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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

A FORÇA DO ATO CRIADOR

 

Por uma arquitetura realista.

 

'Sempre odiei aquele espírito vitoriano do pitoresco e do interessante. Que se apropria daquilo que vê, e depois fica a pensar sobre o que aquilo deveria ter sido. Acho que a visão do mundo não passa por aí. Acho que a cultura não passa pela erudição nem pela informação. São práticas muitas vezes remotas e longínquas em que estabelecemos conexões que racionalmente não somos capazes de explicar mais tarde.', Manuel Vicente em conversa com Jorge Figueira. 

 

Há uma arquitetura feita na segunda metade do séc. XX que não é entendível de um modo linear - pelo contrário apresenta-se plural, diversa, múltipla, multiforme, complexa e híbrida.

 

Defender uma arquitetura verdadeira e autêntica, que valoriza o homem e a sua vivência implica claro, considerar o homem real como um ser que vive integrado numa comunidade mas que tem uma individualidade complexa marcada. 

 

Associada a esta delicadeza do pensar está associada uma arquitetura longe de um saber absoluto. É uma arquitetura que se assume crítica em relação aos paradigmas do movimento moderno mais racionalista.

 

Ignasi de Solà-Morales pensa que talvez este modo de projetar esteja associado a um pensamento 'fraco', no sentido de que é altamente influenciável pelo contexto, pela história e pela memória. A arquitetura revisionista, crítica ou realista faz-se a partir do desaparecimento de qualquer tipo de referências absolutas (que de certo modo encerram o modo de saber e afastam o homem da realidade), porém em muito beneficia do conhecimento tectónico modernista. Há por isso, uma progressiva aceitação, da relação aleatória que existe entre a arquitetura e o lugar físico e social - aceitam-se sobretudo contradições e disjunções que distorcem e dissolvem a confiança do modernismo. Os arquitetos críticos perseguem assim o pequeno, o insignificante, o fragmento e o momentâneo. Álvaro Siza chega mesmo a afirmar que sempre que a arquitetura deseja ser mais profunda não pode basear-se numa mera imagem fixa nem numa evolução linear. A arquitetura resulta sim, de um processo muito vulnerável pois cada projeto transporta consigo um momento preciso de uma imagem flutuante.

 

A nova intensidade realista não mais produz objetos estáveis e unidimensionais.

 

'Estávamos interessados em fazer mais uma arquitetura interiorizada, que vem de dentro para fora. A forma resultava da pulsão de dentro para fora com a que viria de fora para dentro (mas esta não vem de uma geometria era vinda do sítio) por isso andava-se entre o sítio e as pessoas.', Nuno Portas em conversa com Nuno Teotónio Pereira

 

Nuno Teotónio Pereira sempre se dispôs a fazer uma arquitetura de dentro para fora, deixando o exterior informar o que se fazia lá dentro. É a grande exploração do desenho até ao pormenor que liga a arquitetura à vida real das pessoas. E o estudo do projeto através do corte dá complexidade e profundidade ao resultado final da arquitetura.

 

Nuno Portas afirma, assim que se deve basear a forma da arquitetura, no espaço, na vida do dia-a-dia e não num simples resultado visual - porque existem, sobretudo preocupações sociais. A arquitetura não muda a sociedade, mas é feita para as pessoas e as pessoas são contraditórias (N. Portas). A arquitetura tem de nascer complexa. O homem não pode ser simplificado - como fazia o racionalismo e Corbusier ao conceber a máquina de habitar. O homem é concreto e têm hábitos, dificuldades e contradições - e a arquitetura existe para proporcionar certos comportamentos e dificultar outros. Há sempre um desejo de nunca reduzir o problema à escala mais simples e de introduzir complexidade, resolvendo vários aspetos (até mesmo contraditórios) ao mesmo tempo. A complexidade não é o problema. A complexidade faz parte da solução.

 

Por isso se defende uma arquitetura realista e humanizada (que é por natureza complexa, por vezes até insignificante e contraditória) em oposição a uma arquitetura meramente teórica, simplista, universal, formalista, estática e monumental.

 

Ana Ruepp

LONDON LETTERS

 

Brexit? Or Brexitoin? Or yet Westminsterxit, 2018

 

A European Union aperta o cerco a Britain. O negociador mor Monsieur Michel Barnier anuncia as condições continentais para o biénio da implementação da Brexit com acesso aos mercados, resumível na totalidade das obrigações financeiras e nenhuns direitos decisórios.

A fúria dos Brexiteers com a PM RH Theresa May vai em crescendo. “Name the date of your departure or we will do it for you,” assinala no Mail On Sunday o ex Tory Party Chairman Mr Grant Shapps. — Chérie! Les conseilleurs ne sont pas les payeurs. A House of Lords classifica a EU (Withdrawal) Bill como “constitutionally unacceptable.” Os Peers dizem-se aqui “disappointed” por o Her Majesty Government ignorar as suas prévias recomendações legislativas. — Well. Things will get worse before going better. A UK Prime Minister reúne-se em Davos com o US President Donald J Trump e ouve uma inequívoca declaração do apoio norte americano à comunidade de ideais e interesses, assente num “lucrative new transatlantic trade deal.” Já a Bundeskanzlerin Frau Angela Merkel etiqueta o estilo negocial de Mrs May sob sibilina fórmula do “Nothing to say, Make me an offer.” Em London, porém, muitos interrogam se antes não é senão a Brexitoin ‒ a Brexit only in name.


