro de 1866, foi recebido em casa de Rossini. E houve uma pequena receção, na qual, segundo a «Crónica dos Teatros», participou Verdi, e o rei de Portugal teria cantado a romanza do “Trovador”, com o acompanhamento ao piano do próprio Verdi. Este tornou-se o autor mais representado em Portugal.

 

“Rigoletto”, “Trovador” e “La Traviata” estrearam-se no Porto, enquanto em Lisboa couberam as estreias de “Nabucco”, “O Baile de Máscaras”, “Ernâni” e “Macbeth”.

 

Em 27 de janeiro de 1901, no dealbar do novo século, Verdi morreu – como símbolo máximo da ópera – e bem poderia ter dirigido o nosso S. Carlos...

 

 

 

 

 

DIÁRIO DE AGOSTO
por Guilherme d'Oliveira Martins

 

 

 

 

 

 

 

A PALAVRA DE JOÃO BÉNARD DA COSTA

João Bénard da Costa

 

PARA AS BANDAS DA “PLAYBOY”

 

1 - Uns artiguitos, por aqui e por acolá, informaram-me que a "Playboy" fez 50 anos. Primeiro pensei: "Meu Deus, como o tempo passa!" Depois, melancólico, realizei que as mais tenrinhas das "bunnies" de há 50 anos têm hoje a minha idade. Marilyn - na celebérrima foto nua do número 1 - era bastante mais velha. O que vale (vale a quem?) é que o tempo não corre à mesma velocidade para os homens e para as mulheres. Marilyn morreu, ainda quase todas vocês nem nascidas eram. As coelhinhas desmamadas de 1953 têm agora idades assustadoras. Mas aquele que, ainda hoje, continua a ser tratado por Hef (Hugh Hefner, o patrão), nascido no mesmo ano de Marilyn (1926) continua, aos 77 anos, mais Viagra menos Viagra, a "dating" três coelhinhas em simultâneo e a ter um harém permanente de vinte e tal. A acreditar em Pedro Rolo Duarte, Sting, que entre parêntesis já vai nos cinquenta e picos, compara-o "a uns daqueles imperadores romanos decadentes, cercados pelos bárbaros da Internet, que estão a acabar com o seu império". Mas as fotos da festa das bodas de ouro, que se podem ver na "Playboy" de Fevereiro de 2004, já à venda por aí, mostram-no em bastante boa forma e excepcionalmente num impecável "tuxedo". Duvido que os bárbaros, quando lá chegarem e se lá chegarem, consigam o mesmo estardalhaço.

 

2 - Em 1953, ano XVIII da Revolução Nacional, indecências como a "Playboy" não chegavam a Portugal, mesmo se, vistos de hoje, esses números de antanho nos apareçam tão puros e castos. Foi na maluca década seguinte que comecei a ouvir falar dela e a comprá-la às escondidas em Paris, usando do álibi de tantos "intelectuais" da época: nela colaboravam nomes maiores da literatura americana. A quem nos apanhava com a boca na botija, respondíamos que a tínhamos nas mãos por causa de Norman Mailer e não das mulheres nuas. A partir daí, não me lembro bem. Começou a haver coisas bem mais escandalosas ou já nada escandalizava ninguém, como se lamentava o velho Breton, de barbas até ao umbigo. Mas o mito permaneceu e pelos vistos permanece, já que, desse tempo, só a "Playboy" subsiste. E não conheço ninguém que, pelo menos de nome, ou de escaparate, a não conheça. E ainda há quem tenha pudor de a comprar seja a quem for. Mas isso são outras histórias e eu venho hoje para contar a minha.

