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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

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A VIDA DOS LIVROS

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  De 1 a 7 de janeiro de 2018.

 

«A Revolução Russa» de Sheila Fitzpatrick (Tinta da China), 2017, é uma síntese, dir-se-á pedagógica, sobre os acontecimentos que há um século marcaram a história mundial, com profundas e heterogéneas consequências que ainda hoje marcam o mundo.

 

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AS OUTRAS REVOLUÇÕES

Os cem anos da Revolução Russa levam-nos a ligar esse acontecimento aos três outros que marcaram a História europeia e mundial nos últimos três séculos – a saber, as revoluções inglesa (1688-89), americana (1776) e francesa (1789). Salvaguardadas as diferenças, estamos perante movimentos que visaram alterações sistémicas e estruturais das sociedades em que tiveram lugar. No caso britânico, tratou-se da implantação de um sistema parlamentar, assente na divisão de poderes, em que os comerciantes das cidades tomaram o lugar dos grandes proprietários das terras. No caso norte-americano, estamos perante uma emancipação colonial e a consagração de um sistema federalista, também baseado na divisão de poderes – que apenas se consolidou depois da guerra civil (1861-65) e do reforço gradual da legitimidade do Congresso por contraponto aos poderes dos Estados. A situação francesa vai conhecer uma evolução complexa, que põe em xeque o Antigo Regime, sendo primeiro influenciada pela ideia de «vontade geral» de Jean-Jacques Rousseau e depois gradualmente conduzirá à separação de poderes – mediada pelo império napoleónico, pela monarquia de Julho e pelo republicanismo liberal. A revolução russa de 1917 começou por ter a influência da matriz inicial da revolução francesa. De fevereiro a outubro de 1917 a tentativa gradualista e plural falhou e foi o governo de Assembleia de Rousseau que prevaleceu, contendo a óbvia fragilidade da inexistência de uma limitação de poderes. Em todos os casos referidos (Inglaterra, Estados Unidos e França) a noção de constitucionalismo vai-se afirmando com limitações e fragilidades, sobretudo devido à dificuldade na afirmação de instituições mediadoras estáveis e fortes, aceites livremente pelos cidadãos. O caso russo é especial, uma vez que estamos numa sociedade essencialmente rural, com reminiscências feudais – em contraste com as sociedade industriais que Karl Marx considerava estarem em condições para evoluir segundo o determinismo do materialismo dialético estudado pelo pensador alemão. Quando lemos uma síntese como a de Sheila Fitzpatrick, percebemos bem que uma orientação centralista férrea foi o modo prático para superar a dificuldade teórica de base – considerando que Karl Marx estava muito longe de pensar que a sua teoria evolutiva pudesse querer aplicar-se ao pós-feudalismo russo. Daí a necessidade do centralismo que, no entanto, pôs em causa o primado da lei e conduziu ao Gulag. E, tal como encontrámos na revolução francesa inicialmente, também aqui temos um período de terror, mais longo e sistemático, para compensar a ausência de uma legitimidade cívica alargada.

 

ESLAVÓFILOS E OCIDENTALISTAS

Não se esqueça que a sociedade russa do século XIX conheceu um intenso debate entre eslavófilos e ocidentalistas – envolvendo liberais e socialistas, e entre estes em múltiplos grupos que se foram formando. Esta tensão ainda hoje persiste e a ela se devem muitas incompreensões e equívocos – já que a cultura russa é poliédrica e só desse modo pode ser entendida. Tolstoi ou Dostoievski são exemplos dessa riqueza. Nas vésperas de 1917 não podemos esquecer a influência decisiva da participação russa na guerra mundial (1914-18) como aliada das potências ocidentais. O apoio alemão a Lenine teve, assim, objetivos claríssimos, no sentido de enfraquecer os aliados. O reinado do czar Nicolau II revelou-se extremamente frágil, pleno de erros e vicissitudes, avultando as repercussões da guerra russo-japonesa (1904-05), o esmagamento do golpe de 1905, e a participação na grande guerra. A renúncia do último czar determina a passagem do poder para o Governo Provisório (Lvov e Kerenski). A fase dita liberal da revolução vai ser minada pelo espontaneísmo, que num primeiro momento não favorece o partido de Lenine. Ainda que momentaneamente influentes os outros partidos não se vão entender – e o caso de Alexandre Kerenski é paradigmático, uma vez que será incapaz de impor uma orientação pluralista. O certo é que havia uma incapacidade geral para responder construtivamente à agenda do momento. Previu-se, entretanto, que uma Assembleia Constituinte decidiria sobre as questões essenciais – como o regime político, o estatuto da terra, a questão operária e o futuro da participação da Rússia na guerra. A Assembleia chegou a ser eleita em 1918, mas imediatamente foi dissolvida por pressão dos bolcheviques, postos em minoria na eleição. Contudo, o novo poder desvalorizou as capacidades dos bolcheviques (o chamado partido alemão) e de Lenine – e os sovietes surgiram como uma espécie de poder popular, cuja influência reforçou os bolcheviques. Assim, os sovietes, conselhos de operários e soldados, uma vez burocratizados tornaram-se meros apêndices do partido de Lenine – e isto mudou o curso dos acontecimentos.

 

DO DOMÍNIO BOLCHEVIQUE AO GULAG

A chamada ditadura do proletariado tornou-se o domínio do partido bolchevique. Assim, vai ocorrer a destruição de toda a oposição, desde os chamados partidos burgueses aos restantes partidos da esquerda e finalmente a purga entre os bolcheviques. Lenine proibiria, assim, qualquer grupo ou fação no interior do seu partido – orientação que Estaline prosseguiria sistematicamente em continuidade com o seu antecessor. Com este pano de fundo de crescente centralização e purificação desenvolvem-se o Comunismo de Guerra, a NEP – Nova Política Económica (com um início de algum modo gradualista) e os Planos Quinquenais numa lógica progressiva de centralismo burocrático. A chamada Revolução Cultural foi lançada pelos apoiantes de Estaline em 1928 e representou uma nítida contradição relativamente aos objetivos iniciais do movimento, uma vez que impôs uma única corrente de criação artística: o realismo socialista. O afastamento progressivo de Trotski, figura central do soviete de Petrogrado, culminaria na expulsão do partido em 1929. Acresce que se verificou, nesta linha, um endurecimento em relação à noção de moral revolucionária, agora mais fechada e rígida. Entretanto, o luxo do poder implantou-se e o extremismo foi duramente perseguido – culminando no grande terror de 1937-38. E ainda que a autora tenha sobretudo ficado nesse ponto, não pode esquecer-se que as perseguições que permaneceram até 1953, data da morte de Estaline, e que vemos nos relatos de Soljenitsine. A título de curiosidade, devemos recordar a publicação dos relatórios diplomáticos de Jaime Batalha Reis sobre a sua saída da Rússia em 1918 - «Dos Romanov a Lenine» (Abysmo, 2017). É muito interessante termos um relato desapaixonado de um velho socialista português baseado nos factos concretos sobre a revolução russa. Aí lemos: “A anarquia era integral; não havia nem polícia, nem tribunais nem leis”, tudo decorrendo no meio de uma população “densa e esfomeada”.

 

 

Guilherme d'Oliveira Martins
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