Cold days
at Central London. A neblina matinal que envolve Westminster Village traz à memória laivos do Bruges Speech apresentado por Mrs Margaret Thatcher. Falando no College of Europe, em 1998, a Iron Lady sente necessidade de sublinhar ancestrais evidências a uma peculiar elite: “Europe is not the creation of the Treaty of Rome. Nor is the European idea the property of any group or institution.” Os ecos de Brussels denotam os ventos do esquecimento e da soberba. Enquanto Mrs May ruma para Beijing em oportuníssima 3-days state visit e o Project Fear retorna em força às ilhas, num e noutro caso com os mandarins de Whitehall e apêndices na Press revelando especial empenhamento em cenários de ruína e pauperismo, a febril atmosfera que se observa nos main parties recorda talqualmente a punch line de RH Clement Attlee ouvida na House of Commons num suave dia primaveril de 1940. Em câmara preenchida, sob alto som de fundo dos “Hear, Hear” de muitos MP’s e do “Order, Order” do Speaker, o dirigente do Labour aponta o dedo para o Prime Minister RH Neville Chamberlain e pede-lhe a imediata resignação: “In the country’s interest man, resign! Step down! And let us find a new leader!” Algo do género ressoa agora em diferentes quadrantes e nem mesmo o calendário ajuda uma distante protagonista. Se as Local Elections marcadas para 3 May 2018 ameaçam veneráveis bastiões conservadores em prometida maré esquerdista, no dia 30th January de ido 1649, no exterior de Banqueting House, uma criação dos Tudor junto ao Thames River, é Charles The First decapitado por high treason.

Com todas as armas para si apontadas, sejam de EU Leavers ou de Remainers, a começar nos próprios Tory backbenchers, onde cada vez mais avultam as palavras de Mr Jacob Rees-Mogg, Right Honourable Theresa May ausenta-se para o outro lado do mundo. No reino, patroticamente unimpressed com os Brussels bully boys, a PM não tem alternativa política senão pronto rejeitar do unfriendly, unhealthy & unfair ultimatum da European Union. Mas os termos continentais para negociar a futura relação bilateral dizem sobre quem os decide, tanto nos aligeirados dois minutos que o EU General Affairs Council demora para os aprovar, quanto sobre a intensidade dos bloody affairs que envolvem os liames orçamentais dos 27. Note-se a régua comum: Como contrapartida dos negócios caseiros no mercado único até 2021, durante os dois anos de transição após a saída oficial em March 2019, os demais estados-membros querem que o United Kingdom pague bilionário cheque anual pela pertença ao euroclube, aplique as atuais e as novas leis comunitárias, mantenha as fronteiras abertas e ainda acate o impedimento de negociar acordos comerciais com terceiros. Tudo isto sem assento nas instituições, agências e afins da eurocracia. Na impiedosa Brexitoin, “the UK should have taxation without institutional representation.”

 

Mas esta semana decide-se por aqui uma outra árdua dicotomia do should I stay? Or should I go? que outrora celebriza os Clash. O futuro do Palace of Westminster está em debate nas Houses of Parliament, após um relatório oficial concluir que o edifício carece de custosos melhoramentos. Todas as opções estão em aberto, da manutenção à mudança temporária ou definitiva dos MPs para um outro local no reino, com os trabalhos de conservação avaliados entre £3.52bn e £5.67bn.

 

Segundo o Joint Committee dos Lords e dos Commons, apesar das firmes fundações no terreno escolhido no 11th Century pelo King Edward the Confessor, o complexo urbano defronta-se hoje com “a substantial and growing risk of either a single, catastrophic event, such as a major fire, or a succession of incremental failures in essential systems which would lead to Parliament no longer being able to occupy the Palace.” Daí o “R&R Programme,” um moderno projeto de renovação e de restauração. A história escrutinará de perto estas deliberações. Afinal, mais que “a masterpiece of Victorian and medieval eras,” as casas monumentais concebidas pelo arquiteto Charles Barry após o Great Fire of 1834 são um universal farol da tradição democrática. — Umm. At the end of the day, as ours Master Will says in Romeo and Juliet, all fluctuate with the criteria that we use to discern nature of convention as also with love: — “What's in a name? That which we call a rose / By any other name would smell as sweet."

 

St James, 29th January 2018

Very sincerely yours,

V.

A VIDA DOS LIVROS

 

De 29 de janeiro a 4 de fevereiro de 2018.

 

«Meu Dito, Meu Escrito» de Maria de Sousa (Gradiva, 2014) é um fascinante conjunto de textos de uma cientista em busca da humanidade e da compreensão do diálogo entre saberes e valores éticos.

 

 