 

3 - Foi em Los Angeles. Primavera de 1995. Estava por lá num congresso das Cinematecas, desses que há todos os anos nas sete partidas do mundo. Quem chega a esses congressos recebe sempre, entre uma data de papelada, vários convites, qual deles o mais chato. Ou é o ministro ou é o presidente da câmara ou é o director de uma instituição cultural, que convida para um "cocktail", geralmente precedido por infindáveis discursos, em que os retardatários já não acham nada de beber nem nada de manjar. Daí o meu espanto, quando, entre vários envelopes, achei um com a inconfundível "trade-mark" e em que Hugh Hefner requestava o prazer da minha companhia para uma recepção em casa dele (a lendária Mansão) dia tal às tantas horas. Apressei-me a confirmar, sem perceber a razão do convite. Embora se anunciasse uma sessão de cinema. Na tarde aprazada, meti-me num táxi com uns colegas (em Los Angeles, o táxi é o único transporte possível para quem não dispõe de carro próprio) Sunset Boulevard acima ou Sunset Boulevard abaixo. O cinema preparara-me para muito, mas não para a verificação experimental de que ser bi ou tri milionário na América ou na Europa é coisa distintíssima. O táxi parou à porta de um enorme portão de aço, entre altíssimos e irídicos muros. O motorista tocou em intocáveis botões e, com os nossos convites na mão, respondeu a uma voz de oz com os nomes que os nossos pais nos deram. Os portões abriram-se à sésamo e o táxi entrou, após cuidada contagem dos ocupantes. Seguiram-se três quilómetros de subida (não exagero) por uma estrada ladeada por árvores soberbas, com inscrições em latim. Fosse eu minimamente botânico (desgraçadamente não o sou) e esmagaria os peritos com nomes venerandos. A certa altura, lembrei-me da Rebecca de Hitchcock e do susto da Joan Fontaine da primeira vez que entrou em Manderley. Lembranças não eram lembradas e achei-me diante de uma mansão que parecia a do Senhor de Winter. O táxi contornou-a e descemos num jardim de buxos a perder de vista. Em pequeno, a minha mãezinha ensinou-me que, quando se é convidado, a primeira coisa a fazer é ir falar aos donos da casa. As regras ali eram diferentes. Numa vasta varanda, inconfundível na "silk red robe" e no "silk red pijama", Hugh Hefner conversava com uns íntimos e com umas íntimas. Nem pensar em lá chegar. Para o impedir, existiam uns polidos e corpulentos guarda-costas que nos saudavam em nome do mestre, enquanto conferiam discretamente o nome que lhes dizíamos com uma lista que tinham. E logo chegaram as coelhinhas, servindo copos, louramente insinuantes. Andando, tremiam-lhes as mesmas coisas que tremeram a Vénus quando subiu ao Olimpo para interceder pelo Gama. Qualquer coisa entre o jardim de Klingsor e o Venusberg.


Depois que de nós afastaram o desejo de comida e bebida, propuseram-nos uma voltinha. Começou pelo muito celebrado Grotto, que, ao princípio, parece a ribeira misteriosa da antiga feira popular e, a pouco e pouco, recorda os lagos e as grutas do rei-virgem da Baviera. Música afrodisíaca, estalactites e estalagmites a que só extremos de boa educação podem chamar símbolos fálicos ou vaginais. Por aqui me fico na descrição, que estas coisas mais vale imaginá-las do que nomeá-las. Após as vinte mil léguas submarinas, a Arca de Noé. Quero eu dizer, um jardim zoológico a perder de vista, onde não vi feras, mas muitas girafas, zebras, avestruzes e cangurus. O luxo da colecção era a morada dos répteis e o espaço dos aquários. A colecção de peixes do Pacifico era particularmente prodigiosa.

 

4 - A essas horas, começava a anoitecer, as coelhinhas prometeram o resto para logo e levaram-nos para dentro. Era tempo de cinema. A sala privativa de Hugh Hefner cumulou os meus sonhos. Madeira escura, grandes maples de couro, mesinhas para o cinzeiro e para o copo, ecrã imenso. À frente, cadeirão especial para o anfitrião, que entrou por outra porta e nos introduziu, numa longa prelecção, ao filme que escolhera: a versão de 1939 de "The Hunchback of Notre Dame", realizada por William Dieterle, com Charles Laugthon e Maureen O'Hara. Bem ao meu estilo, contou de como amara o filme aos 13 anos e de como a seguir o foi amando vida fora. Nunca vi mais bela cópia dele.


Finda a sessão, alguns voltaram aos prazeres da mesa, enquanto outros (foi o meu caso) preferiram continuar a explorar os jardins. Não me arrependi, pois que as nossas guias nos levaram ao "santo dos santos", a peculiaríssima "garçonnière" de Hef.