DO CONHECIMENTO À SABEDORIA
Maria de Sousa é uma cientista, médica e bióloga, com créditos firmados no mundo, em virtude do seu conhecimento, da sua discrição e persistência. Exerceu atividade científica em Inglaterra, na Escócia e nos Estados Unidos. Como imunologista abriu caminhos novos, que hoje estão a produzir extraordinários resultados no campo da medicina. Foi investigadora e catedrática no Instituto de Ciências Biomédicas Abel Salazar da Universidade do Porto e no Instituto de Biologia Molecular e Celular (IBMC). Maria de Sousa é bem um exemplo para os dias de hoje e para todos quantos acreditam que T. S. Eliot tinha razão quando dizia: “Onde a vida que perdemos no viver? Onde a sabedoria que perdemos no conhecimento? Onde o conhecimento que perdemos na informação?” Estamos aqui no cerne da atitude humanista e da compreensão de um sentido amplo de humanidades, ligando ciência e artes, inovação e criatividade, conhecimento e compreensão. Encontrei sempre em Maria de Sousa o genuíno entusiasmo de quem procura em cada momento o modo de chegar à dignidade humana, pela vida das ideias, pelo entendimento da complexidade, pela compreensão de que a descoberta corresponde ao sentido crítico e ao permanente inconformismo. Daí dar tanta importância ao desassossego, que nos leva ao exemplo, à aprendizagem e à experiência… E não podemos esquecer como Agostinho da Silva foi uma referência para a cientista – uma vez que usava do paradoxo por contraponto às ortodoxias fechadas ou rígidas. Em entrevista a Anabela Mota Ribeiro, Maria de Sousa disse-nos quem a influenciou, no sentido de desarrumar o seu pensamento, abrindo-o para a inovação e referiu Jorge da Silva Horta, o professor de Anatomia Patológica e o modo como ele ensinava. «Fazíamos leitura de relatórios de autópsia, e, ao mesmo tempo, sabíamos a opinião que os clínicos tinham desses pacientes em vida. Grandes e famosos clínicos. Viam o doente, achavam que o doente tinha uma coisa, depois fazia-se a autópsia e não era nada daquilo. Os resultados da autópsia eram uma forma extraordinária de aprender que, de facto, não se sabe. O que me vai impressionar sempre é o que não se sabe. Foi a primeira desarrumação. Depois, quem desarrumou mesmo, foi (…) David Ferreira, que era de um grupo que ia constituir o IGC (Instituto Gulbenkian Ciência). Recrutaram alunos de Medicina para fazer investigação, muito cedo». E cita Garcia de Orta na sua extraordinária afirmação: «O que sabemos é a mais pequena parte do que ignoramos». Sim, esta é a atitude fundamental correspondente ao modo do ser do cientista, capaz de compreender a ciência como cultura. Afinal, o filósofo e o cientista, o artífice engenhoso e o pintor, o escultor e o músico todos participam da maravilhosa capacidade criadora. E o processo assemelha-se em todos os casos – que articulam educação, ciência e cultura, sempre – tornando a aprendizagem base essencial do desenvolvimento humano. Duarte Pacheco Pereira falava, por isso, do «saber de experiências feito» e Camões pôs essas qualidades no grande incompreendido de «Os Lusíadas» que é o Velho do Restelo. Não se esquece que essa personagem central não diz a Vasco da Gama para não partir, mas antes alerta-o para os perigos do imediatismo (que viriam a ser os famigerados fumos da Índia) e da «glória de mandar» e da «vã cobiça».

 

A IMPORTÂNCIA DAS HUMANIDADES
Maria de Sousa, ao longo da complexa investigação que desenvolveu no campo da imunologia, soube sempre manter um diálogo muito fecundo e necessário com outras áreas do conhecimento, de modo a garantir que a ligação Educação, Ciência e Cultura permita uma melhor compreensão da humanidade e da dignidade humana. «Inúmeras são do mundo as maravilhas, mas nenhuma que ao homem se compare É o seu dos recursos infindáveis…». As Humanidades têm de colocar as pessoas no centro da vida e do mundo – sem a tentação de repetir o que recebemos nem de considerar o novo como um absoluto. Mas surge a pergunta perturbadora: sobreviveremos como civilização? George Steiner não está certo de qual a resposta. O nacionalismo e o protecionismo são poderosos venenos do nosso tempo. O chauvinismo torna o outro e o diferente como inimigos. Despreza as pessoas com nacionalidade diferente. A absolutização da identidade torna-se um fator de fechamento. Uma civilização autista tende a decair e a desaparecer por incapacidade de responder aos novos desafios, limitando-se a repetir tiques exteriores. O que nos caracteriza e nos distingue uns dos outros deve ser considerado como elemento de enriquecimento mútuo – não como de separação, de indiferença ou de ignorância. Os fundamentalismos e os protecionismos têm a mesma raiz. Hoje o tema dos refugiados não pode, pois, ser visto de modo simplista, como se correspondesse apenas a uma ordem de razões. Impõe-se articular a compreensão do outro, considerar a mobilidade das populações nos dias de hoje como algo de natural e tantas vezes necessário – bem como a cooperação para o desenvolvimento realizada nos países de origem… Os que se limitam a pensar na questão da segurança, bem como os que se atêm exclusivamente ao acolhimento de refugiados como tema humanitário estão equivocados – uma vez que há que equacionar a complexidade de temas, entendendo-se não só a resposta ao agravamento das desigualdades e à ocorrência dos fenómenos de exclusão, mas também a motivação social e humana e a emancipação cultural. A diversidade linguística e a comparação das diferentes literaturas colocam-nos no cerne da cultura como criação – e George Steiner, como Edgar Morin, permitem-nos compreender a complexidade de fatores humanos que devemos considerar. E porventura estaremos hoje a atravessar um período muito semelhante ao que ocorreu no Renascimento. E urge que tal se compreenda. Daí a multiplicidade de pistas abertas e a necessidade de um diálogo entre saberes. Maria de Sousa ensina-nos que a resposta humana aos diferentes desafios vai depender de diferentes caminhos, a que a humanidade tenderá a corresponder de um modo múltiplo… Eis o que podemos ganhar com a estimulante leitura dos ensaios da cientista e mulher de cultura.  

 

Guilherme d'Oliveira Martins
Oiça aqui as minhas sugestões - Ensaio Geral, Rádio Renascença

CARTAS DE CAMILO MARIA DE SAROLEA

 

Minha Princesa de mim:

 

   Não sei por quê, tem-me dado, nestes dias de incerto inverno - diria mesmo que de aparições de sol zangado com a grisalha de um céu persistentemente ameaçador de desejada e abençoável chuva, mas tão teimosamente seco de lágrimas -, tem-me dado, dizia, para ouvir, cerrar os olhos e escutar, música tradicional japonesa, essa dita sô, dedilhada num koto, instrumento que veio para o Japão na segunda metade do século VI, então para prazer exclusivo da corte imperial de Nara. São treze cordas tensas sobre um tronco covo de paulónia, e dedilhadas num jeito mais seco, menos gemente do que as das guitarras portuguesas, menos ressonante também, pois que a caixa de madeira está deitada ao comprido no chão e a tocadora, de kimono vestido, sentada sobre os joelhos, à moda nipónica. Havendo canto, é também ela que lhe dá voz humana. Se me lembro bem, os portugueses, no século XVI, não lhe achavam grande graça, salvo raríssimas exceções. Eu gosto, não tenho habituação, mas a essa música recorro para introito a uma meditação: acalma-me e desperta-me um qualquer segredo de mim.

 

 

   Num dos meus tempos de Japão, creio já tê-lo contado, aconteceu-me ser convidado pela idosa e venerável aristocrata japoa, minha senhoria, para ir jantar a casa dela e partilhar a sua arte sô. A senhora já passara dos oitenta, mas não lhe falhavam os dedos nas cordas, nem a memória da música. A recordação de sons antigos, de ritmos e pausas ancestrais, enchiam-lhe a alma, convidavam-na a meditá-los com outros, e até o estrangeiro bárbaro que eu era se deixava mansamente entrar em comunhão...

 

   No isolamento campestre em que hoje vivo, tenho certamente de desafiar todos os dias um qualquer silêncio menos benfazejo. Mantenho, Princesa de mim, esse meu atavismo de escutar diariamente umas horas de música, de dialogar com os livros que me acompanham, mas sobretudo tenho aprendido a falar com o silêncio, percorrendo recordações que são rostos humanos, pessoas que me privilegiaram episódios passados. Não sei porquê, escrevo-te eu, Princesa, ao abrir esta carta, e repito de outro jeito: Não sei porquê, não são aparições, nem visões, são companhias, encontros lembrados, amizades fiéis.

 

E vendo cada uma dessas caras, dizendo cada um desses nomes, convivo íntima e reconhecidamente com todos, tanto com esses que talvez me telefonem ou escrevam hoje, amanhã ou depois, como quanto com todos aqueles que se diz que já morreram e eu sinto vivos no coração de Deus.

 

   Ó Princesa, Princesa de mim: este mistério de sermos em relação é levado da breca, não achas?

 

Camilo Maria


Camilo Martins de Oliveira

Evocação de António Braz Teixeira como diretor do Teatro Nacional de D. Maria II (I)

 

Faço aqui uma evocação sintética mas muito refletida da atuação e da obra de António Braz Teixeira como diretor do Teatro de D. Maria II, no período de 1982 a 1985.

 

Importa recordar antes de mais que a gestão de um Teatro Nacional implica uma abordagem convergente da evocação e renovação.

 

Evocação, chamemos-lhe assim à necessária abordagem global de uma expressão histórica e estética, necessariamente breve mas adequada a um teatro do Estado: e isso, porque há que ter presente a “obrigatoriedade” (entre aspas) de retoma do património histórico e estético da literatura dramática, nacional e não só, evidentemente.

 

A verdade é que um Teatro Nacional e Normal constitui referência para a realização em espetáculo, como o teatro deve ser, da cultura teatral.

 

Mas mais: um Teatro Nacional tem de conciliar essa perspetiva histórica com a necessidade de evolução e renovação dramatúrgica e das artes e literaturas do espetáculo dramático e isto, não só na literatura e na cultura dramática do país, como também da literatura e cultura dramática a nível mundial.

 

E ainda acrescentamos que o Teatro Nacional e Normal mais deve ter em vista a dupla dimensão, no que respeita à dramaturgia (neste caso portuguesa) do património histórico-cultural do país, mas também da atualização de patrimónios histórico-culturais de expressões vinda de outros países e de outras culturas.

 

E se isto nos parece óbvio no quadro de qualquer cultura-literatura dramática, mais o será no que respeita à cultura-literatura dramática portuguesa:  porque, há que reconhecer, o teatro não é e expressão artística dominante no quadro da cultura portuguesa – o que não significa, de modo algum, uma redução da importância e qualidade da literatura dramática e do espetáculo em Portugal.

 

Fazemos pois aqui uma evocação da seletividade cultural e teatral do Teatro de D. Maria II no período em que foi dirigido por António Braz Teixeira como vimos de 1982 a 1985.

 

E fazemo-lo a partir da evocação das peças representadas, chamando a atenção para um fator também muito relevante: é que a seletividade implicou uma abordagem coerentemente global do repertório.

 

E nesse aspeto saliento alguns pontos específicos.

 

Em primeiro lugar, uma preponderância de textos de autores portugueses, o que é adequado a um Teatro Nacional.

 

Mas também obviamente peças de autores estrangeiros.

 

E num caso e noutro, uma preponderância de textos mais ou menos contemporâneos, sem embargo, claro está, da evocação de grandes clássicos da história do teatro.

 

Recordamos peças referenciais levadas à cena no Teatro D. Maria II durante a gestão de António Braz Teixeira:

 

CASTRO de ANTÓNIO FERREIRA
AUTO DE SANTO ALEIXO de AFONSO ÁVARES
GUERRAS DO ALECRIM E MANJERONA de ANTÓNIO JOSÉ DA SILVA
FÍGDOS DE TIGRE de F. GOMES DE AMORIM
A SOBRINHA DO MARQUÊS de GARRETT
O MORGADO DE FAFE EM LISBOA de CAMILO CASTELO BRANCO
PEDRO O CRU de ANTÓNIO PATRÍCIO
O GEBO E A SOMBRA de RAUL BRANDÃO e mais as peças num ato do mesmo autor
ALMA de MARIO SÁ CARNEIRO e PONCE DE LEÃO
ANTES DE COMEÇAR de ALMADA NEGREIROS
O MARINHEIRO de FERNANDO PESSOA
FERNANDO (TALVEZ) PESSOA de JAIME SALAZAR SAMPAIO
A BIRRA DO MORTO de VICENTE SANCHES
POE OU O CORVO de FIAMA HASSE PAES BRANDÃO
OS IMPLACÁVEIS de MANUEL GRANGEIRO CRESPO
DOM JOÃO de MOLIÈRE
A CASA DE BERNARDA ALBA de FREDERICO GARCIA LORCA
LONGA VIAGEM PARA A NOITE de O´NEILL
ANÚNCIO FEITO A MARIA de PAUL CLAUDEL
MÃE CORAGEM de BERTOLD BRECHT
LULU de WEDEKIN

 

E acresce que António Braz Teixeira reconstituiu ainda cenas de uma peça perdida de António Patrício intitulada “Teodora”.