Na sala de entrada, aquela versão da "Última Ceia", onde Clark Gable, James Dean, Marlon Brando, Elvis e sete outros bebem néctar e comem ambrósia. Uma parafernália erótica preenchia cada canto e cada recanto, até nos mostrarem os quartos e as casas de banho. As posições do "Kama-Sutra" ilustravam as portas, sugerindo a especialidade de cada câmara, como parece que foi de uso nos lupanares do século XIX. Entrado no primeiro quarto, fui-me abaixo das pernas, não por culpa delas, mas por culpa do chão, almofadado e elástico e não propriamente destinado à parte do corpo humano conhecida pelo nome de pés. Paredes e tectos de espelhos. Cada quarto cada cor, qual delas mais "kitsch" e mais berrante. Uma rampa de igual moleza levava às casas de banho, muito escuras e subterrâneas. Mas a luz, como tudo o resto, dependia do gosto de cada qual. Também se podiam iluminar feericamente as casas de banho e escurecer os quartos. Ideal para jogar às brincadeiras às escuras, à cabra-cega ou à linda barquinha do lindo luar.

 

5 - Quando voltei à Mansão, já havia poucos convidados, entretanto saídos ou entretanto recolhidos. Comecei a admirar a colecção de pintura de Hefner, sobretudo os seus Fragonard. Foi nessa altura que o homem de pijama de seda se aproximou de mim e a conversa voltou ao corcunda. Contou-me ele então que sempre gostara tanto de ver filmes como de falar sobre eles. Mas, outrora, os amigos fugiam a sete pés dessas conversas intermináveis, sobretudo do seu requinte supremo que era contar um filme tintim por tintim. Por isso, quando ficou rico e famoso, resolveu organizar aquelas sessões. Eram sobretudo um pretexto para ele falar, demasiado sabendo que os agradecidos convidados não ousariam pateá-lo ou virar-lhe as costas. "Agora, como viu" (e fora bem verdade) "ouvem-me em religioso silêncio e, no fim, dão-me muitas palmas. All that money can buy". "All", depois de tudo o que eu vira, era um exagero. Mas ficou-me a sensação (talvez errada) de que, pelo menos em 1995, ele se divertia bastante mais com essas cinéfilas palestras do que com as coelhinhas. Pelo menos, quando nos despedimos, já não havia coelhinhas nenhumas e ele estava a meio de me contar a versão de Lon Chaney (1923) do romance de Victor Hugo. As almas têm, às vezes, encontros singulares.

 

30 de Janeiro de 2004, in Público 

ELE HÁ QUALQUER COISA…

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DIÁRIO DE AGOSTO (XXVIII) - 28 de agosto de 2017

 

Mais uma do Gualdino Gomes, nosso velho conhecido.

O Fialho de Almeida tinha uma espécie de amor-ódio por ele e estava sempre a meter-se com ele, por não ter obra e por desperdiçar o seu talento em linguados de jornal…

- Oh! Gualdino estou a ver os nossos netos a lerem as tuas obras completas… 

O Gualdino, calado, ouvia, ouvia, e ia enchendo o saco. A certa altura, não se continha e rebentava. E lembrava-se de que o Fialho casara tarde e rico no Alentejo.

- Oh Fialho, diz-me aí as horas no relógio do teu sogro…

Outra vez, foi na estreia do «Tamar» do Alfredo Cortez, no Teatro Nacional, que se passava numa praia, com o cenário do mar ao fundo. Iam chegando os pescadores, com a mão na testa, em forma de pala, e passavam da direita para a esquerda no palco, olhando o horizonte, numa estranha marcação. Passou o primeiro, passou o segundo e, quando passou o terceiro, o Gualdino levanta-se e diz:

- Ele há qualquer coisa e é ali para o Intendente… Vou lá ver…

 

 

 

 

 

 

 

 

DIÁRIO DE AGOSTO
por Guilherme d'Oliveira Martins

 

 

 

 

 

 

 

 

A VIDA DOS LIVROS

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     De 28 de agosto a 3 de setembro de 2017

 

«Tudo o que não Escrevi» de Eduardo Prado Coelho (2 volumes), edições Asa, 1991-1992, é um retrato em forma de diário de uma das personalidades mais interessantes e ativas do meio cultural português da passagem do século XX para o século XXI.