 

Veremos em próximo texto alguma doutrinação de António Braz Teixeira sobre teatro e estética de espetáculo.

 

DUARTE IVO CRUZ

CRÓNICAS PLURICULTURAIS

 

5. EM REDOR DA ABOLIÇÃO DA PENA DE MORTE EM PORTUGAL (I)
DA EVOLUÇÃO DO TRATAMENTO DO CRIME POLÍTICO AO CRIME COMUM

 

Em especial até ao fim do século XVIII, era usual na Europa, e também em Portugal, execuções particularmente cruéis em relação a crimes políticos. Tornou-se famosa a execução do francês Damiens, em 02.03.1757, por ter atentado contra a vida de Luís XV, sendo condenado à morte. A sua execução e horrores punitivos que a consumaram, é muito conhecida por ser descrita, minuciosamente, no livro “Surveiller et Punir” (Vigiar e Punir), de Michel Foucalt. A obra começa pela transcrição de uma parte da sentença que condena o regicida a morrer de um modo especialmente cruel, com requintes de brutalidade, crueldade e desumanidade, que iam desde o corte da mão direita com que atentou contra a vida do rei, o corpo ser puxado e desmembrado por quatro cavalos, os membros e corpo queimados de várias maneiras, reduzidos a cinzas lançadas ao vento. 

 

Para além do esquartejamento, havia outras barbaridades que iam desde o esventramento até serem queimados, ainda em vida, os órgãos reprodutores do condenado como símbolo de extermínio da família que tinha ousado atentar contra a vida do monarca.

 

Estes crimes políticos ou de alta traição, também conhecidos em Portugal como de lesa-magestade, eram tidos como graves e abomináveis para as Ordenações vigentes até 1852, que os antigos comparavam à lepra: “porque assi como esta enfermidade enche todo o corpo, sem nunca mais se poder curar (…) assi o erro da traição condena o que a commette, e empece, e infama os que de sua linha descendem, posto que não tenhão culpa”. 

 

No que toca aos delitos políticos, há execuções célebres, no decurso da nossa história, como a dos assassinos de Inês de Castro, por ordem de D. Pedro I, mandando a um tirar o coração pelo peito e ao outro pelas costas. As mortes dos duques de Bragança e de Viseu, no reinado de D. João II, o primeiro degolado em Évora, o segundo apunhalado, em Setúbal, pelo próprio rei. Condizendo com a execução de Damiens, em França, pela mesma época, em Portugal, houve a execução dos Távoras, em 1759, com vários requintes, como a quebra de ossos em vida, além de enforcamentos, decapitação, corpos queimados, confisco de bens, por ordem do Marquês de Pombal, acusados de estarem envolvidos num atentado contra o rei D. José I. A execução de Gomes Freire de Andrade, enforcado e queimado, em 1817, no Forte de S. Julião da Barra, acusado de ter participado numa conspiração contra a vida do marechal inglês Beresford, na sequência das invasões napoleónicas e aquando do domínio inglês com a Corte no Brasil.

 

A punição com suplícios abomináveis no corpo dos condenados, suprimindo-lhes a vida, era um espetáculo. Gradualmente a execução pública passou a ser vista pela negativa, como uma fogueira que reanimava a violência.

 

Segundo Foucault: 
“A pouco e pouco, a punição deixou de ser um espetáculo. E tudo o que tivesse a ver com o espetáculo adquiriu cariz negativo. Como as funções da cerimónia penal deixavam de ser vistas, suspeitava-se que esse ritmo que “concluía” o crime mantinha com ele alguns laços de parentesco: que o igualava ou até o superava em selvajaria; que acostumava os espetadores a uma ferocidade da qual deviam ser afastados; que lhes mostrava a frequência dos crimes; que associavam o carrasco a um criminoso, os juízes a assassinos; que invertia no último momento os papéis; que fazia do supliciado um objeto de piedade ou de admiração. Há muito que Beccaria dissera: “O assassínio que nos é apresentado como um crime horrível, vemo-lo ser cometido friamente, sem remorsos” (ob.ª citada, edições 70. 2013, p.ª 15).

 

Esta supressão do espetáculo, anulação da dor e abolição da pena de morte ganhou, em primeiro lugar, um especial tratamento e uma maior benevolência em relação à criminalidade política, com o ideal liberal em pleno século XIX. A que acresce a fama de uma certa aura heroica e romântica que rodeava os criminosos políticos, tidos como pessoas que se revoltavam contra a opressão, de que o título da obra literária “Felizmente Há Luar”, de Luís de Sttau Monteiro é bem sugestivo, ao evocar a morte de Gomes Freire de Andrade, aclamado como herói pelos revolucionários do liberalismo, três anos depois. Também a obra “Mariana Pineda”, de Federico García Lorca, levada ao palco pelo teatro “A Barraca”, em Lisboa, em 2017, aquando das celebrações contra a pena capital, se centra numa mulher, condenada à morte, pelo garrote, tida como heroína da Liberdade e da resistência liberal contra a tirania e um regime opressor. Goya, no seu quadro Os Fuzilamentos de 3 de Maio de 1808, memoriza o heroísmo dos espanhóis fuzilados após a revolta contra os opressores  franceses, em que a vítima iluminada, na sua pose, lembra Cristo crucificado. Evoco, a propósito, a Carta a meus filhos sobre os fuzilamentos de Goya, de Jorge de Sena: “Por serem fiéis a um deus, a um pensamento, a uma pátria, uma esperança, ou muito apenas à fome irrespondível que lhes roía as entranhas, foram estripados, esfolados, queimados, gaseados, e os seus corpos tão amontoados anonimamente quanto haviam vivido, ou suas cinzas dispersas para que delas não restasse memória”.

 

Foi este apelo e sensibilidade a uma maior clemência na repressão da criminalidade política, que levou à abolição da pena de morte para os crimes políticos em França em 1848, antecipando-a à dos crimes comuns.

 

Ligada a esta ideia de “dignificar”, “heroicizar” e “romancear” o criminoso político, por confronto com o criminoso comum, também em Portugal foi votada, na Câmara dos Deputados, em 1852, a abolição da pena de morte para os delitos políticos. Quinze anos antes da abolição da pena de morte em relação aos crimes comuns, só abolida em 1867. A exposição sobre os 150 anos da abolição da pena de morte para os crimes comuns em Portugal, no Colégio da Trindade, em Coimbra, de julho a novembro de 2017, deu-nos uma perspetiva atualista do padecimento humano dos condenados e do pioneirismo intelectual e jurídico dos abolicionistas, que abordaremos em próximo texto.

 

23.01.2018

Joaquim Miguel De Morgado Patrício

A FORÇA DO ATO CRIADOR

 

Conceito de Arte segundo Argan.

 

Segundo Argan, o campo da arte é 'dificilmente delimitável' - é cronologicamente vasto, é geograficamente abrangente e inclui inúmeras atividades muito diferentes entre si.

 

Mesmo restringindo o campo às artes visuais, existem diversas categorias de objetos de diferentes escalas, usos e técnicas. Pode considerar-se uma obra de arte uma cidade inteira, mas também as gravuras que ornamentam as páginas de um livro. 

 

Talvez na arquitetura, na pintura e na escultura, prevaleça o momento ideativo ou inventivo; e no artesanato é o momento executivo ou mecânico que mais interessa - mas trata-se de uma distinção válida apenas para as culturas que a estabeleceram.

 

O conceito de arte não define, assim categorias de coisas mas um tipo de valor - este está sempre ligado ao trabalho humano e às suas técnicas e indica o resultado de uma relação entre uma atividade mental e uma atividade operacional. 

 

Ora o valor artístico de um objeto evidencia-se na sua configuração visível / forma. E por isso, a forma da arte é sempre qualquer coisa que é dada a perceber, pois uma consciência colhe o seu significado e é a consciência que a recebe e que julga a obra como sendo arte. 

 

'Portanto, a história da arte não é tanto uma história de coisas como uma história de juízos de valor. Na medida em que toda a história é uma história de valores, ainda que ligados ou inerentes a factos, o contributo da história da arte para a história da civilização é fundamental e indispensável.' , G. C. Argan

 

Ana Ruepp

LONDON LETTERS

 

A lengthy embroidery & A bridge too far, 2018-22

 

What a nice man is that Donald. And what a lovely plan of Boris. O European Council President, Pan D Tusk, afirma que a EU está de braços abertos para Britain, acaso o governo mude de ideias e revogue o voto popular da Brexit.

Já o Foreign Affairs Secretary RH Boris Johnson quer edificar uma ponte sobre as 350 ml do English Channel.  — Chérie! Tout est bien que finit bien. A Anglo-French Summit termina em Sandhurst com a assinatura de acordos, públicos e privados, pelo President Emmanuel Macron e a Prime Minister Theresa May, apoiados por cheque de £45m para a segurança em Calais. Daqui resulta a vinda da doce relíquia normanda de La Reine Mathilde de Flandre (11th century). — Umm. Do not cross a bridge till you come to it. O anel feminino alarga no poder insular: RH Mary Lou McDonald MEP é a nova líder do Sinn Fein. O US President DJ Trump completa o primeiro ano na White House com usual normalidade: o encerramento do Federal Government, por falta de consenso orçamental. Em Bonn, a Bundeskanzlerin Frau Angela Merkel anuncia a Groko entre as CDU-CSU e o SPD como “a new dawn for Europe.” As atenções políticas continentais deslocam-se agora para Rome. Com sufrágio agendado para 4th March, e sendo as Italian politics mainly a regional affair, temem-se os humores eleitorais face a 11% de desempregados e cerca de 600,000 imigrantes resgatados do Mediterranean Sea no último quadriénio. A Lega Nord candidata-se com referendo sobre o €uro e Signor Silvio Berlusconi esgrime com thatcheriana flat tax.

 