 

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DEZ ANOS DEPOIS…

Já decorreram dez anos desde que o Eduardo Prado Coelho nos deixou e no entanto a sua memória, a vitalidade do seu exemplo continuam bem presentes, sendo justo que devamos recordá-lo, como ele gostaria. Fora de qualquer ideia retrospetiva, a sua preocupação fundamental estava no culto de uma atenção desperta para o tempo e a realidade que o cercava. Não conheci mais ninguém que estivesse tão atento ao debate de ideias e ao surgimento de novos contributos e de novas perspetivas. No Centro Nacional de Cultura contei sempre com a sua participação ativa nas iniciativas para que era desafiado. Quando o Chiado ainda estava morto, sob os efeitos do terrível incêndio, lançámos as festas no Chiado (na altura, duas por ano). Era um tempo em que ninguém estava certo de que seria possível dar vida àquela capital de Lisboa, na expressão de José-Augusto França, e o Eduardo aceitou o desafio dos cinco livros, cinco autores – para trazer aqui os mais interessantes escritores, ensaístas e poetas. E com que zelo e prazer fazia o seu trabalho… Muitas vezes, os autores que indicava eram ainda pouco conhecidos, mas o tempo veio a provar que o Eduardo tinha um faro verdadeiramente raro para descobrir o que tinha realmente qualidade. Lembramo-nos que, relativamente a um autor hoje consagradíssimo, tivemos 5 pessoas da primeira vez que foi escolhido – mas um ou dois anos depois já havia para a mesma pessoa quase uma centena de presenças… O tempo passou e o Chiado renasceu, pujante, graças a uma extraordinária convergência de esforços e de vontades – entre os quais Siza Vieira teve um papel crucial. E se lembro o entusiasmo de Eduardo, a verdade é que os livros e a cultura foram âncoras essenciais para que o Chiado tenha renascido mais forte do que nunca… O certo é que a ideia de cultura, que sempre esteve presente na sua ação, tinha a ver com a criatividade, a atenção e o cuidado. Educação, formação, ciência, pensamento, cidadania ativa, responsabilidade política, antecipação do futuro, ligação entre tradição e mudança – eis o que o ensaísta soube cultivar e aprofundar (e essa ligação íntima a Eduardo Lourenço deve ser lembrada especialmente). Se nos lembrarmos do seu contributo para os primeiros passos do estruturalismo entre nós, verificamos, antes do mais, a atenção aos novos caminhos, sem se deixar aprisionar pelas leituras exclusivas ou unilaterais. O primeiro entusiasmo dava lugar a outras influências e outros contributos. O mesmo se diga relativamente ao pensamento marxista ou depois à lógica liberal-libertária.

 

UMA GENUÍNA CURIOSIDADE.

O que Eduardo Prado Coelho tinha era uma curiosidade genuína pelo mundo das ideias. Daí a capacidade de se apaixonar por elas, mas simultaneamente também a disponibilidade crítica para abrir novos capítulos e novas influências. Deste modo, foi um cultor de um pensamento plural, aberto à diversidade. Esse o balanço geral do rico percurso intelectual que assumiu e que teve diversas facetas. E se alguns salientam este ou aquele momento mais marcado por determinada opção, a verdade é que o conjunto da intervenção do ensaísta (que ele foi essencialmente) dá-nos um panorama de abertura à diversidade – e de capacidade para se pôr em causa ao descobrir novos caminhos para a sua reflexão. Quando apoiou Maria de Lourdes Pintasilgo em 1985 teve a lucidez de pôr a ênfase no que essa candidatura tinha de mais novo e enriquecedor, salientando a importância da convergência com o movimento de ideias que Mário Soares pôde suscitar e depois assumir. Fui testemunha dessa fase e sei da importância que teve esse diálogo na renovação das ideias da esquerda democrática, numa fase especialmente difícil, em que havia o risco da fragmentação. A filosofia política anglo-saxónica, a segunda esquerda francesa, a nova escola de Frankfurt punham-se em confronto e em diálogo – num momento em que F. Fukuyama e S. Huntington não poderiam ser lidos de modo simplista, já que o sistema de polaridades difusas gerado no fim da guerra-fria e na queda do muro de Berlim abria caminho a uma imprevisibilidade perigosa. Hoje sabemo-lo: «Brexit», Trump, Putin, Síria, Estado Islâmico, República Popular da China, Coreia do Norte e assim sucessivamente… E fica-nos a grande curiosidade de saber que teria dito o Eduardo perante Houellebecq no seu romance «Submissão», para além da lógica da «Espuma dos dias» de Boris Vian…