O encanto ritualista não cessa aqui. Acaso o radar esteja ok e dado o poder nos dois lados da Mancha rezar em diferentes panteões, tempo virá para análoga cedência temporária de preciosidade local rumar até ao Louvre ou afim ‒ quiçá simbólica Rosetta Stone, talvez via Waterloo Station. Mas já o líder parisiense se distingue pelo charme com que cá veicula frescas e usadas euromensagens. Assim: Além de disponibilizar o famoso tapiz de 70m, tamanho passível de se elevar como franco Trajan horse, Monsieur Macron tanto defende que o UK receba maior número de imigrantes, quanto admite que os franceses votariam por Frexit se tivessem livre ocasião de referendar o lugar na European Union. Por fim, no veio dos grand projets que uniram o President François Miterrand a Lady Thatcher, o senhor do Elysée ter-se-á entusiasmado com uma ideia lançada pelo imaginativo Foreign Affairs Secretary: a construção conjunta de uma bridge over the English Channel. Aquém da façanha técnica que tal obra de engenharia pode representar para quantos navegam nos Northern Seas, a visão política dos 560 km nas águas atlânticas desde logo lembra um clássico de Mr Richard Attenborough: A Bridge Too Far (1977), sobre a ‘Operation Market Garden’ durante a World War II. Com o desempenho dos lendários Dirk Bogarde, James Caan, Michael Caine, Sean Connery, Edward Fox, Gene Hackman, Anthony Hopkins, Hardy Krüger, Laurence Olivier, Ryan O'Neal, Robert Redford, Maximilian Schell e Liv Ullmann, o filme foca a tentativa de quebrar as linhas nazis por tomadia de pontos estratégicos em terras ocupadas, Tivessem os Brits dominado a Arnhem Bridge, nas Netherlands, em 1944, e o conflito cessaria “by Christmas.” O flanqueamento militar falha. O armistício só ocorre depois de mais uma tragédia ocidental, visível de Dresden a Berlin.Godly breeze, light rain and gentle friendship at Central London. Em volta restam os vestígios da visita oficial de Monsieur Emmanuel Macron, em vésperas da Davos party nos Alps itálicos e do World Economic Forum emoldurar imprevisto tête-à-tête entre Right Honourable Theresa May e o POUS Donald J Trump. Dos detalhes da cimeira anglo-francesa dizem os registos mediáticos, bastando antes notar algumas singularidades nos resultados da coreografada diplomacia bilateral. O Palais de l'Élysée anui com a vinda temporária para o reino de valiosíssima relíquia medieval: La Tapisserie de La Reine Mathilde, segundo os historiadores gauleses; The Bayeux Tapestry, de acordo com o Guide do Victoria and Albert Museum (Dep. of Textiles, 1921). O empréstimo visa a sua exposição pública, em 2022, no British Museum, sendo a primeira vez em 950 anos que a peça regressa ao lar. Este é um bordado cerzido com a coloração técnica do Kent, contemporâneo da queda insular da House of Wessex erguida pelo King Edward The Confessor. A crónica lavrada na lã ilustra a saga militar de Harold of England entre 1064-66, até à derradeira Battle of Hastings (East Sussex). A tapeçaria acaba na Cathedral de Bayeux e estima-se ser pertença ora da consorte do vitorioso William The Conqueror, ora do irmão deste, o Bishop Odo, Earl of Kent e um exilado que ali morre em 1097. O Tapete Baiocense tem alquimia interessante, algures habitando também no imaginário de quem na modernidade ambiciona conquistar Britain. Em 1804 dele se apodera o Emperor Napoléon Bonaparte, quando prepara a invasão das ilhas; em 1870 repete-se o gesto, por mão teutónica, em plena Franco-Prussian War; e em 1944 é a Gestapo que, às ordens de Herr Heinrich Himmler, o leva para Paris, sem daí nunca sair para o místico destino final ditado pelo Reichsführer das SS: Berlin. As forças aliadas devolvem o artefacto a Normandy.

Notas finais relativas ao estado do tempo na House of Lords e no seio do Ukip, barricadas contra e pró Brexiting. Um novo golpe de espada é desferido no Tea Party nativo: o líder independentista (e ex Liberal Democrat), Mr Henry Bolton, recebe voto de desconfiança na cúpula nacional por estranho sarilho de saias. Celebrizado este porta-bandeira, eis que zune um vaticínio do autor do Article 50 do Treaty of the European Union (aquele que desencadeia o processo de desvinculação dos estados-membros). Lord Kerr prevê que haverá segundo #EuroRef ainda em 2018, capaz de anular a saída britânica em March 2019. Falando ontem aos microfones da LBC com Mr Alex Salmond (o ido Scotland First Minister e ex MP), Lord Kerr marca o calendário de Westminster: “The parliamentary row of the Autumn will be when the government bring back an outline, a framework, of the terms they think they can get for a permanent settlement. If it doesn’t look very good, quite a lot of people in the House of Commons and House of Lords will say now hang on, this isn’t exactly as was promised during the Referendum in 2016.” — Well. Let us since now sing the old Lancastrian tune that Master Will engraves in The Tragedy of King Richard the Second: — “This royal throne of kings, this sceptered isle, This earth of majesty, this seat of Mars, This other Eden, demi-paradise, This fortress built by Nature for herself, Against infection and the hand of war, This happy breed of men, this little world, This precious stone set in the silver sea, Which serves it in the office of a wall, Or as a moat defensive to a house, Against the envy of less happier lands, ---This blessed plot, this earth, this realm, this England."

 

St James, 22th January 2018

Very sincerely yours,

V.

A VIDA DOS LIVROS

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   De 22 a 28 de janeiro de 2018.

 

O ensaio de Jaime Cortesão “Os Fatores Democráticos na Formação de Portugal”, para servir de introdução à História do Regimen Republicano em Portugal, dirigido por Luís de Montalvor (1930), constitui ainda hoje uma peça referencial para a compreensão das mais importantes continuidades numa história antiga e complexa.

 

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ANALISTA CRITERIOSO

Jaime Cortesão foi um analista criterioso e atento das raízes de Portugal. Sobre a obra referida pode dizer-se que a sua perenidade se mantém viva – uma vez que, seguindo os passos de Herculano, mas superando-os em nome da crítica histórica, encontramos elementos que merecem atenção, até para que se constituam em incentivo ao aperfeiçoamento das instituições. De facto, a ideia moderna de mediação institucional encontra nas considerações de Cortesão uma base sólida à luz da qual podemos ver o constitucionalismo nos dias de hoje, no sentido do seu aperfeiçoamento. Releia-se o historiador: “Em Portugal é do próprio movimento das comunas que vai nascer o conceito supremo da Nação; e apenas desaparecidas as causas que entravam aqui, mais ainda do que no resto da Europa, o desenvolvimento político das classes populares, os princípios democráticos vão retomar a sua marcha até o advento da República. Os mesmos centros urbanos, que em 1383 elegeram o mestre da Avis e tão poderosamente contribuíram para assegurar a independência nacional, vão afirmar de novo a sua consciência política e capacidade nas lutas pela liberdade durante o período liberal e republicano”. Compreenda-se a importância da estratégia afonsina de mobilizar os municípios moçárabes, bem como o impulso audacioso do período dionisíaco na delimitação das fronteiras, na definição da língua e no reforço da aliança entre o poder real e os concelhos… E o modo como as Cortes de Coimbra (1385) com João das Regras definiram a nova legitimidade portuguesa torna evidente que aquilo que Cortesão designa como “fatores democráticos” constitui o pressuposto fundamental da independência portuguesa e da sua persistência multissecular – nas quais se aliam de modo indelével a vontade dos portugueses e a longa e omnipresente costa marítima, que se contrapõe à continentalidade da restante Península Ibérica. E Jaime Cortesão fala-nos de tendências universalistas, da afirmação da liberdade dos povos no sentido da boa organização e da satisfação justa das suas necessidades, que, “desenvolvidas durante a nossa Idade Média”, “eclodiram e triunfaram durante a revolução que levou ao trono o Mestre de Avis, determinando a formação social predominante, a missão histórica e o carácter ideal da Nação”… E, ao estudar o Brasil, o historiador pôde projetar globalmente a diversidade do mundo da língua portuguesa – num reforço inequívoco de uma identidade multímoda, caracterizadora do humanismo universalista. Sem idealização, e com a preocupação de reunir argumentos suficientemente claros e sólidos, Cortesão coloca-nos perante a necessidade de irmos, com uma vocação europeia e uma projeção global, aperfeiçoando pela experiência e pelo tempo as instituições, a representação democrática e a participação cívica.

 

UMA LIGAÇÃO NECESSÁRIA.

A invocação de Jaime Cortesão faz sentido quando se assinala o primeiro aniversário do falecimento de Mário Soares e quando se desenvolvem iniciativas ligadas ao bicentenário do constitucionalismo português, dentro de dias na cidade do Porto, para assinalarmos os duzentos anos do Sinédrio, e há bem pouco na invocação da pioneira abolição da pena de morte em Portugal e da condenação ilegal e ilegítima de Gomes Freire de Andrade e dos Mártires da Pátria - acontecimento justamente lembrado na representação na Assembleia da República da peça de Luís Sttau Monteiro Felizmente Há Luar. Tudo isto na perspetiva da celebração da Revolução de 1820 e da Constituição de 1822 – e do que se lhe seguiu em termos de consagração do Estado de direito, do primado da lei e das legitimidades do título ou da origem e do exercício. E se falo dos “fatores democráticos” e invoco a memória amiga e próxima de Mário Soares é para dar ênfase à continuidade e permanência da ideia democrática em Portugal – sobretudo num tempo em que somos chamados a aperfeiçoar e a reforçar as instituições baseadas na liberdade, na igualdade, no pluralismo e na cidadania livre e responsável. Mário Soares é um exemplo que tem de ser lembrado. O constitucionalismo moderno foi por si assumido como desafio e responsabilidade – a partir de um compromisso dinâmico de integração e de inclusão. Quantas vezes falámos dos desafios e da reflexão de Jaime Cortesão ou do grupo da “Seara Nova”, com António Sérgio, Raul Proença, Raul Brandão ou Rodrigues Migueis, como sinais de exigência? Quantas vezes invocámos a importância do respeito mútuo e da laicidade – num espaço público de respeito mútuo, de diversidade, de coesão social e de autêntica liberdade?

 

INCONFORMISMO E LIBERDADE.

Não esqueço o que o meu querido amigo António Alçada Baptista tanto gostava de lembrar – o inconformismo de Soares permitia que ele estivesse sempre do lado da liberdade, custasse o que custasse… Era uma garantia para todos, uma vez que as águas mornas podem tornar-se perigosas. Em nome desse magistério cívico, vem à lembrança a ideia necessária de “República Moderna”, como aquela por que Sérgio pugnou e que está bem evidenciada em textos do pós-guerra e na audaciosa apresentação da candidatura do General Humberto Delgado à Presidência da República. Essa dimensão histórica, assente, na herança da primeira geração romântica, com Garrett e Herculano e continuada pela grande geração das Conferências Democráticas, com a intervenção fundamental de Antero de Quental sobre as Causas da Decadência, e com a tentativa (de grande alcance) de implantar uma “Vida Nova”, que serviu para demonstrar que a sementeira de ideias podia ter consequências de larguíssimo prazo, desde que baseada no espírito crítico e na necessária superação do pessimismo e da decadência. Eça de Queirós e Oliveira Martins tornaram, assim, o sentido de ironia e a força da análise como tomada de consciência de que só a autocrítica e a desconstrução dos mitos poderiam ajudar à mobilização de energias contra o atraso como destino. E a cultura portuguesa do último século reforçou essa mesma ideia, designadamente com Eduardo Lourenço na sua psicanálise mítica do destino português. Hoje, no momento em que no horizonte há nuvens perturbadoras, em que a ideia da democracia como sinónimo de liberdade é posta em causa, em que se fala de pós-verdade, quando julgávamos que essa ideia estava sepultada na obra Orwell, ou quando os sinais de fragmentação europeia se constituem em ameaças a uma cultura de paz e de desenvolvimento – devemos lembrar a persistente voz determinada e crítica de Mário Soares, um intransigente defensor da liberdade da linhagem de Jaime Cortesão.  

      

Guilherme d'Oliveira Martins
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