 

O DILEMA EUROPEU.

Estará a Europa condenada à fragmentação e à irrelevância? Muitos são os temas para os quais o Eduardo Prado Coelho seria, certamente, um ativo estimulador de ideias – a partir da capacidade de compreender como o diálogo do pensamento pode ser um fator de progresso e emancipação, compreendendo que nunca descobriremos uma qualquer via de reconciliação definitiva… Não esqueço que a última vez que falámos, poucos dias antes da sua morte. Disse-me que se sentia melhor e que estava disponível para continuar a animar uma iniciativa centrada na literatura… Estava otimista e parecia com uma energia renovada, eis por que razão foi um choque receber a notícia. O certo é que a última lembrança do Eduardo foi positiva, com o seu entusiasmo de sempre… Por isso, escrevi na altura um texto em que recordava «Emílio e os Detetives», uma narrativa juvenil – ciente de que a ficção era para ele uma prova de vida… Por isso, costumava lembrar as suas lágrimas de criança quando leu a descrição de Salgari da morte de Sandokan, na célebre coleção da Romano Torres, envolvendo o inconfundível português Gastão de Sequeira. Na reta final da vida assumiram uma especial importância as cartas que trocou com o Cardeal Patriarca D. José Policarpo, onde a independência de espírito, a inteligência e a compreensão do mundo estavam bem presentes. No seu diário, confessa a dificuldade da relação com o mundo da vida. Há muitas perplexidades, mas sempre a preocupação com o ter os olhos abertos perante a realidade humana: «Há uma frase que me tem seguido pela vida fora. Qualquer coisa como "não tens vida interior". Que significa? Não propriamente que me seja atribuída uma ausência de "pensamento interior" - de modo algum. Mas perpassa a suspeita de que esse pensamento se desenrola numa espécie de impessoalidade indiferente aos relevos afetivos de todos os dias. Confesso que isto me espanta, porque se alguma coisa eu sinto é que tudo aquilo que penso se modela sobre um corpo afetivo extremamente atento e vibrátil. Tudo o que seja um pensamento segregado do quotidiano me parece insignificante».    

 

Guilherme d'Oliveira Martins

 

 

ESTRANHO MODO DE VIDA…

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DIÁRIO DE AGOSTO (XXVII) - 27 de agosto de 2017

 

Esta aconteceu com o então Presidente do Grémio Nacional dos Editores e Livreiros, nos anos sessenta do século passado, Luís Borges de Castro, e foi-me contada também pelo António Alçada (de quem tenho muitas saudades).

 

Havia uma reunião de rotina da direção do Grémio e nela irrompeu a PIDE, para prender o Augusto Sá da Costa. Acontece que os PIDES se tinham esquecido de levar o papel azul regulamentar para escreverem o auto de detenção. Por isso, um deles mandou um subordinado de elétrico, do Largo do Andaluz até à Rua António Maria Cardoso para trazer o tal papel

 

Durante cerca de 1 hora manteve-se uma atmosfera de cortar à faca, com uma ou outra interrupção – a pedir testemunhas e com o António a dizer que não contassem com ele para participar na prisão do Dr. Sá da Costa…

 

Borges de Castro tentava quebrar aquele gelo, a desdramatizar a situação… Para desanuviar, volta-se para o agente da PIDE e pergunta, palacianamente, como se aquilo fosse um modo de vida como outro qualquer:

- Então, têm prendido muita gente?...

 

 

 

 

 

 

DIÁRIO DE AGOSTO
por Guilherme d'Oliveira Martins

 

 

 

 

 

 

 

 

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